quarta-feira, 30 de junho de 2021

Revisitando a Caixa de Pandora


Revisitando a Caixa de Pandora

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Enquanto as atenções se concentraram na ampliação dramática das estatísticas humanas e das carências para o atendimento digno dos doentes, a Pandemia, por si só, foi incapaz de causar um frisson coletivo na população brasileira. Parecia que aquela dor, aquele desespero, aquela angústia pertencia apenas àqueles diretamente afetados.

De repente, foram os trabalhos da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre a COVID-19, instaurada pelo Senado, serem iniciados e as respostas emergirem, explicando em detalhes o que vêm acontecendo há pouco mais de 1 ano no país, para que uma indignação furiosa se espalhasse, até mesmo, entre os mais céticos.

Descobriu-se que o curso dessa história não é fruto de uma maldade restrita à negligência, à indiferença e/ou ao desejo incontrolável de subtrair seres humanos; mas, de algo endêmico no país, a corrupção. Mais uma vez, ela é o centro das atenções e a grande responsável pelos piores infortúnios da sociedade brasileira. Como dizia Séneca, “Os vícios são próprios dos homens e não dos tempos”.

No entanto, dessa vez, o vício foi longe demais. Por sua causa mais de meio milhão de cidadãos morreram, de uma morte visível e acompanhada lentamente pelos demais. O povo brasileiro teve a oportunidade de perceber a corrupção cortando na própria carne, sem distinção de A, B ou C. Faltou para o pobre; mas, também, para o rico. Morreram anônimos e famosos. Famílias foram ceifadas abruptamente. As vísceras do país ficaram expostas.

Então, parando para respirar por alguns instantes, para tomar fôlego diante de descobertas tão indigestas, é impossível não entender como a corrupção, em maior ou menor escala, tem destruído a sociedade brasileira e gerado uma inação crônica para o seu desenvolvimento. Porque a corrupção mata, com requintes de crueldade, na ineficiência e na insuficiência dos serviços públicos.

A gente começa a pensar, bem antes de se imaginar com uma Pandemia, naqueles que morreram nas portas e corredores de hospitais públicos. Naqueles que morreram, apesar de uma liminar judicial que exigia sua internação em um leito de Unidade de Terapia Intensiva (UTI). Naqueles que morreram pela ausência de remédios. Naqueles que morreram sem conseguir atendimento nos postos do Instituto Nacional do Seguros Social (INSS). Ou, mesmo, em quem ainda não morreu; mas, aguarda por meses, décadas, uma solução do governo em relação as suas demandas fundamentais.

E pelo gatilho dessas tristezas, resgata-se do inconsciente as lembranças amareladas de uma avalanche de notícias sobre a corrupção no Brasil. Em todos os lugares do país. Em todas as esferas de poder. Em todas as áreas de governo. Como uma doença que se alastra e possui alta capacidade de mutação. Que surge onde menos se espera, pelas mãos de alguém “acima de qualquer suspeita”. Porque a corrupção é a expressão máxima do “jeitinho brasileiro”.  O atalho rápido para o enriquecimento e para o usufruto do poder.

Talvez, não haja nada mais individualista do que a corrupção. Afinal, ela é posta em prática por pessoas que vivem exclusivamente para si mesmas, incapazes de demonstrar solidariedade, empatia, respeito, ... É o egoísmo, ou o egocentrismo, em estado bruto. Mas, elas sobrevivem na sociedade porque as relações sociais, especialmente, no mundo contemporâneo, estão baseadas no TER. O que significa que TER é PODER. De modo que ninguém questiona os meios, porque o que importa são os fins.

Clarice Lispector escreveu que “O óbvio é a verdade mais difícil de se enxergar”.  A questão, agora, é saber como essa sociedade, depois de ver in loco o seu país ser alvejado, por uma Pandemia dessa magnitude, e reconhecer todas as demais desgraças que a sua naturalização das tragédias cotidianas, particularmente, a corrupção, foi capaz de causar, irá se comportar.

Pela milionésima vez, fomos nocauteados pelo sistema que permitimos vigorar; mas, isso não significa que não podemos mudar. Porque, não se tem mais a desculpa, o pretexto, de dizer que não entendeu que “A maior corrupção se acha onde a maior pobreza está ao lado da maior riqueza” (José Bonifácio de Andrada e Silva).

Haja vista, os dados divulgados, hoje, pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). “A taxa de desemprego no país foi de 14,7% no trimestre fechado em abril [...] No total, são 14,8 milhões de pessoas buscando trabalho. A taxa e o número de desempregados são os maiores desde o início da série histórica, iniciada em 2012”1; e os desocupados e os subocupados representam 33,3 milhões, enquanto os desalentados são 6 milhões.

Então, o mais importante desse lapso de lucidez é não se deixar cair na tentação de ser capturado, novamente, pelos tentáculos da alienação voluntária. Sobretudo, em relação à corrupção.

Afinal de contas, há sempre um risco, pois “Vivemos em uma sociedade sombria. Ser bem-sucedido, eis o ensinamento que, gota a gota, vai caindo da corrupção que avança”; e, “Pode-se resistir à invasão de exércitos, não à invasão de ideias” (Victor Hugo – escrito francês do século XIX). Porque, “As ideias dominantes numa época nunca passaram das ideias da classe dominante” (Karl Marx – filósofo alemão).

terça-feira, 29 de junho de 2021

E chuva que é bom, nem pensar!


E chuva que é bom, nem pensar!

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Parece brincadeira de mau gosto; mas, é só incompetência mesmo. O aumento da conta de energia elétrica no país é a ponta de um gigantesco iceberg de despreparo governamental. A escassez de água nos reservatórios das usinas hidroelétricas não se compadece diante da elevação das tarifas, cuja função é somente pagar pelo custo do acionamento das termoelétricas. É necessária chuva; chuva em abundância para resolver esse problema.

Nem adianta jogar a culpa em São Pedro pelos baixos e inconsistentes volumes pluviométricos, porque essa responsabilidade é humana. É nisso que dá, negar a Ciência, quando ela alerta sobre as mudanças climáticas e as repercussões delas no cotidiano da raça humana. Há, praticamente, 3 anos, que o Brasil vem consumindo com fogo e motosserra os principais biomas nacionais e desaparecendo com vastas áreas de cobertura vegetal que auxiliam na manutenção e regulação das chuvas.

Segundo o Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas (PBMC), um coletivo de grandes cientistas dedicados aos estudos do aquecimento global na perspectiva do país, “As mudanças no volume de chuva podem oscilar entre 5% e 20% e na temperatura de 1 grau Celsius (°C) a 5°C na temperatura até o final do século dependendo do aquecimento global e da emissão de gases de efeito estufa”. De modo que “o desmatamento pode agravar a situação. A derrubada das matas elevará ainda mais a temperatura e diminuirá a umidade. ‘Constitui-se condições propícias à savanização da Amazônia, um problema mais crítico na região oriental [da floresta]’, destaca o texto” 1.

Portanto, a ideia da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) de aumentar em 52% o valor da bandeira tarifária vermelha patamar 2, além de inócua para a resolução da crise hídrica no país, tende a contribuir no aumento da inflação e na precarização das condições de vida da população mais carente. Afinal de contas, o mundo pós-Revolução Industrial orbita em torno dessa energia, ou seja, o cotidiano das pessoas, do comércio, das indústrias, do entretenimento, ... tudo será impactado por essa medida.

E chuva que é bom, nem pensar! E para piorar, o governo, ainda, tentou sensibilizar a opinião pública diante desse aumento, afirmando que se fosse seguida a orientação da área técnica da Aneel, o mesmo teria sido de 84%. Mantiveram os 52%; mas, em contrapartida, pretendem estender esse aumento até novembro. O governo quer acreditar que, elevando as tarifas, irá induzir de algum modo uma utilização mais racional da energia elétrica; mas, isso é bobagem. O consumo de energia acompanha a dinâmica das relações sociais, ou seja, todas as atividades que a população desenvolve ao longo do dia.

Então, se não há possibilidade de reorganizar essa estrutura, o gasto da energia não terá variação. Nem agora, nem depois. Basta observar que, mesmo com muitas pessoas, ainda, trabalhando remotamente, a economia de energia em grandes edifícios e conglomerados comerciais, não acenou uma redução significativa do consumo nos centros urbanos.

Outro ponto de análise, é a expansão no país das usinas fotovoltaicas que utilizam a energia solar para produção de energia elétrica, as quais têm despertado o investimento dos consumidores para adesão. Grandes espaços geográficos, nas cidades e no campo, têm se destinado a abrigar grandes aglomerados de placas fotovoltaicas, cuja energia produzida é vendida para a rede elétrica através do sistema de leilão controlado pelo governo. De modo que, para aqueles que não podem adquirir e instalar esse sistema, a solução tem sido estabelecer contratos com essas “fazendas de energia solar”, para que a energia produzida por elas e injetada na rede distribuidora, se converta em “créditos de energia”, os quais são abatidos no consumo.

Porém, mesmo quem não pode alçar voos dessa magnitude, nesse momento, já têm buscado medidas cotidianas para redução do consumo elétrico. Seja pela análise dos selos do Programa Nacional de Conservação de Energia Elétrica (Procel), que indica a quantidade de energia gasta por cada produto elétrico em uso. Seja pelas lâmpadas de LED, as quais além de poder economizar até 80% a mais do que as antigas incandescentes, duram mais de 50000 horas e não possuem metais pesados na sua composição. Mas, chuva que é bom, nem pensar!

Não podemos dizer que essa crise foi por falta de aviso, porque não foi. A dissociação promovida pela gestão pública, em relação as demandas nacionais, dá nisso. Já dizia Mahatma Gandhi que “A vida é um todo indivisível”.  Querer particularizar os problemas, tratá-los em separado, como questões únicas e imiscíveis, é pura ignorância. Tudo dialoga com tudo. Tudo depende de tudo.  

Então, chegou o momento em que o peso da arrogância negligente colocou o país de joelhos, sem muitas opções para resolver a questão. Aliás, provou da melhor forma, a importância fundamental do desenvolvimento sustentável para evitar esse tipo de caos. Nada de fóruns científicos. Nada de Organizações Não-Governamentais (ONGs) se manifestando em público. Nada de cobranças diplomáticas internacionais. Apenas, reservatórios vazios. Abastecimento de água comprometido. Risco de apagão elétrico. Tudo muito simples, muito prático, muito fácil de enxergar.

Olhando para o Brasil, cuja matriz energética principal é a hidroelétrica, com mais de 1000 usinas, sem a elaboração de um plano estratégico sustentável e eficiente, diante das mudanças climáticas e do efeito estufa, a situação não tarda a colapsar. Aliás, a respeito do agronegócio, que auxilia diretamente no equilíbrio da balança comercial nacional, as alterações pluviométricas e de temperatura, causadas pelas mudanças climáticas, também, têm causado prejuízos de bilhões de dólares para o setor.   

Desde que mundo é mundo, já se sabe que o modo de resolver as crises sempre foi o aumento de impostos e tributos; mas, nesse caso não adianta. Dinheiro não se transforma água, nem com muito boa vontade. É impressionante o grau de desenvolvimento científico e tecnológico alcançado pela raça humana, em diferentes áreas do conhecimento; mas, não se pode esquecer que ele passa pelo consumo energético.

Portanto, muita atenção! As águas não movem apenas os moinhos, elas movem a vida. Isso significa que “O valor que não tem por fundamento a prudência chama-se temeridade, e as façanhas dos temerários devem atribuir-se mais à sorte do que à coragem” (Miguel de Cervantes – “Dom Quixote de la Mancha”).

  

segunda-feira, 28 de junho de 2021

Vigiar... Punir... A Violência no caminho da Segurança


Vigiar... Punir... A Violência no caminho da Segurança

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Não, não há o que comemorar. A sociedade brasileira fracassou mais uma vez. Essa é a verdade. No embate entre a segurança e a violência predominou a força da brutalidade. Predominou o caminho usualmente institucionalizado; embora, o país se manifeste, de acordo com a Declaração Universal dos Direitos Humanos – Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza e, não disponha de pena capital no seu ordenamento jurídico.

Acontece que essa resposta institucional, enquanto coloca a violência como resposta à violência, se mostra seletiva, segundo a organização social. A ideia de segurança e de violência aparecem cada vez mais estereotipadas em favor ou desfavor de grupos sociais específicos. Basta ver que a sanha pelo extermínio de um bandido de rua, entendido como um “pé-de-chinelo”, à margem da sociedade, não existe em relação ao bandido de “colarinho branco” que dilapida o país. Este, no fim das contas, ainda é chamado de “doutor” e tratado com toda reverência.

Então, não é à toa, como as incursões policiais, em nome da segurança pública, acontecem de maneiras distintas em áreas nobres e em áreas periféricas. E o grau de violência aplicado nessas situações, também, é diferente.

Embora, as áreas periféricas exponham claramente o retrato da vulnerabilidade cidadã, ou seja, do abandono do Estado nas suas mais diversas demandas, são nesses espaços que a violência beira à barbárie, em um ciclo contínuo. Já nas áreas privilegiadas, a preocupação com a vida daquela população é elencada como prioridade no planejamento das estratégias. Lá, o pipoco dos tiros é realizado com muita parcimônia.

Mas, no fim das contas, nada disso importa porque a violência transita por todos os espaços sociais; na medida em que a política, que deveria ser de segurança, é uma política de violência, repleta de fragilidades logísticas, estruturais, instrucionais e jurídicas.

Nem ricos e nem pobres estão a salvo das violências. Talvez, pelo simples fato da sociedade ter negligenciado a ideia de “Eduquem as crianças, para que não seja necessário punir os adultos”, manifesta pelo filósofo e matemático Pitágoras, antes de Cristo.  

Ainda que essas fragilidades existem e podem ser apontadas e mensuradas, o ponto nevrálgico da questão é que a sociedade se permitiu acreditar que a educação é sinônimo de punição. O que se traduz pelo fato de que, enquanto ela se descuida da formação humana e cidadã, ela espera que através das punições; sobretudo, pelas mais exacerbadas, os indivíduos se corrijam e se transformem. Pena, que não é o que se vê por aí.

Daí o fracasso. A vida passou a ser resolvida distante do equilíbrio, da dialogia e dos parâmetros da organização social, em uma via única de violências. Querendo ou não, sinais contemporâneos da Lei de Talião – “Olho por olho, dente por dente”.

Algo que afasta, por completo, não só a possibilidade de uma convivência e uma coexistência pacificada pelo próprio balizamento de valores e princípios sociais; como, também, subtrai qualquer possibilidade de recuperação do indivíduo transgressor.

Sempre que a violência entra em ação, ela retroalimenta o desequilíbrio social e a barbárie. De modo que a sociedade fica rodopiando numa espiral de desestabilização infinita. Vejam, por exemplo, que foram gastos 20 dias, 300 agentes das forças de segurança das polícias militar, civil e federal do estado de Goiás e DF; bem como, recursos financeiros robustos, para capturar um único criminoso foragido, cuja periculosidade não cabia contestação.

No fim das contas, ele acabou preso e morto. Para muitos, o temor social que exalava da sua presença, rondando aquela área, foi dissipado. Mas, ninguém pode dizer que a segurança foi restabelecida. Ninguém pode garantir que, de uma hora para outra, novos foragidos não venham aterrorizar o local. Nem que outras formas de violência venham perturbar a rotina daquela população, iniciando um novo ciclo de inseguranças.

Porque a sociedade, seus valores, seus princípios, sua organização permanece a mesma. Sob uma vigília sem fim, a espera do desacato, do desrespeito, da insubordinação, para punir. E resumida nesse aspecto, a punição extrai a humanidade que reside em todo indivíduo, ele perde a sua condição existencial, a sua dignidade.

A punição, na ótica das desigualdades, então, torna-se um instrumento perigoso para justificar as atrocidades, os abusos e os absurdos que regem a desumanidade social.

Basta pensar, por exemplo, que foi com um argumento semelhante, que os nazistas se valeram para o genocídio judeu e de outras minorias, durante a 2ª Guerra Mundial. Punir com rigor e atrocidade quem eles não toleravam. Quem eles não queriam. Quem eles julgavam inferiores. Quem eles consideravam uma ameaça.

Assim, em nome de uma “segurança” temos visto a violência se alastrar pelo mundo, sob formas distintas e opressoras de intolerância e preconceito. Temos que ser cautelosos, então, antes de elevar o dedo em riste, de celebrar a desgraça alheia.

Porque, segundo Nietzsche, filósofo alemão, “Quem luta com monstros deve velar porque, ao fazê-lo, não se transforme também em monstro. E se tu olhares, durante muito tempo, para um abismo, o abismo também olha para dentro de ti”.

O que quer dizer, no fim das contas, que independentemente de quem somos ou acreditamos ser, “Precisamos de um senso de justiça, mas precisamos também de senso comum, de imaginação, de uma capacidade profunda de imaginar o outro, às vezes de nos colocarmos na pele do outro. Precisamos da capacidade racional de nos comprometer e, às vezes, de fazer sacrifícios e concessões” (Amoz Oz – “How to Cure a Fanatic”, p.53). 

domingo, 27 de junho de 2021

Na mais perfeita desarmonia desumana


Na mais perfeita desarmonia desumana

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Infelizmente, o brasileiro se acostumou tanto a trivializar o cotidiano, que essa prática se tornou a razão de sustentação das desigualdades e, particularmente, das desumanidades sociais. Atitudes, comportamentos, discursos e narrativas que, em algum momento desses 500 anos de história, encontravam respaldo institucional, e às vezes, até legal, para existirem, em pleno século XXI não cabem mais.

Uma pena, que certos indivíduos não tenham se dado conta dos processos de transformação do mundo e suas repercussões no campo das análises crítico-reflexivas.

Porque são as investidas desesperadas e inoportunas de tentar reafirmar tais pensamentos, o que mais contamina e deteriora as relações humanas, na contemporaneidade, sob a forma de violências verbais, físicas, psicológicas e morais.

Algo que ultrapassa as fronteiras do desconforto ou da intolerância, para se firmarem como garantias de uma prerrogativa de eventuais direitos, regalias e privilégios, legitimados em tempos que não existem mais.

Paira, então, sobre a sociedade brasileira o fantasma do “vale quanto pesa”, ou seja, o poder capital dos indivíduos, o qual se traduz tanto no espaço ocupado na hierarquia social quanto no fato de ter ou não um lugar de fala e representatividade. Como se uns vivessem para servir e outros para serem servidos.

Acontece que essa percepção ou compreensão da dinâmica social promove uma verdadeira catástrofe na construção da consciência cidadã, porque há uma fragmentação da população; na medida em que alguns têm importância e outros não. O país não se vê coeso, inteiro, pleno; portanto, os interesses e as demandas são defendidos de maneira enviesada e tendenciosa. Porque o senso coletivo foi suprimido das prioridades, como se isso não tivesse implicações graves e maiores.

Isso é tão sério que, em abril deste ano, o Instituto Locomotiva apresentou dados de uma pesquisa em que a classe média brasileira, durante a Pandemia, havia se nivelado ao mesmo tamanho da classe baixa 1. Mas, apesar de alguns “ais” e “uis”, no frigir dos ovos, o assunto acabou esquecido no inconsciente coletivo.

E a razão disso é simples, a população chegou a um nível de desagregação que não consegue estabelecer as conexões mentais capazes de traduzir as repercussões negativas desse fato para o país. É como se seguissem à risca o provérbio, “Cada um por si e Deus por todos”.  

Pois é, seria fantástico se a vida transcorresse assim! Mas, a verdade é bem outra. O fato de a sociedade vestir sua máscara blasé e fazer cara de paisagem, para não se envolver no cotidiano, é inútil.

Os problemas explodem e respingam em todos ao redor. Ninguém sai ileso. Ninguém é poupado. De um jeito ou de outro, o pior para alguns não significa, necessariamente, o melhor para outros, pois a vida é profundamente complexa.

Daí o fortalecimento mundial da compreensão de que as desigualdades representam atraso para qualquer sociedade. Quanto mais comprometidas com o bem-estar coletivo, mais os seus cidadãos encontram razões para viver a plenitude de suas habilidades e competências. De modo que as engrenagens do desenvolvimento trabalham a pleno vapor e os resultados são sentidos de maneira holística.  

Quando o brasileiro coloca alguém à margem, ou no fim da fila, ou em algum ponto de esquecimento ou indiferença, o que ele demonstra explicitamente é a dimensão do equívoco de sua compreensão entre autonomia e autossuficiência.

Primeiro, porque ninguém é autossuficiente nessa vida. Todos dependem de todos; ninguém joga nas onze. Segundo, porque o brasileiro não tem por hábito o exercício pleno da sua autonomia. O brasileiro gosta de ser servido, de ter quem realize por ele, decida por ele, pense por ele ...

E como esse modo de ser e pensar está tão arraigado e naturalizado nas suas práxis, ele não vê que “O progresso roda constantemente sobre duas engrenagens. Faz andar uma coisa esmagando sempre alguém” (Victor Hugo – romancista francês).

Até que um dia, tudo para; porque, “A propriedade privada introduz a desigualdade entre os homens, a diferença entre o rico e o pobre, o poderoso e o fraco, o senhor e o escravo, até a predominância do mais forte”, ou seja, “O homem é corrompido pelo poder e esmagado pela violência” (Jean-Jacques Rousseau – filósofo genebrino).

Por isso, “O Brasil, último país a acabar com a escravidão tem uma perversidade intrínseca na sua herança, que torna a nossa classe dominante enferma de desigualdade, de descaso” (Darcy Ribeiro – antropólogo, historiador, sociólogo e político brasileiro).

A questão é que essa enfermidade, com o tempo, se alastrou, repercutindo entre toda a população em um movimento de hipervalorização dos pequenos poderes. Basta pensar que dispõe de algum mínimo poder, para que o indivíduo faça uso dele de maneira imperativa sobre os demais, sem se preocupar com as consequências e desdobramentos. E nessa toada, o país em pedaços vaga dividido entre os privilegiados e os despossuídos, na mais perfeita desarmonia desumana.  

sábado, 26 de junho de 2021

À luz da catarse...


À luz da catarse...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Até certo ponto, pode-se dizer que a sessão da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre a COVID-19, que se estendeu até altas horas de ontem, tenha sido catártica para muita gente.

Entretanto, é lamentável que depois de mais de 500 anos de história, o país venha se permitindo conviver com o ranço de velhas práxis, as quais nunca resultaram em benefício algum para ele mesmo.

Fico observando e penso que o brasileiro, não a sua totalidade, mas uma boa parcela, se comporta como o sujeito que vai ao cinema e assiste repetidas vezes ao mesmo filme, só na esperança de que o final seja diferente. No fundo, ele sabe que isso é impossível; mas, o seu desejo de fazer a ficção, ou a vida, caber dentro dos moldes das suas expectativas parece ser bem maior.

A sociedade, então, entra nessa de ficar sempre remendando a sua colcha de problemas, tão esgarçada e puída pelo tempo, como se ela pudesse ser o que não é. Já passou da hora de o brasileiro entender que, embora o voto seja a expressão da representatividade política, ele não desobriga o indivíduo do exercício de sua própria cidadania.

Porque é justamente nesse ponto que se fundamenta o desafio do país. As pessoas querem, porque querem, acreditar que elegendo um “salvador da pátria”, tudo fica resolvido. Que não há necessidade dele, o cidadão, empreender nenhum esforço ou dedicação para o país caminhar na direção certa.

Tudo muito prático. Sem contar, em uma eventual possibilidade, com alguma benesse, algum “agradinho”, que o candidato possa lhe proporcionar, além do voto recebido. Como uma manifestação concreta de que ele, o eleitor, não é figura invisível para o candidato; muito pelo contrário.

De modo que, a partir desses pequenos “mimos”, a relação entre eles vai sendo construída e consolidada ao longo do tempo. Quem já não ouviu falar em “curral eleitoral”? Pois é, ainda que, aos olhos do eleitor, isso pareça normal, ranqueado no rol das “gentilezas políticas”, no fundo da consciência, ele sabe muito bem que não é assim.

Que ambos estão incorrendo em uma prática moral e eticamente contestável. Porém, sentem-se absolvidos pela legitimidade advinda do tempo; afinal de contas, o hábito se arrasta pelos séculos.

E, muito embora, seja a mais pura verdade “que mentir pra si mesmo é sempre a pior mentira” 1, ao tentar aplacar a própria consciência, muitos eleitores esperam de seus representantes da classe política, um comportamento quase “santificado”, de extrema lisura e comprometimento; mas, que está longe de ser a representatividade deles próprios.

Observe, por exemplo, como os discursos e narrativas inflamados em torno de plataformas virtuosas acabam arrebatando os corações dos eleitores, traduzindo uma euforia e contentamento que extrapolam os limites do bom senso.

Desse modo, quando em plena realidade, a prática se distancia anos luz da teoria, há um choque, uma frustração, uma indignação avassaladora. As aparências não foram suficientemente fortes para conduzir a história e, de repente, tudo derrete. A força das convicções. Os apoios. As narrativas. O encantamento. As alianças. ... E as verdades guardadas no fundo dos porões da consciência são alçadas abruptamente ao sol, em uma tentativa de acabar com o cheiro forte e o mofo.

Ora, e não há nada mais constrangedor e incomodativo do que essa situação. Na maioria do tempo, as pessoas escolhem atalhos ou vias secundárias, justamente, para não confrontar os fatos. A realidade é sempre desafiadora, indigesta, contrária aos sonhos e idealizações.

Nem todos estão aptos e prontos para lidar com isso e enfrentar o que vier. Embora, haja quem prefira caminhar ao lado dela e economizar tempo, enxugando as lamúrias e/ou tentando corrigir os erros e os fracassos. O que temos, nesse exato momento da história brasileira, é isso.

Mais de um mesmo, que se repete secularmente. Verdades óbvias, sendo dissecadas e expostas à opinião pública. Sendo que, a única novidade nesse cenário, é a razão central desse processo, uma Pandemia em curso. Dessa vez não foi o sol; mas, um vírus, o que iluminou as verdades e trouxe à tona o odor da podridão fermentada pelo tempo.

Realmente, é muito pesado admitir o peso das escolhas; mas, sobretudo, das suas consequências. Por isso, não me constranjo em dizer que cada experiência dessas tem sido muito desgastante, por mais distante que possa me posicionar do olho desse furacão.

Na verdade, não se trata de uma escolha, porque todos fazemos parte do país e tudo o que acontece repercute em nós e em nossas vidas.  Daí a compreensão de que este é um movimento corrosivo, cuja energia dissipada fica pairando expectativas no ar. É uma dinâmica intensa de acontecimentos, como um jogo em que se avança ou retrocede em um piscar de olhos.

Contudo, apesar de todos os pesares e muito além do que se vê, o que realmente me intriga e preocupa é pensar em relação ao contínuo da história. Se esta não foi a primeira vez, se já se construiu um histórico de repetições e semelhanças, será que dessa vez a sociedade irá realmente se redimir? Irá aprender? Irá mudar?

Porque manter essa repetição, como escreveu Margaret Atwood, significaria a comprovação de que, no fundo, de algum modo, “As pessoas são capazes de fazer qualquer coisa para não admitir que suas vidas não têm sentido. Não têm utilidade, melhor dizendo. Não têm enredo” (O Conto da Aia). E essa falta de sentido explica muita coisa, no Brasil!



1 Quase sem querer – Legião Urbana (https://www.youtube.com/watch?v=7YDcS_F8nL8)


sexta-feira, 25 de junho de 2021

Diante dos porquês ...


Diante dos porquês ...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Não são os problemas o nosso maior desafio; mas, o modo como os enfrentamos e tentamos resolvê-los. Nem precisava consultar a Ciência para entender o óbvio. Bastava olhar, prestar atenção, no modo como cada país vem enfrentando a Pandemia, para ratificar o papel fundamental do comportamento humano.

Pode negar, espernear, xingar, porque nada muda a dimensão da inação que se abateu sobre o governo brasileiro, diante das conjunturas. Não desconsidero que houve método e técnica, para tal. Era muito conveniente manterem-se com os olhos fixos no horizonte de seu projeto político de poder e lançar sob o tapete da história, tudo aquilo que não coubesse nesse script.

Então, foram tecidas narrativas e discursos providenciais, para criar uma barreira de distanciamento com a realidade e continuar seguindo por uma via secundária. Em momento algum houve o interesse de cerrar fileira com o restante do mundo e fazer a coisa certa. O Brasil tinha seus próprios planos e interesses a defender, a tal ponto, que nenhum vírus desconhecido poderia fazer frente às suas expectativas.

Sem contar que um detalhe muito importante não pode ser esquecido no desenho dessa história. Desde a última eleição, em 2018, a atual gestão já havia declarado uma cruzada ideológica contra o que eles chamam de “esquerda”; mas, que na verdade, é tão somente a legião de discordantes de seu radicalismo e conservadorismo retrógrado. E o caminho para essa cruzada, se iniciava pelo desmantelamento das estruturas de governo instituídas nas duas últimas décadas no país.

Desse modo, em 2019, bem antes dos primeiros rumores sobre os Sars-Cov-2, o Brasil já atuava no sentido de desconstruir as referidas estruturas. Cortes sumários de recursos e investimentos. Alterações significativas nas normas jurídicas – leis, decretos, portarias, resoluções. Exoneração e substituição de servidores por discordância ideológica. Redução de contingente operacional em determinados setores do governo. ... Sem que, no entanto, houvesse um plano substitutivo consistente para dar continuidade ao bom andamento dos serviços públicos.

O que significa que setores como a Educação e a Saúde, por exemplo, foram severamente impactados. Mas, até então, ninguém poderia jamais supor que a vida do planeta estaria ameaçada por uma catástrofe sanitária, a qual colocaria em xeque, principalmente, esses dois ministérios. Inadvertidamente, o governo brasileiro atingiu o cerne que daria sustentação as medidas de combate e prevenção ao novo vírus.

Sim, era chegada a hora da Ciência brasileira mostrar todo o seu valor e brilhar no auxílio ao país. Do Sistema Único de Saúde (SUS) dar o suporte necessário aos atendimentos de baixa, média e alta complexidade, que resultariam do processo pandêmico, sem perder o foco nas demandas cotidianas. Mas, eles haviam sido precarizados, sucateados e inviabilizados economicamente para cumprir com excelência o seu papel; o que ficou claríssimo, quando os números da Pandemia explodiram, de repente, no país.

Foi nesse momento que as ações governamentais iniciadas em 2019 ficaram expostas, na figura de um despreparo muito mais profundo, do que se fosse decorrente apenas do ineditismo da COVID-19.

Então, a fim de evitar uma exposição cada vez maior da sua incapacidade de reversão das insuficiências e ineficiências, o governo se abrigou sobre a narrativa de que as responsabilidades em relação à Pandemia estavam a cargo de Estados e Municípios. O que contraria, inclusive, uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), de 2019, quanto à responsabilidade solidária na Saúde.

Segundo o STF, “Os entes da Federação, em decorrência da competência comum, são solidariamente responsáveis nas demandas prestacionais na área da saúde e, diante dos critérios constitucionais de descentralização e hierarquização, compete à autoridade judicial direcionar o cumprimento, conforme as regras de repartição de competências, e determinar o ressarcimento a quem suportou o ônus financeiro” 1.

Assim, as tentativas de omissão para manterem-se na inação durante a Pandemia, não os desobriga de atender aos cidadãos no seu direito constitucional de receber tratamento médico ou remédio específico, na rede pública; podendo estes, inclusive, ingressar com processos judiciais para terem atendida a sua demanda.

Entretanto, no que diz respeito ao governo federal não foi bem assim que tem transitado a sua participação na gestão da Pandemia. Conforme pode-se acompanhar os trabalhos da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre a COVID-19, instaurada pelo Senado da República, as práxis empregadas pelo governo federal até aqui carregam sobre os ombros uma estatística crescente de mais de 500 mil mortos e 18 milhões de casos.

Está evidente a carência da testagem em massa, como preconizado no início da Pandemia pela Organização Mundial da Saúde (OMS); bem como, das medidas de restrição e isolamento social e do empenho efetivo no aconselhamento as práticas básicas de higiene (lavar bem as mãos, passar álcool em gel e usar máscaras cobrindo a boca e o nariz).

Sem contar, a insistência em contrariar a Ciência quanto ao uso de medicamentos sem eficácia para o Sras-Cov-2, em permitir a disseminação de informações incorretas junto à população, promovendo ruídos e dificuldade de compreensão, agravando o quadro da Pandemia no país, e a obstaculização na aquisição e distribuição de vacinas.

Aliás, nenhum desses aspectos consegue ser superado, apesar dos esforços da Ciência, porque permanecem sendo difundidas informações equivocadas e distorcidas a respeito, por integrantes e aliados do governo federal.

Portanto, o imponderável colocou os planos iniciais do governo federal de joelhos, porque tudo mudou. O país. O mundo. A Economia. As relações sociais. Algo tão incomensurável que deixou o país sem saber por onde começar a resolver os problemas, que ele próprio começou a tecer antes da Pandemia.

Agora, todos os desafios estão sob efeito cumulativo, incluindo as centenas de milhares de mortes, as quais continuam a se multiplicar. Pois é, “A soberba nunca desce de onde sobe, mas cai sempre de onde subiu” (Francisco Quevedo – escritor espanhol), porque “Quando se trata de destruir, todas as ambições se aliam facilmente” (Júlio Verne -  escritor francês).

Hoje, o sentimento de olhar para o Brasil é de total desalento. Tudo fora do lugar. Tudo desarrumado. Uma população oprimida entre o luto e a sobrevivência. Exaurida na sua incansável esperança. Repleta de ontem. Sem hoje. Sem amanhã. Talvez, entre lágrimas secas, ouvindo Drummond sussurrar, “[...] você marcha, José! José, para onde?”2.

Ou, quem sabe, tomando consciência da verdade simples que trazem as palavras de João Cabral de Melo Neto. Afinal de contas, “[...] Somos muitos Severinos / iguais em tudo e na sina: / a de abrandar estas pedras / suando-se muito em cima, / a de tentar despertar / terra sempre mais extinta, / a de querer arrancar / algum roçado de cinza. / Mas, para que me conheçam / melhor Vossas Senhorias / e melhor possam seguir / a história de minha vida, / passo a ser o Severino / que em vossa presença emigra [...]”3.

 

quinta-feira, 24 de junho de 2021

Não se engane! A brasa segue encoberta por cinzas...


Não se engane! A brasa segue encoberta por cinzas...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Muitos não se dão conta de que as raízes das discussões ambientais remontam da Revolução Industrial, na metade do século XVIII. Pois é, ali, com a sociedade urbanoindustrial, emergiu uma nova organização do espaço geográfico, a ampliação da utilização dos recursos naturais – água, lenha e carvão para mover as máquinas à vapor, a diversidade de resíduos sólidos produzidos, enfim...

De modo que, durante muito tempo, o olhar sobre as questões socioambientais se restringia ao desconforto dos problemas gerados pela industrialização; mas, sem a devida consciência quanto a causa. Insalubridade. Epidemias. Violências. Miséria.

Somente com o desenvolvimento das Ciências e o recrudescimento dos impactos advindos da 2ª e 3ª Revoluções Industriais é que a compreensão e as discussões em torno do Meio Ambiente e da Sustentabilidade começaram a se intensificar e ganhar corpo.

Inúmeros estudos, promovidos por entidades e instituições renomadas de pesquisa, passaram a trazer dados e projeções a respeito dos caminhos do desenvolvimento urbanoindustrial no planeta, em paralelo ao crescimento populacional e suas demandas.

Os resultados apontavam o acirramento do desgaste dos recursos naturais renováveis e não renováveis e a iminência da sua insuficiência para atender aos seres humanos; portanto, era preciso repensar o progresso e traçar metas e planos sustentáveis.

Considerando os processos de colonização exploratória ocorridos anteriormente à revolução Industrial, fica claro que muitos países já vinham de uma exaustão ambiental há muito mais tempo do que outros. Entretanto, a única função do passado nesse contexto era trazer à tona as más práticas de uso e ocupação do meio ambiente, como exemplos a não serem repetidos ou perpetuados na contemporaneidade.

Porque a lógica é simples. A sustentabilidade é uma relação entre o tempo e a suficiência de recursos. Quanto mais rápido acontece o esgotamento de uma determinada área, menos recurso a humanidade terá para o futuro; visto que, nem sempre é possível reverter os danos e promover a recuperação. Enquanto o meio ambiente vem sendo dilapidado, a população do planeta, por sua vez, não parou de crescer e de manifestar infinitas necessidades, incompatibilizando o equilíbrio ambiental.

O problema, portanto, está nas resistências em relação as mudanças necessárias as práxis ambientais empregadas. Os interesses do capital, ainda, querem se sobrepor aos fatos cientificamente comprovados. Embora, o peso das conjunturas venha reajustando as tomadas de decisão, a cada nova carência que se assinala no horizonte; como é o caso dos recursos hídricos e das mudanças climáticas.

A queda de braço com a Ciência está perdendo o sentido, diante da concretude dos acontecimentos. Felizmente, começa-se a entender que não é uma questão meramente de narrativas, discursos e ações práticas promovidos por essa ou aquela pessoa.

As políticas de desenvolvimento socioambiental são de ordem institucional, com o apoio de entidades e organismos internacionais dentro e fora dos respectivos territórios, onde estão baseadas. Porque é através dessa rede integrada que a globalização, enquanto processo integrativo socioeconômico e cultural, pode se fortalecer.

Pena, que o Brasil queira permanecer à margem ou na contramão desse fluxo. A intransigência brasileira não representa apenas a deterioração e a destruição dos recursos naturais; mas, uma cascata de impactos negativos no que tange a sua inserção no campo globalizado. Contudo, a realidade contemporânea rechaça veementemente aqueles que atrelam sua imagem comercial com declarados agentes de degradação socioambiental, como é o caso.

Sei que são tempos de uma sociedade que gosta de se mostrar sob recortes que lhes façam mais satisfatórios. Mas, com o Meio Ambiente é tudo ou nada, não dá para partir de fragmentos. Essa ideia, por exemplo, de discutir a proposta de crédito de carbono 1, com base em uma eventual barganha de preservação das florestas brasileiras, é infantil.

O Brasil quer, por toda lei, justificar que, se o mundo quiser ver os nossos biomas intocados, ou minimamente, preservados, sem queimadas, desmatamentos e outras atividades ilegais de depredação, terá que pagar por isso, porque já destruíram suas florestas e ninguém fez objeção.

Parece cômico; mas, isso não é nem a pontinha do iceberg que afasta o país da inclusão no mundo globalizado sustentável. Antes fosse. O Meio Ambiente brasileiro está sob ameaça, em virtude da visão colonialista em que se apega o governo.

Sustentada pelo imediatismo exploratório inconsequente, ela se concentra, por exemplo, na ampliação de terras para o agronegócio voltado à exportação, no extrativismo mineral e vegetal ilegal, na negligência aos direitos indígenas e quilombolas.

E para colocar em prática essa fúria incontrolável, desde o início da atual gestão tem havido o enfraquecimento das regulamentações ambientais, o desmantelamento dos órgãos responsáveis e a redução na transparência das informações disponíveis, a extinção ou reestruturação dos órgãos colegiados associados às políticas socioambientais, ... O que significa que está estabelecida uma ruptura, que o país não se importa em ser um pária internacional em assuntos de Meio Ambiente.

Portanto, esse movimento nacional está acima das peças humanas que movem essas engrenagens; está a cargo de mentores intelectuais que não dispõem de formação tecnocientífica para tal. Nenhuma mudança, então, faz diferença; visto que, todos leem a mesma cartilha pré-definida para repetirem, em coro, o mantra de um capitalismo insustentavelmente retrógrado.

Mas, como diz o provérbio indígena, “Só quando a última árvore for derrubada, o último peixe for morto e o último rio for poluído é que o homem perceberá que não pode comer dinheiro”. Aguardemos o curso das conjunturas, elas não falham jamais. Afinal, “Nunca se esquecem as lições aprendidas na dor” (Provérbio africano).   

 



1 É um conceito, surgido a partir do Protocolo de Kyoto em 1997, que busca diminuir a emissão de gases de efeito estufa. Portanto, tratam-se de unidades de medida que correspondem, cada uma, à uma tonelada de dióxido de carbono equivalente. Ações que promovem reduções de gases de efeito estufa recebem, então, uma certificação de redução que conta como créditos de carbono, os quais podem ser comercializados com países que não reduziram sus próprias emissões. 

terça-feira, 22 de junho de 2021

Do Heliocentrismo a 2021...


Do Heliocentrismo a 2021...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Há 388 anos, em 22 de junho de 1633, Galileu Galilei era sentenciado pela Inquisição, por sua defesa a teoria Heliocêntrica, na qual o Sol era o centro do universo. O curioso é que, em pleno século XXI, o Negacionismo científico tenta ressurgir com a mesma intensidade. Então, eu me questiono se valeram a pena todos os esforços Mercantilistas, os quais acumularam riqueza suficiente para impulsionar o Capitalismo no mundo e, por consequência, as Revoluções Industriais; visto que, a Ciência se apresentava como a grande inimiga do poder. É ou não é contraditório?

Admitindo ou não, as Ciências é que sustentaram o capitalismo até aqui; sobretudo, no campo das tecnologias. Nada precisou mais delas do que as Revoluções Industriais. A 1ª iniciada na Inglaterra, na 2ª metade do século XVIII, consolidou a invenção da máquina a vapor que possibilitou alavancar a produção têxtil. De modo que, tecidos e roupas antes saídos dos teares manuais, passaram a ser produzidos por grandes máquinas, em larga escala. Assim, a industrialização rearranjou a sociedade, a geografia e a economia. Surgiram profissões, cidades, e uma demanda consumidora em franca expansão, dentro e fora da Europa.

E tomada pelo vigor das novidades, a sociedade urbanoindustrial aspirava mais. Então, diante da 1ª Guerra Mundial, surge a 2ª Revolução Industrial, que se expande para outros países, além da Inglaterra.  Novas técnicas e meios de produção. Ela abre espaço para o aço, o petróleo e a energia elétrica, que desencadearam novos modos de organização da produção industrial, visando produzir mais, com menor custo e tempo, ou seja, a racionalização do trabalho. 

Mas, passada a 2ª Guerra Mundial, ganha força a 3ª Revolução Industrial, também conhecida como Revolução Tecnocientífica Informacional. O que significa que as indústrias e a sociedade passaram a viver a realidade científica. Robótica, Genética, Informática, Telecomunicações, Eletrônica e outras áreas do conhecimento vieram modificar o sistema produtivo, pelo emprego de tecnologias cada vez mais avançadas e a demanda de mão de obra altamente qualificada.

Até que, desembarcamos na 4ª Revolução Industrial ou Revolução 4.0. Ela representa a transição tecnológica para os Sistemas Ciber-Físicos (Cyber-physical system – CPS) – compostos por elementos computacionais colaborativos com o intuito de controlar entidades físicas, a Internet das Coisas – a interconexão digital de objetos cotidianos com a internet, e a Computação em Nuvem – armazenamento de dados e capacidade de computação, sem o gerenciamento ativo direto do utilizador.

E porque chegamos a esse ponto é porque a Ciência sempre fez parte da humanidade. Por curiosidade ou por interesses diversos, fazer Ciência sempre foi princípio fundamental para os povos. Começou na pré-história, depois os Sumérios, os Egípcios, os Gregos, os Indianos, os Chineses, os Islâmicos, até alcançar a Idade Média e o Renascimento. Aliás, considerando alguns aspectos do cotidiano contemporâneo, vale ressaltar que se temos papel, imprensa, papel-moeda, macarrão, pólvora, seda e garfo 1, foi pelo espírito científico dos chineses, viu?!

De modo que para sermos Negocionistas, em 2021, teríamos primeiro, que apagar a história da humanidade, e segundo, abdicar de todos os confortos que as Ciências nos proporcionaram até aqui; incluindo, riqueza, poder e status. Quando você fica sem sinal de internet, ou quando o caixa eletrônico está fora do ar, ou quando o ar condicionado entra em pane, ... você resmunga, xinga, esbraveja, mas não pensa que o seu mundo é regido pela Ciência, não é mesmo? Pois é. Então, de onde vem esse espírito inquisidor, que baixou em uns e outros por aí, e decidiu fazer uma “caça às bruxas” contra a Ciência? 

Apesar da Pandemia, se o mundo melhorou os índices de expectativa de vida é por conta da Ciência. Investimentos em pesquisas sólidas e bem fundamentadas trouxeram novos medicamentos, novas linhas terapêuticas, novos equipamentos, novas técnicas cirúrgicas, novos conhecimentos sobre diversas áreas do corpo humano.

Centros de pesquisa renomados ao redor do mundo se debruçam sobre descobertas importantíssimas a respeito de doenças que afligem à humanidade; tais como, o Ebola, o Alzheimer, diversos tipos de Câncer, a AIDS, e, mais recentemente, o Sars-Cov-2. Tratam-se de estudos que após vasta e profunda avaliação se tornam consensos pela comunidade científica internacional e, por essa razão, vêm balizando a Ciência e afastando riscos e perigos advindos de práticas inconsistentes e equivocadas metodologicamente. 

Ao que me parece, então, a nova “Inquisição” não só quer queimar metaforicamente os cientistas que discordam das narrativas e discursos leigos; mas, afastar obstáculos que possam prejudicar os planos de poder. Do mesmo modo que a Inquisição romana, que buscou tão somente garantir o poder católico no mundo, o que vemos agora é a tentativa de manutenção do poder burguês contemporâneo.

Por isso, concordo com Isaac Asimov, quando ele afirma que “O aspecto mais triste da vida atual é que a ciência ganha em conhecimento mais rapidamente que a sociedade em sabedoria”, porque “Nada serviu tanto o despotismo como as ciências e os talentos” (Fiódor Dostoiévski, “Os Possessos” ou “Os Demônios”).

No fim das contas, a verdade é que o Heliocentrismo de Galileu acabou contestado mais uma vez, para espanto geral. O centro do universo, agora, é o poder. É em torno dele que orbita a existência humana, com seus valores, seus princípios, seus conhecimentos, ou a falta absoluta de todos eles.

domingo, 20 de junho de 2021

Os milhões e as mortes


Os milhões e as mortes

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

É, ou pelo menos deveria ser, algo extremamente impactante pensar em MEIO MILHÃO DE MORTES, causadas por uma doença que já é passível de prevenção por meio de vacinas; a COVID-19. Choca, escandaliza, horroriza, ... pensar sobre um acontecimento tão nefasto como esse.

No entanto, quem disse que a morte, no Brasil, está restrita a esse viés? Meio milhão só por uma causa específica, sem contar outras doenças, ou fome, ou miséria, ou violências diversas, ou alguma manifestação das profundezas da subjetividade humana.

Afinal de contas, morrer não é só parar de respirar, o coração de pulsar, o cérebro de funcionar. Tem muita gente morta circulando por aí. Isso acontece quando há uma ruptura total com os valores fundamentais que sustentam o sentido da vida humana; sobretudo, na sua concepção mais bonita da convivência e da coexistência coletiva.

A indiferença e o escárnio com que muitos têm se manifestado em relação as mortes de seus semelhantes, ao contrário do que compreendem, só faz demonstrar o quão mortos, já estão. Fenecendo em seus casulos de individualismo asfixiante. Dependentes da satisfação de desejos insaciáveis, oriundos de valores e princípios deturpados, para poderem continuar vagando, como almas penadas, inconscientes de sua condição existencial.

Por isso, creditar a responsabilidade desse MEIO MILHÃO DE MORTES às narrativas e comportamentos de determinados indivíduos, geralmente aqueles com maior influência ou visibilidade, não traduz a realidade. O papel destes foi legitimar a abertura de uma zona de conforto, onde outros tantos, puderam se permitir exacerbar o mesmo individualismo. Estamos diante de uma fronteira bem definida, ou seja, quem é contra ou a favor da morte. Sim, porque essa é uma questão pacificada por si só.

Talvez seja isso, o que produz tamanho desconforto e instabilidade social. Seria mais fácil se fosse esse ou aquele a defender algo tão absurdamente mórbido; mas, de repente, se percebe que são muitos fazendo eco para uma mesma narrativa; muitos mortos vivos, por aí. Gente que saiu do seu obscurantismo cotidiano para brilhar no “lado negro da força”, com uma disposição de defesa convicta e arraigada, que chega a espantar.

Como se a dissimulação encenada por muito tempo tivesse chegado ao fim. O individualismo tomou as rédeas da situação e resolveu imperar. Portanto, não há o “nós”. Não há o senso coletivo. Não há a defesa das demandas sociais; somente, as individuais. Cada um sobrevive na sua bolha de interesses, a qual não inclui, nem mesmo, uma eventual preocupação com a própria sobrevivência, porque está totalmente centrada no TER ao invés do SER.

Razão pela qual os milhões distribuídos em verbas no Congresso Nacional, ou que rolaram debaixo dos panos dos universos paralelos que têm se descortinado a partir de investigações diversas, ou aqueles gastos com medicamentos sem eficiência alguma para combater a Pandemia, também, passam indiferentes para determinados indivíduos dentro da sociedade.

Do mesmo modo a escalada do desemprego, da miséria e de tantas outras mazelas crônicas do país, estimadas estatisticamente pela escala dos milhões de seres humanos, também, parecem invisíveis para essas pessoas.

Portanto, por pior que seja admitir, já ultrapassamos os MILHÕES DE MORTOS a lamentar. E essa verdade cruel e indigesta dimensiona o grau de esfacelamento que a sociedade brasileira conseguiu atingir. Porque a morte no seu sentido concreto, já sabemos ser irrecuperável; mas, essa morte subjetiva, tende a construir outras mortes dentro do ambiente coletivo humano. Mortes instrumentalizadas pelos piores sentimentos e emoções que um ser humano pode armazenar dentro de si.

Estamos diante de uma cova sem fundo. Assistindo, lenta e gradualmente, ao morticínio de um país, através da degradação e deturpação da sua identidade nacional, que sintetiza as suas condições sociais e afetivas de pertencimento a uma determinada cultura.

Cada dia respiramos menos. Cada dia o fôlego diminui. O que vem exigindo das pessoas um esforço sobrehumano para resistir às investidas mortais. Todos os dias temos razões para sentir falta, para carecer de alguma coisa ou de alguém. Todos dias diminuímos um pouco mais.

Então, antes que seja tarde demais, que a morte já tenha nos consumido até o mísero vestígio da alma, convido a pensar sobre a seguinte citação de Rachel de Queiroz. Bons entendedores, entenderão!

“O homem feliz é o que não tem passado. O maior dos castigos, para o qual só há pior no inferno, é a gente recordar. Lembrança que vem de repente e ataca como uma pontada debaixo das costelas, ali onde se diz que fica o coração. Alguém pode ter tudo, mocidade, dinheiro no bolso, um bom cavalo debaixo das pernas, o mundo todo ao seu dispor. Mas não pode usufruir nada disso por quê? Porque tem as lembranças perturbando. O passado te persegue, como um cão perverso nos teus calcanhares. Não há dia claro, nem céu azul, nem esperança de futuro, que resista ao assalto das lembranças” (Memorial de Maria Moura, 1992).