sábado, 22 de fevereiro de 2020

Em tempos de Carnaval...


Em tempos de Carnaval...



Por Alessandra Leles Rocha



Enfim, o Carnaval. A festa de Momo está em cada canto do país. Mas, há muito tempo já não é a mesma. Não porque o anfitrião gorducho emagreceu. Ou a festa saiu dos clubes para ganhar a dimensão das avenidas e ruas das capitais e do interior. Ou porque as marchinhas passaram a dividir espaço com outros ritmos e estilos musicais. ...A questão é que o Carnaval parece não conseguir mais cumprir o papel de um alento social que durava quatro dias por ano.
Sim, a velha e boa catarse carnavalesca apresenta-se inócua diante da rudeza cotidiana. Que pena! A alegria satírica não consegue mais esconder a insatisfação, a frustração, o desconforto. Alegorias, adereços, confetes e serpentinas colorem, divertem, agitam; mas, são incapazes de sublimar o que transcende à mente e alcança um brilho embaçado na retina.
Nem todos os mascarados desfilam pelos cordões e blocos. E muita gente já se deu conta disso. Afinal, as máscaras tornaram-se desnecessárias diante de uma verborragia explicitamente agressiva e contínua. Atos, intenções e omissões estão às claras para quem estiver disposto a enxergar. Para isso basta retirar do rosto o nariz de palhaço ou se despedir da fantasia de Bobo da Corte.
Sabe, ninguém espera mais pela decepção da Quarta-Feira de Cinzas. Era assim em outros tempos, quando as notícias que iriam repercutir em desdobramentos ruins ou péssimos para a população chegavam logo após o fim do carnaval, momento tido como o início dos trabalhos no país.  Agora não. Em conta gotas, em meio à chuva, elas chegam para curar a ressaca de cada um dos quatro dias. Literalmente o folião brasileiro está “afogando as mágoas”.
E quantas? Entre mazelas crônicas, desastres anunciados e absurdos sem resposta, a lista se agiganta. Mas quem se importa? Mágoas que deveriam nos unir pela empatia, ainda refletem um sentimento estranho de isolamento social. Como se a mágoa de um não pudesse ser, também, a do outro. Como se não pudéssemos exercer a fraternidade sem obstáculos, rótulos, classes, gêneros,... Tornando essas mágoas menos difíceis e intransponíveis. Ah, e como seria bom!
As pessoas se enganam quando restringem à comunicação apenas ao verbal e ao escrito. Em tempos de Carnaval, fantasias e adereços são formas de linguagem muito importantes, porque expressam, mesmo que de forma inconsciente, as convicções, os pensamentos, as crenças e os valores de cada um.  Que bom seria, então, se elas se transformassem em um belo discurso coletivo, a céu aberto, contra a Xenofobia, a Homofobia, a Misoginia, o Racismo, a Violência gratuita.
Essa é a expressão catártica que deveríamos promover conjuntamente. Ainda que a selvageria faça parte da essência humana, nossa espécie já passou por poucas e boas até aqui para continuar manifestando que não evoluiu nem um pouquinho. O apego ao primitivismo só faz reduzir dia a dia o que podemos ser ter e construir.
Mas, se o Carnaval ainda consegue nos agregar de algum modo, que possamos nos desapegar, então, “do lado escuro da força”. Como dizem por aí, “gente é pra brilhar, gente é pra ser feliz”. Esse deve ser o lema do estandarte geral. Ah, só não pense que por ser Carnaval isso signifique mergulhar de cabeça em potes de purpurina e lantejoulas, ou sair distribuindo euforia desmedida por aí.
É brilhar o que se tem de melhor; como fogos de artifício das virtudes, das ressonâncias humanas, da alegria genuína e simples.  É ser feliz na busca de uma felicidade menos egocêntrica, individualista, materialista. Ou seja, um brilho e uma felicidade que só encontram paz e sossego para florescer em um ambiente que cuida para combater a hostilidade, a perversidade, a indiferença, a intolerância ou quaisquer outras formas de abismo social. 
Aí, quem sabe, poderemos ver muita gente de alma lavada, cantarolando de novo o samba enredo da União da Ilha do Governador, do Carnaval carioca de 1982, que diz: “É hoje o dia da alegria e a tristeza/ Nem pode pensar em chegar/ Diga espelho meu / Se há na avenida / Alguém mais feliz que eu...”.