O mundo e
a bola
Por Alessandra
Leles Rocha
Não creio que haverá uma análise
semelhante a essa, em nenhum espaço de comunicação, a respeito da Copa do Mundo
de Clubes da FIFA. Afinal, meu viés não trata necessariamente de futebol; mas,
de outros aspectos tão ou mais relevantes para a historicidade brasileira.
Encerrada a primeira partida das
semifinais, com a presença de um time brasileiro, apesar do gosto amargo do
resultado, nada deve nos impedir de exercitar a reflexão. O destino com toda a
sua ironia fina foi implacável! Lançou sobre os ombros de um jovem talento da
base do time brasileiro, contratado pelo time adversário por mais de R$ 400
milhões e anunciado há seis dias, foi quem marcou por duas vezes.
Assim, hora de analisar com
criticidade os fatos. Há tempos que uma assimetria mercantil, desenvolvida a
partir da capacidade capital, principalmente, das equipes europeias,
estabeleceu uma linha divisória para o futebol mundial. Afinal de contas, a
presença de vultosos recursos amplia as potencialidades de investimento às
equipes. Na escala das prioridades, a verdade é que o futebol, enquanto
desporto em si, foi parar no fim da fila.
A ideia do escritor uruguaio,
Eduardo Galeano, de que “No futebol, a habilidade é muito mais importante do
que a forma e, em muitos casos, a habilidade é a arte de transformar limitações
em virtudes”, parece ter se perdido no tempo.
Isso não significa que o futebol,
enquanto essência, enquanto mágica, enquanto fascinação, deixou de existir ou
de se apresentar. No entanto, o que passou a orbitar no mundo do futebol foram
as marcas das desigualdades econômicas entre as equipes, por todo o planeta.
A sua mercantilização fez com que
se transformasse em bem, em serviço, em mercadoria, sujeito às leis do mercado
e à lógica do lucro. O que afetou profundamente as relações sociais e a própria
natureza do esporte que antes eram consideradas inalienáveis ou parte do
domínio público. Razão pela qual, a robustez das ligas futebolísticas passou a
ser determinada pelas cifras de investimento. De modo que as grandes
rivalidades se tornaram mensuradas a partir do capital.
Lamento; mas, tal qual o processo
do colonialismo, entre os séculos XV e XX, e o imperialismo/ neocolonialismo,
entre os séculos XIX e início do XX, o que ocorreu com o futebol foi o mesmo. Jovens
promessas foram abruptamente monetizadas e mercantilizadas por seus clubes de
origem, reduzidos às diversas formas de produtos e de rentáveis fontes de lucro
para as equipes europeias, principalmente. O que significa que países, como o Brasil,
passaram a ser exportadores de jogadores de futebol, para as multimilionárias
equipes do planeta.
O que considero algo abominável,
considerando que a maioria desses talentos refletem a própria desigualdade
estrutural do país, tecida pelos longos anos de colonialismo. O futebol para
eles e suas famílias representa a chamada “luz no fim do túnel”, uma
perspectiva de mobilidade e resgate da própria dignidade social. Algo que cria
no inconsciente coletivo dos jovens meninos e meninas, das camadas mais frágeis
e vulneráveis do país, uma expectativa gigantesca em torno de uma possibilidade
de jogar futebol no exterior. O pior é que nem todas as histórias acabam tendo
um final feliz.
E aí, chegamos à Copa do Mundo de
Clubes da FIFA. Não, não há exagero em dizer que esse formato de campeonato é
uma exaltação, portanto, aos multimilionários times europeus. Em algum momento,
já era de se esperar que os times, notadamente menos competitivos, segundo a
famigerada ótica do capital, ficariam pelo caminho. E não deu outra, chegarão à
grande final dois grandes figurões da bola, no cenário contemporâneo.
No caso brasileiro, que conseguiu
a façanha de ter uma equipe disputando uma das semifinais, não há o que
contestar, cumpriu seu papel com brio. Além disso, despede-se embolsando uma
cifra considerável pela participação. Entretanto, de volta à realidade do
mundo, é preciso admitir que essa premiação e o que dela possa desencadear, em
termos de visibilidade internacional, de valorização da marca e de outros
aspectos, não muda esse modelo colonialista que vigora no futebol mundial.
Segundo a expressão do século
XIX, "Tudo como dantes no quartel de Abrantes". Sim, apesar de
todo o futebol que nasce amiúde nos campos de várzea, nos chãos de terra
batida, em cada rincão nacional, a dinâmica do futebol brasileiro permanecerá imprimindo
a marca de talentos tipo exportação. Aliás, como se faz, há pouco mais de 500
anos, com toda a matéria-prima explorada por aqui.
Segundo Jean-Paul Sartre,
filósofo francês, "Toda palavra tem consequências, todo silêncio,
também". Essa é uma citação que diz muito nesse contexto. Abster-se de
olhar e de enfrentar as heranças do nosso colonialismo, seja de que forma ele
se apresente diante de nós, não só faz perpetuar e aprofundar a dimensão dos
nossos prejuízos sociais, culturais e econômicos, como abre precedentes perigosíssimos
para afrontas diversas à nossa cidadania e à nossa soberania.
Assim, que a decepção pela derrota,
de hoje, permita aos brasileiros de todas as flâmulas futebolísticas refletir a
respeito de que “Podemos maquiar algumas respostas ou podemos silenciar
sobre o que não queremos que venha à tona. Inútil. A soma dos nossos dias
assinará este inventário. Fará um levantamento honesto. Cazuza já nos cutucava:
suas ideias correspondem aos fatos? De novo: o que a gente diz é apenas o que a
gente diz. Lá no finalzinho, a vida que construímos é que se revelará o mais
eficiente detector de nossas mentiras” (Martha Medeiros - jornalista e
escritora brasileira).