sábado, 29 de fevereiro de 2020

Reflexões que o COVID-19 deve nos trazer...

O tênue limite entre o medo e a irresponsabilidade

 
Por Alessandra Leles Rocha

Essa não é a primeira e, com certeza, não será a última epidemia a assolar o planeta 1. O que a torna tão assustadora, talvez, não esteja exatamente no seu grau de virulência, mas na conjuntura socioambiental que dispomos. Depois de tantas revoluções industriais, de tanta urbanização, de tanto crescimento populacional seria interessante parar e pensar diante desse momento tão intenso.   
O desconhecido é sempre um enigma a ser desvendado. No caso da Ciência, cada novo vírus que emerge entre nós demanda o seu próprio tempo para ser plenamente conhecido e tratado satisfatoriamente. Até agora, por exemplo, há uma corrida científica para se descobrir o hospedeiro ou os hospedeiros possíveis para o COVID-19 2.
Do ponto de vista microbiológico, tendo em vista se tratar de um RNA vírus, tal como o Ebola, Hepatite C e o HIV, alguns países já pensam em utilizar medicamentos retrovirais destinados ao tratamento da AIDS para tratar o COVID-19 3; mas, outras possibilidades, também, estão sendo testadas.
Enquanto os olhos do mundo se voltam para a nova epidemia global, a vida no seu cotidiano parece ficar em suspenso. O que começou pela China, um dos grandes gigantes da economia mundial, fez com que o impacto sobre a cadeia global de suprimentos tecnológicos fosse imediato, em razão da suspensão na produção, ou seja, paralisia das atividades. Como consequência, as bolsas de valores começaram a cair e o temor em relação à desaceleração econômica mundial cresce a cada novo boletim de notícias 4.
Quem diria que algo invisível seria capaz de colocar em xeque-mate o mundo globalizante e globalizado! Um vírus. Apenas um tipo e tamanha perplexidade se instalou entre nós. A questão é que estamos literalmente imersos em um oceano deles. Uma grande maioria encontra-se na natureza. Principalmente em áreas florestais. Todos invisíveis. Todos imperceptíveis até...
Mas, alheio a esse fato se alastra pelo Brasil o discurso do progresso pelo progresso, o que se inicia pela destruição maciça das nossas reservas naturais ou florestais, como queiram. Incêndios. Desmatamentos. Garimpagem ilegal em reservas indígenas. Enfim... Chega, então, pelos veículos de comunicação e informação que, na atual conjuntura, sem nenhum constrangimento, um deputado federal do Estado de Roraima impôs a força de uma motosserra para derrubar o bloqueio que dá acesso à Terra indígena Waimiri Atroari, ocupada pelo povo Kinja, na BR-174 5.
Na visão dele e de tantos outros apenas a “libertação” para o desenvolvimento nacional. Quando, na verdade, se trata da mais pura tradução do progresso irrefletido. Nas entrelinhas da devastação natural escondem-se mistérios, os quais não sonha “nossa vã filosofia”. A perda da Biota e a usurpação do espaço indígena para apropriação pelo homem branco, no fim das contas, não passa da ponta do iceberg.
Armazenados em reservatórios biológicos existentes nesses espaços geográficos estão inúmeras espécies de vírus, bactérias, protozoários, helmintos e fungos que podem gerar transtornos inimagináveis; sobretudo, pelo fato de que muitos são ainda desconhecidos pela própria Ciência. Os impactos sentidos pela sociedade brasileira, na atualidade, quanto à Dengue, Zika e Chikungunya, por exemplo, já fornecem demonstrações suficientes para, ao menos, dimensionarmos o que estaria pela frente.
No caso dos exemplos acima, eles estão situados dentro de um grande grupo denominado Arbovírus (Arthropod-borne virus). Isso significa que “parte do seu ciclo de replicação ocorre nos insetos, podendo ser transmitidos aos seres humanos e outros animais pela picada de artrópodes hematófagos. Dos mais de 545 espécies de Arbovírus conhecidos, cerca de 150 causam doenças em humanos. As arboviroses têm representado um grande desafio à saúde pública, devido às mudanças climáticas e ambientais e aos desmatamentos que favorecem a amplificação, a transmissão viral, além da transposição da barreira entre espécies” 6·.
O senso de responsabilidade nacional precisa, portanto, estar além do que se vê ou se imagina. Em pleno século XXI, ainda, somos vítimas da Dengue, da Febre Amarela, da Malária, da Tuberculose, da Esquistossomose, da Hanseníase, conhecidas como Doenças Tropicais. “Presentes em 149 países, as doenças tropicais negligenciadas representam um inimigo que se aproveita da fragilidade social e econômica. São vírus, bactérias e parasitos que atingem um bilhão de pessoas, sobretudo na faixa tropical do globo, onde se concentram as populações mais vulneráveis dos países em desenvolvimento. Com a intensa circulação de pessoas, o problema se torna cada vez mais uma questão global. [...] Mais do que um problema para a saúde, as doenças negligenciadas configuram um entrave ao desenvolvimento humano e econômico das nações” 7.  Em outro recorte, havíamos erradicado o Vírus do Sarampo e veja só o que aconteceu graças, em grande parte, a disseminação irresponsável de Fake News.
Enfim, quem não se lembra do filme Contágio (Contagion), de 2011 8?! Não se trata, então, de uma mera discussão ecológica, econômica ou de saúde pública. Se o COVID-19, que apareceu primeiramente na China, já alcançou o mundo, com exceção da Antártida, e afetou a economia brasileira do ponto de vista da queda das exportações, falta de peças para a indústria de eletrônicos e eletrodomésticos, fuga de investimentos, alta do dólar, crise no turismo 9, o que seria de uma epidemia nos mesmos moldes emergida aqui? Como o restante do mundo enxergaria o Brasil?
Dizem por aí, que “quem brinca com fogo acaba queimado”. Nosso país precisa saber exatamente que postura quer adotar para seguir em frente, que imagem quer transmitir dentro e fora das suas fronteiras; afinal de contas, como disse Abraham Lincoln 10, “Você não consegue escapar da responsabilidade de amanhã esquivando-se dela hoje”.


10 Foi o 16º Presidente dos EUA e o 1º do Partido Republicano.


sábado, 22 de fevereiro de 2020

Em tempos de Carnaval...


Em tempos de Carnaval...



Por Alessandra Leles Rocha



Enfim, o Carnaval. A festa de Momo está em cada canto do país. Mas, há muito tempo já não é a mesma. Não porque o anfitrião gorducho emagreceu. Ou a festa saiu dos clubes para ganhar a dimensão das avenidas e ruas das capitais e do interior. Ou porque as marchinhas passaram a dividir espaço com outros ritmos e estilos musicais. ...A questão é que o Carnaval parece não conseguir mais cumprir o papel de um alento social que durava quatro dias por ano.
Sim, a velha e boa catarse carnavalesca apresenta-se inócua diante da rudeza cotidiana. Que pena! A alegria satírica não consegue mais esconder a insatisfação, a frustração, o desconforto. Alegorias, adereços, confetes e serpentinas colorem, divertem, agitam; mas, são incapazes de sublimar o que transcende à mente e alcança um brilho embaçado na retina.
Nem todos os mascarados desfilam pelos cordões e blocos. E muita gente já se deu conta disso. Afinal, as máscaras tornaram-se desnecessárias diante de uma verborragia explicitamente agressiva e contínua. Atos, intenções e omissões estão às claras para quem estiver disposto a enxergar. Para isso basta retirar do rosto o nariz de palhaço ou se despedir da fantasia de Bobo da Corte.
Sabe, ninguém espera mais pela decepção da Quarta-Feira de Cinzas. Era assim em outros tempos, quando as notícias que iriam repercutir em desdobramentos ruins ou péssimos para a população chegavam logo após o fim do carnaval, momento tido como o início dos trabalhos no país.  Agora não. Em conta gotas, em meio à chuva, elas chegam para curar a ressaca de cada um dos quatro dias. Literalmente o folião brasileiro está “afogando as mágoas”.
E quantas? Entre mazelas crônicas, desastres anunciados e absurdos sem resposta, a lista se agiganta. Mas quem se importa? Mágoas que deveriam nos unir pela empatia, ainda refletem um sentimento estranho de isolamento social. Como se a mágoa de um não pudesse ser, também, a do outro. Como se não pudéssemos exercer a fraternidade sem obstáculos, rótulos, classes, gêneros,... Tornando essas mágoas menos difíceis e intransponíveis. Ah, e como seria bom!
As pessoas se enganam quando restringem à comunicação apenas ao verbal e ao escrito. Em tempos de Carnaval, fantasias e adereços são formas de linguagem muito importantes, porque expressam, mesmo que de forma inconsciente, as convicções, os pensamentos, as crenças e os valores de cada um.  Que bom seria, então, se elas se transformassem em um belo discurso coletivo, a céu aberto, contra a Xenofobia, a Homofobia, a Misoginia, o Racismo, a Violência gratuita.
Essa é a expressão catártica que deveríamos promover conjuntamente. Ainda que a selvageria faça parte da essência humana, nossa espécie já passou por poucas e boas até aqui para continuar manifestando que não evoluiu nem um pouquinho. O apego ao primitivismo só faz reduzir dia a dia o que podemos ser ter e construir.
Mas, se o Carnaval ainda consegue nos agregar de algum modo, que possamos nos desapegar, então, “do lado escuro da força”. Como dizem por aí, “gente é pra brilhar, gente é pra ser feliz”. Esse deve ser o lema do estandarte geral. Ah, só não pense que por ser Carnaval isso signifique mergulhar de cabeça em potes de purpurina e lantejoulas, ou sair distribuindo euforia desmedida por aí.
É brilhar o que se tem de melhor; como fogos de artifício das virtudes, das ressonâncias humanas, da alegria genuína e simples.  É ser feliz na busca de uma felicidade menos egocêntrica, individualista, materialista. Ou seja, um brilho e uma felicidade que só encontram paz e sossego para florescer em um ambiente que cuida para combater a hostilidade, a perversidade, a indiferença, a intolerância ou quaisquer outras formas de abismo social. 
Aí, quem sabe, poderemos ver muita gente de alma lavada, cantarolando de novo o samba enredo da União da Ilha do Governador, do Carnaval carioca de 1982, que diz: “É hoje o dia da alegria e a tristeza/ Nem pode pensar em chegar/ Diga espelho meu / Se há na avenida / Alguém mais feliz que eu...”.