domingo, 31 de janeiro de 2021

Em eterno flerte com os fisiologismos e seus afins


Em eterno flerte com os fisiologismos e seus afins

 

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

 

Depois de séculos apanhando das mazelas decorrentes, em grande parte, da corrupção, é claro que a percepção a respeito se acentuaria entre os cidadãos.  Paira uma indigesta indignação fermentada a doses generosas de insatisfação diária, em relação a tais comportamentos; mas, ainda lhes carece a clareza holística sobre todos os vieses em que se desdobram a corrupção nacional. Particularmente quanto ao fisiologismo político.

Não sei se por ignorância ou por mera seletividade de raciocínio, o fato é que grande parte da população acredita que a corrupção se restrinja a si mesma, ou seja, que não tenha um mecanismo suporte que a sustente. De modo que entram e saem legislaturas e o mal permanece ora mais visível ora mais obscuro; mas, sempre lá, cumprindo os ritos dilapidadores a que se propõe.

Porque embora não encontrem amparo na legalidade, há tempos já se institucionalizaram na legitimidade discursiva de que não exista outros caminhos para governar que não estes. Então, acenam para a eleitor seu pseudorrepúdio à corrupção; mas, desconversam ou silenciam em relação ao fisiologismo. O que significa que, batendo com vigor a bateia, o problema não está nesse ou naquele cidadão e/ou partido, ou seja, já está amplamente disseminado pelos escalões do poder.

Talvez seja preciso, então, com certa urgência, que uma nova estirpe de eleitores emerja para promover uma ruptura com esses paradigmas. Gente mais atenta e mais consciente sobre o seu papel na manutenção de desvios tão graves. Sim, porque a conquista do direito ao voto, também, não resume em si mesma. Direitos implicam em deveres, em obrigações. Não basta saber de cor o número do candidato e digitá-lo na urna eletrônica.

Aliás, verdade seja dita, muitos eleitores passados poucos meses do pleito eleitoral nem se lembram para quem destinaram voto. E se não lembram, certamente não cobrarão os compromissos assumidos na plataforma de campanha. Dentro desse “modus operandi” de profunda imprevidência, o eleitor vai retroalimentando os descaminhos da política, engordando o fisiologismo a fim de perpetuar a corrupção.

É, caro (a) leitor (a), a sociedade reclama; mas, se esquece de que tem culpa sobre seu próprio infortúnio.  Fazendo vista-grossa para os registros da sua história, sem se preocupar em interromper o fluxo desastroso das más práticas, os problemas foram se cronificando e acentuando as consequências. Cada vez mais difíceis de solucionar.

A inação e o silêncio, ao contrário do que muita gente acredita, não é solução de nada. Em curto prazo eles mascaram o que vai fugir ao controle mais cedo ou mais tarde, atingindo a todos em maior ou menor escala. No Brasil, talvez, isso se explique melhor pelo fato de uma relação muito frágil das pessoas com a sua cidadania. O que é ser cidadão não parece muito claro e bem compreendido por elas.

Já dizia Coco Chanel, “Não importa o lugar de onde você vem. O que importa é quem você é! E quem você é? Você sabe? ”. Portanto, não sei se os brasileiros sabem o que são, se compreendem o significado da sua identidade nacional, da sua essência cidadã. 

Digo isso, porque em pleno século XXI observo vivo um espírito colonial pulsante, como nos idos séculos em que vivíamos sob a batuta da metrópole portuguesa. É só revisitar brevemente as páginas da história para se surpreender com um “antes" e “depois” de extrema similaridade; sobretudo, nos campos da política e sociais. Uma República com extrema afeição monarquista; já pensou?!

Tudo isso pode ser engraçado; mas, não é e nem deveria. Essa resistência à transformação, à evolução dos tempos, é profundamente nociva; especialmente, quando se trata de abolir com hábitos e comportamentos prejudiciais à própria sobrevivência social, constituindo camadas de desigualdade e indignidade sem fim. Está nas mãos da sociedade se reposicionar diante dos fatos, harmonizando discursos e ações, desconstruindo tamanhos malefícios e contradições.

Mas, enquanto houver quem se sinta justificado por esse cenário para promover as suas “pequenas corrupções” no seio de sua própria teia fisiológica, tudo permanecerá como está. Choramingos e aplausos disputando o mesmo espaço na sinfonia dos desafinados; em eterno flerte com os fisiologismos e seus afins.  


sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

Indignados, e???


Indignados, e???

 

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

 

Em meio aos avanços do Sars-Cov-2 surgiu, também, o vírus da indignação. Razões para nos sentirmos indignados não faltam. Teria sido melhor evitá-lo, usando mais o bom senso, a razão, a consciência; mas, “antes tarde do que nunca”. O péssimo hábito de deixar rolar, de pagar para ver, nunca deveria ser opção porque a conta vem sempre muita alta.

Só que agora estamos indignados, e??? Por si só esse sentimento não vai colocar a casa em ordem e nem transformar tudo em um piscar de olhos. A indignação acelera a circulação, as batidas do coração, mas não acelera o tempo; pois, o ritmo da vida obedece ao desenho que foi pensado dentro de uma conjuntura. Certo ou errado é assim que funciona.

Quantas outras vezes já vi gente indignada arrancando os cabelos da cabeça e depois se repetindo nos mesmos erros. A indignação lhes foi insuficiente para reverem os conceitos, quebrarem os paradigmas obsoletos, desconstruírem as narrativas esfarrapadas. Porque ela incendeia num dado momento; mas, depois... depois suas cinzas caem no poço profundo do esquecimento, soterradas por outras pilhas de indignações variadas que vão surgindo dia a dia.

Aprendi com os anos que as perspectivas acompanham o olhar pessoal de cada um. Por isso não é possível afirmar, nesse dado instante, que na sua coletividade mais inteira possível emana os mesmos sentimentos de indignação. Ensimesmados em suas bolhas de individualismo, muitos não estão nem aí para o que acontece além de seu próprio mundinho. Suas “indignações” não passam de azedume queixoso de quem não sabe a extensão da complexidade da (com) vivência humana. O que torna inútil a espera de que haja mesmo um consenso.

Talvez seja isso o que esteja exaurindo, além da conta, a nossa energia enquanto coletividade. Porque a indignação quando rompe o casulo significa um estado limítrofe do caos. São situações graves, urgentes, sérias o bastante para romper com a alienação, com a espera. Tratam-se de constelações de problemas, cuja estrela central é orbitada por inúmeras outras, que desencadeiam desequilíbrios em direções, sentidos e velocidades devastadoras. No momento, a pandemia é o centro; mas, diversas outras questões no país influenciam nos níveis de tensão e, por consequência, de indignação.

Entre escombros de uma realidade que somatiza centenas de milhares de mortos e infectados por um vírus, a sociedade caminha sobre trilhas de desalento, de miséria, de desemprego, de violência, de corrupção, ... um panorama que, inevitavelmente, compromete a resiliência, a perseverança, a capacidade de acreditar no amanhã; mas, inflama a chama indignada, ou pelo menos deveria.

De modo que esse “processo” enfraquece o ânimo, o espírito humano, porque mexe nas raízes mais profundas da mente, o centro de controle absoluto das emoções e dos sentimentos. Como se ligássemos um motor a explosão e ele consumisse de uma só vez todo o combustível. O que faz com que a indignação, nesses moldes, se resuma a mero ato simbólico de dignidade, ou seja, o que resta depois que a consciência entorpecida pela displicência se abdicou de pensar e agir no tempo certo, causando dramas, prejuízos e falências. Uma gota de fino perfume no fundo do frasco.

Pouco? Talvez sim. Talvez não. Vai depender de como redescobrir, a partir dessa indignação, os caminhos que levem as soluções necessárias. Coco Chanel dizia, “Já que tudo está na nossa cabeça, é melhor a gente não perdê-la”; por isso, a indignação deve ferver em fogo baixo para não comprometer os sentidos, incluindo a coragem. Porque “Perigos e dificuldade não nos travaram no passado e não nos assustarão agora, mas devemos preparar-nos para eles, como homens determinados quanto ao que pretendem e que não perdem tempo com conversas vãs e inação” (Nelson Mandela).


quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

Os fins, os meios, as traições


Os fins, os meios, as traições

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

 

Embora a Pandemia esteja fazendo estragos no país, é estranho como as principais casas legislativas, Câmara dos Deputados e Senado Federal, parecem totalmente absorvidas pela eleição de suas principais cadeiras. Uma preocupação generalizada em torno de possíveis “traições” partidárias figura, inclusive, como assunto de destaque na mídia nacional. Vejam que não restou nem o cuidado de “tampar o sol com a peneira” para disfarçar como os interesses pessoais deles estão cada vez mais acima de quaisquer interesses da sociedade. E legislando em causa própria vão tecendo uma traição contínua ao povo que os elegeu.

Sim, porque diante de antigas e recentes mazelas, há tempos que o Brasil carece um pouco mais de atenção e vontade de seus congressistas. Porque não se trata só de remover as teias de aranhas sobre pilhas de projetos e processos inertes; mas, no significado prático disso. Não, não se trata apenas de prejuízos diversos para a população. O não “arregaçar as mangas” do Congresso nacional, também, se associa diretamente as posições retardatárias que o país ocupa no cenário mundial.

Sejamos honestos que os nossos nobres representantes não se parecem muito afeitos a se inspirar pelas novidades que acontecem ao redor do globo e resultam em melhorias significativas nos campos do desenvolvimento. Não os vejo olhar para a contemporaneidade e extrair dela as prioridades na hora de pautar as discussões e as deliberações em plenário. Vivem negociando, barganhando interesses, enquanto o objeto principal a ser decidido fica relegado ao fim da fila; se é que ela tem mesmo um. Como se o país pudesse esperar e, por consequência, toda a sua gente.

E isso é algo realmente merecedor de reflexão, porque um processo semelhante tem sido dispensado pelo Executivo; sobretudo, nessa Pandemia, e causado profundo descontentamento e desconforto sociedade afora. Ainda que a postergação seja um comportamento já incorporado pela maioria da população; não significa que ela tenha perdido sua nocividade.  O atraso, a demora, podem matar, como temos visto recentemente acontecer.

 O hábito de trivializar ideias e comportamentos a fim de legitimá-los é, portanto, além de algo bem ultrapassado, muito perigoso. Pena que é, justamente, isso o que se tenta fazer em relação ao fisiologismo no país. Começando pela prática de sucessões quase que hereditárias, as quais alçaram famílias inteiras ao apogeu da política brasileira, a história foi desenhando um panorama de condutas e práticas condenáveis alicerçadas nas trocas de favores que viessem a satisfazer apenas os interesses político-partidários, que persistem ainda hoje.

De modo que no frigir dos ovos, as promessas de campanha não conseguem ultrapassar as fronteiras da linguagem verbal para se materializarem. O que não é difícil perceber, quando a cada novo pleito se ouvem plataformas, defendendo demandas já manifestas tantas vezes no passado, que haveria tempo hábil para que tivessem sido solucionadas, mas não foram. Apesar disso, como a “credulidade” ainda teima em resistir, essas promessas se traduzem no sucesso eleitoral de alguns.

No entanto, à revelia de vontades e quereres de muitos, por sorte a roda da vida está começando a girar diferente. Talvez, finalmente, tenhamos alcançado o que disse Mário Sérgio Cortella sobre a esperança, ou seja, não confundirmos esperança de o verbo esperançar com esperança do verbo esperar. “[...] Esperançar é se levantar, esperançar é ir atrás, esperançar é construir, esperançar é não desistir! Esperançar é levar adiante, esperançar é juntar-se com outros para fazer de outro modo” (Trecho retirado do livro “Educação e Esperança”[1]).

Isso significa que a sociedade, mesmo em seus vieses mais abandonados e carentes, começa a dar sinais de almejar por uma representatividade que de fato lhe represente. Que seja sua voz. Que lute por suas demandas e sonhos. Que seja ponto de consenso; um denominador comum nas tribulações. Que valorize e respeite o voto que recebeu de você, na simbologia máxima que ele traduz. Afinal, de cada beijo traidor recebido até hoje, todos já estão fartos de saber que o fim nunca foi diferente daquele da história original. Então...


terça-feira, 26 de janeiro de 2021

Quem sabe com “jeitinho”???


Quem sabe com “jeitinho”???

 

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

 

Quem diria que o brasileiro, algum dia, iria se rebelar contra o “jeitinho”! Esse comportamento nacional instituído e quase “folclórico”, de repente passou a ser percebido com um desvio de caráter importante e merecedor de repreensão a altura do agravo. Essa história de ter gente “furando fila” para se vacinar não caiu nada bem, nesses tempos pandêmicos.

Depois de tanta controvérsia, desinformação e mentiras, a grave situação que se encontra o país fez grande parte da população “cair na real” e passar a defender a vacinação. Mas, como não poderia deixar de ser, alguns aproveitaram a deixa para não perder o hábito do “jeitinho”. E de ponta a ponta do território notícias do mal feito vieram à tona para a vergonha de alguns e indignação de muitos outros.

O importante dessa mudança de perspectiva é que a tolerância social parece ter mesmo chegado ao fim. As pessoas estão entendendo a dimensão dos prejuízos que esses supostos “deslizes” desencadeiam em termos coletivos. A velha “carteirada” acentua um tipo de prerrogativa que só faz legitimar uma contradição; afinal de contas, somos ou não “todos iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza” 1?

E esse movimento que distingue uns em detrimento de outros mascara e invisibiliza outras tantas más condutas sociais, tais como o racismo, os preconceitos, as intolerâncias e as violências. Porque se estabelece um consentimento social, ainda que velado, para fazer. Há uma conivência que se mantém até que alguém decida manifestar-se em oposição. O fato dessas práticas existirem há tempos não significa que sua essência antiética e imoral foi suprimida. De modo que sua existência parece mais relacionada a uma posição de simples afronta deliberada.   

Assim, ao contrário da sociedade querer demonstrar o melhor de si na aplicação da excelência de suas virtudes, ela faz apologia do escracho. Age na contramão dos valores humanos, do balizamento das leis. E quando pega em flagrante desconversa, responde de maneira vaga e inconsistente, na espera de que tudo caia rapidamente no poço profundo do esquecimento. O que já deixa clara uma intenção subliminar de em uma próxima oportunidade repetir o feito.

A indignação que parece brotar nesse momento é, então, importante porque agora dá sinais mais consistentes do estabelecimento de uma correlação entre o “jeitinho” e a “corrupção”, por parte da sociedade. De repente encontrou-se o fio da meada que liga esses dois pontos obscuros da história nacional, os quais tanto maculam a identidade do país. Afinal, desde os primórdios, há mais de 500 anos, registra-se o movimento dessas práxis na resultante de uma expressão bem conhecida, o “toma lá dá cá”.

A sociedade tem tido a oportunidade de ver materializados os prejuízos de diversas ordens por conta dos veios de corrupção instituídos nas diversas esferas de poder e, finalmente, entendeu que é ela quem paga a conta no final. Os erros alheios lhe caem pesados sobre os ombros, em uma dinâmica que parece sem fim. De modo que todos os sacrifícios realizados pelos cidadãos não se convertem em benefícios; sobretudo, quando eles mais precisam.

Tudo isso possibilitou desconstruir a narrativa das pequenas e das grandes corrupções para a compreensão de que não há gradação nesse caso. Uma torneira de reservatório gotejando horas a fio vai desperdiçar o mesmo tanto que poderia despejar se aberta de uma única vez. Nem tampouco, de que há explicações capazes de justificar um ato de corrupção seja ele qual for.

Cansada de dar “murros em ponta de faca” a sociedade, talvez não em sua totalidade, mas em grande parte, decidiu se posicionar a respeito. Sair da teoria para a prática, no que diz respeito a exercitar a sua cidadania. Uma transformação que não se mede pela amplitude do passo, mas pela sua significância. Porque romper com aquilo que está incrustado no inconsciente coletivo não é nada fácil. Talvez não extirparemos a corrupção e o “jeitinho” do país; mas, só de não aceitarmos mais, de nenhuma forma, a sua impunidade, isso já será algo extraordinário.

  



1 Art. 5º, CF de 1988. 

segunda-feira, 25 de janeiro de 2021

Mariana... Brumadinho... Brasil...


Mariana... Brumadinho... Brasil...

 

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

 

Há dois anos o Brasil viu repetir uma tragédia ambiental. Era Brumadinho, MG. Isso porque, quatro anos antes, uma outra havia ocorrido em Mariana, MG. Fruto do descaso e da omissão governamental, de grandes empresas e, de algum modo, da própria sociedade que se absteve e se abstém de exercer o seu papel cidadão consciente e fiscalizador.

De uma hora para outra o país passou a se dar conta da dimensão dos impactos negativos que se escondem atrás dos grandes empreendimentos; sobretudo, os mineradores.  Entre acenos e promessas no campo das melhorias aos municípios e seus Estados, na geração de emprego e renda para a população, as preocupações parecem se esvair como fumaça e dar lugar a uma esperança gigantesca por dias melhores. Que durante algum tempo podem até se configurar realidade; mas, o que está destinado ao risco um dia cobra o seu preço.

Nesse caso, cobrou duas vezes nas tragédias; mas, vem cobrando muitas outras mais da própria sociedade local. Cobranças diretas e indiretas que fazem reviver todos os dias as feridas abertas pelo o que aconteceu. Ainda há corpos não encontrados. Ainda há pessoas desalojadas. Ainda há lembranças irrecuperáveis. Ainda há tanto por fazer e tentar restaurar.

E por mais solidários que sejam os brasileiros, essa dor, desde o primeiro momento, pareceu muito pontual. Difícil de projetar em significância, em profundidade, para se apropriar e realmente entender. Aquelas eram vidas que existiam sob uma realidade muito particular, muito específica daquele lugar; dentro de uma mineiridade meio urbana meio rural, permeada de simplicidade e delicadeza, como se presa a um recorte de um tempo bom.

Mas, como a vida tem lá a sua dinâmica, eis que, de repente, o mundo foi arrebatado por um vírus desconhecido num piscar de olhos, também. Dessa vez, seriam bilhões de seres humanos surpreendidos por uma nova realidade que os desalojaria das suas zonas de conforto e lhes imporia um novo modo de viver.

As centenas de milhares iriam morrer dessa vez. Em comum, com aquelas tragédias mineiras, a dor de uma despedida à distância, silenciosa, sem afagos, sem afeto. Um rito esvaziado pela impossibilidade repentina de um simples adeus. Corpos em valas comuns, abertas em esforços diários para dar vazão ao morticínio da doença.

E na medida dos dias, do isolamento, das incertezas, de uma vida virada de cabeça para baixo estávamos mais próximos de Brumadinho e Mariana, do que poderíamos algum dia supor. Ainda que a realidade das barragens continuasse não nos pertencendo, as fronteiras do mundo haviam sido implodidas para que experenciássemos o significado mais difícil do inesperado.

Dessa vez, não era obra do homem; mas, permanecia totalmente dependente do seu protagonismo, da sua inciativa, da sua humanidade para resolver. Afinal de contas, a fila do desalento ficou muito maior. Todos perderam. De um jeito ou de outro, a corrente de impacto confrontou a todos.

Se havia alguém que não tivesse entendido muito bem a situação em Brumadinho e Mariana, dispensando comentários infelizes e/ou inoportunos, o COVID-19 chegou para deixar tudo em pratos limpos. Inclusive, de uma maneira melhor do que qualquer lição de moral, ou seja, pela vivência pessoal. E aprender na escola da vida pode ser muito mais desafiador e significativo do que se possa imaginar.

Hoje, podemos verdadeiramente compartilhar as lágrimas, a dor, a angústia, o sofrimento e tudo mais que esses brasileiros começaram a sentir bem antes de nós. Agora sim, temos lastro para tecer essa empatia, porque vimos pela luz de nossos olhos o espelho da alma de cada um deles. Nossas demandas são deles e as deles são nossas também. Quaisquer que sejam as circunstâncias desafiadoras para quaisquer entes dessa federação, elas são de todos, porque o país é um todo indivisível. Que não nos esqueçamos disso jamais: as tragédias não escolhem geografia.

 

domingo, 24 de janeiro de 2021

Leitura. Literatura... O fantástico mundo das palavras.


Leitura. Literatura... O fantástico mundo das palavras.

 

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

 

Vez por outra, discussões literárias emergem furiosas na sociedade, o que de certo modo é muito bom. No entanto, há de se permitir uma análise que seja a mais ampla e plural possível para não cair no raso das ideias.

Partindo do ponto de que a leitura será sempre a melhor ferramenta de compreensão do ser humano e da vida, ela representa o eixo de sustentação para a aquisição, reformulação e construção de todo o conhecimento. Por isso, de bulas de medicamentos a manuais técnicos as pessoas estão sempre exercitando a tarefa de ler.

Concordo que nem sempre se trata de uma leitura espontânea, correta, aprofundada, como deveria ser; mas, leem. O corre-corre do mundo contemporâneo tem prejudicado a leitura e a conduzido para um nível de superficialidade preocupante. Absorvidos por uma pressa borbulhante, os seres humanos têm se tornado exímios leitores de títulos e manchetes; bem como, alvos fáceis para a desinformação por meio de Fake News.

De modo que as leituras ao invés de rechaçarem esse movimento, por meio de uma argumentação consistente, passaram a tentar se enquadrar a nova realidade. O que significa que abdicaram de muitos de seus parâmetros constitutivos para tornarem-se mais palatáveis ao público leitor, ou seja, textos cuja compreensão ficou cada vez menos exigente. Não diria uma leitura descartável; mas, com um teor de qualidade visivelmente aquém para contribuir com a formação intelectual do indivíduo.

O que poderia interferir nessa dinâmica são os profissionais do campo das línguas e literaturas. No entanto, eles foram traídos pelas conjunturas burocráticas, que lhes tolheram em muito as possibilidades; sobretudo, nas escolas públicas. Nem sempre os alunos são presenteados com professores diferentes, cada um voltado a trabalhar uma área específica da Língua Portuguesa – Gramática, Literatura e Interpretação de Textos, Redação. E, quase sempre, a gramática ocupa o maior percentual da carga horária.

De modo que o modelo vigente limita eventuais possibilidades de desenvolver projetos, inclusive interdisciplinares, na área de literatura. Falo em projetos, porque vejo neles o melhor caminho de desenvolvimento de um público leitor assíduo e consciente. Além disso, o compartilhar com outras áreas, como a história, a filosofia, a sociologia, por exemplo, traz o benefício de dividir as responsabilidades desse ensino e promover a construção de uma rede de conexões multifocais entre as informações obtidas, facilitando retenção da aprendizagem dos alunos e repercutindo em um melhor desempenho destes.

Sem contar o benefício que trariam no campo do cânone literário. O papel deste é estabelecer um discurso formador de opinião sobre o que deve ser prioridade na formação intelectual de uma sociedade. Isso quer dizer que ele tem o poder de controlar as temáticas no contexto de uma determinada época, de modo que se estabelecem obras marginalizadas e não marginalizadas dentro da literatura; o que de tempos em tempos origina um resgate de literaturas de altíssima qualidade, as quais por diversas razões não receberam na época de sua publicação a valorização e o reconhecimento adequados.

Dentro desse contexto, os projetos oportunizam além da leitura de obras clássicas (canônicas) a discussão delas a partir de outras perspectivas, tais como ideologias, estilos, gêneros, geografia, sexo, raça, classe social. O que faz do texto algo além de si mesmo na percepção do aluno. Abre-se, então, um leque de possibilidades de criar afinidade com aquelas palavras. Sai da obrigação para o prazer e o interesse natural; porque se estabelece um viés de contextualização.  

Entretanto, infelizmente não são poucos os relatos de professores que, diante das limitações conjunturais, acabam escolhendo uma obra literária qualquer por bimestre, sem ao menos dispensarem uma leitura prévia das mesmas, visando apenas cumprir uma obrigação dentro do sistema e que esteja pautada na facilidade de entendimento pelos alunos e eventuais questões de custo do material.

Afinal de contas, nem todas as escolas dispõem de bibliotecas estruturadas e com acervos atualizados e em número satisfatório para atender as demandas dos alunos. E, lamentavelmente, livros ainda são considerados artigos de luxo no país, dada a realidade social. Poucos têm o privilégio de adquirir uma ou várias obras por mês, sem que isso interfira na dinâmica orçamentária de suas famílias.

No fundo, o que acontece no campo da literatura/leitura se estende por outros conteúdos e disciplinas; e acaba por ser absorvido e carregado vida afora pelos indivíduos. Os entraves e as deficiências no movimento constitutivo de um futuro leitor são decisivos, porque estamos falando de um processo cujas etapas estão alinhavadas entre si. Se perdemos o primeiro elo dessa corrente, que é o estímulo da leitura em casa, ainda há uma chance de recuperação por meio da escola. Mas, quando não acontece na escola aí as possibilidades se esvaem. É muito difícil, praticamente raro, resgatar a leitura em um indivíduo já em fase consolidada da vida.

É uma pena que a sociedade na sua inteireza não compreenda que esses desafios repercutem de maneira global entre todos os cidadãos. A limitação numérica do público leitor no país, as fragilidades qualitativas dessas leituras, a escassez de salas de leitura e bibliotecas públicas, ... tudo isso é parte integrante e integrada da nossa identidade cultural e nacional. É a visão panorâmica do que somos enquanto nação, refletida pelo que lemos, não lemos ou deixamos de ler.

Certamente que nem todas as leituras agradarão a todos. Leitura tem sempre traços de individualidade, de afinidade, de interesse. Daí a importância fundamental da acessibilidade a essa leitura, para que cada um possa construir seus próprios filtros e defender com argumentos próprios e consistentes as suas escolhas. Por isso, a leitura pode e deve ser considerada como o mais belo exercício de cidadania. Como vi escrito uma vez, “ler não dá sono; dá sonhos”.


sábado, 23 de janeiro de 2021

Até o limite da tolerância


Até o limite da tolerância

 

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

 

É sempre assim, só depois que os calos doem é que o cidadão reclama. Até que chegue nesse limite de tolerância, tudo vai sendo levado no improviso, na reza e na boa fé “de quem sempre espera um dia alcança”. Só que esse não deveria ser o roteiro da vida, porque, na verdade, não é mesmo. Não foi de repente que as mazelas brasileiras apareceram. Foi em um dos “de repente” da vida que, agora, elas se fizeram visíveis em forma e extensão.

Esse retrato caótico do morticínio pandêmico não é mais do que o resultado de décadas da trivialização dos problemas. Um dia o abandono social alcança a última fronteira de resistência. Infelizmente, a sociedade brasileira acredita que nem tudo faz parte da sua responsabilidade, que isso ou aquilo não é problema seu, ... No entanto, não é bem assim.    

Ora, o Brasil é um todo. A começar da cidadania que não distingue ninguém em graus de importância; todos são brasileiros. Gente que está sob o crivo das mesmas leis, dos mesmos impostos, das mesmas línguas oficiais – o português e a Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS), das mesmas demandas e desafios, enfim...

A questão é que há séculos a sociedade brasileira se permite enxergar desigual, com base no tripé status, poder e dinheiro. Assim, separam-se pessoas e geografias. Uns mais, outros menos. Em um movimento constante de inacessibilidade que se perpetua para não comprometer as regalias e os privilégios de uns em detrimento de outros.

Quando varrido por uma imprevisibilidade qualquer, o país sangra as suas cicatrizes não curadas. Eis que se percebe, então, a resposta de seu próprio abandono. Não houve quem, de fato, tivesse o visto com a seriedade e a profundidade necessárias. Ninguém que tivesse buscado pôr fim aos desmandos, aos obstáculos, os quais sempre desafiaram o raiar de uma grande e efetiva transformação.

De modo que, em pleno século XXI, o país se arrasta preso a correntes de séculos passados. Enquanto cede aos caprichos malfazejos dos interesses individuais espúrios, o país segue paralisado no contexto de sua coletividade. Não se desenvolve. Não progride. Não garante, nem mesmo, a dignidade básica de sua gente.

Algo que não é percebido apenas internamente. A identidade de um país enovelado pelas teias de sua história colonizadora já ganhou mundo. Ao ponto de se questionar quem seria de fato o Brasil, dadas as suas enormes incongruências discursivas e comportamentais. Uma nação que tenta se equilibrar sob o dilema daquilo que foi um dia e o que gostaria de ser ou ter possibilidade de.

Se não sabe quem é, não sabe exercer o seu papel no mundo.  Situação que não o deixa, portanto, passar incólume. Vez por outra, mete os pés pelas mãos. Cria constrangimentos. Passa vergonha gratuitamente. Como na máxima do adulto infantilizado e inconveniente. Mas, tudo isso tem efeito cumulativo.

É assim que se formam as “bolas de neve”. A ausência de comportamentos resolutivos apropriados desencadeia desdobramentos inimaginados em algum momento da história. É; porque a vida não corre numa linearidade roteirizada. O que pode parecer um pequeno deslize hoje, alguns amanhãs adiante cobram o preço de se configurarem incidentes diplomáticos importantes.

Essas reflexões me fazem crer, cada vez mais, que muito antes de uma liderança, o Brasil necessita de alguém disposto a interromper com seu ciclo de mazelas crônicas, a enfrentar os problemas na raiz.  O discurso das reformas, até hoje, foi sempre superficial e inconsistente porque parte da negação de ver holisticamente o próprio objeto fundamental, o país. Seria o mesmo que reformar um edifício da década de 30, do ponto de vista estético, e manter sua hidráulica e elétrica inalteradas.

A verdade absoluta é que a permissividade interesseira conduziu o Brasil à deterioração secular de sua estrutura. Temos déficits e gargalos mil, necessitando soluções urgentes; a fim de que se possa destravar as engrenagens do desenvolvimento contemporâneo nacional, antes que atinja o seu colapso total.

Não se tratam apenas de metamorfoses burocráticas, como defendem alguns, para alçar voos no cenário econômico mundial. É fundamental que o país demonstre exuberância competitiva, criativa, inovadora. É isso o que repercute na qualidade, no preço, na facilidade de entrega, ... na conquista do espaço mercantil e industrial global.

Já temos, portanto, lastro de história suficiente para admitir que nem colonizadores, nem burocratas, nem “salvadores da pátria”, nem caudilhos foram capazes de fazer pelo país o que ele realmente precisa. Porque todos esses foram capazes de enxergar; mas, optaram deliberadamente por não ver. E isso nos custou, até aqui, voltas ininterruptas sobre um círculo de desalento sem fim. Cabe, então, “desavestruzar” e pensar sobre os parâmetros que devem balizar nossas escolhas, no intuito de que a história possa, finalmente, desfrutar de melhores perspectivas.


sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

E adianta ter pressa?


E adianta ter pressa?

 

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

 

Ninguém discorda de que a Pandemia, dada a gravidade e letalidade, emergiu uma corrida desenfreada pelo desenvolvimento de um imunobiológico seguro e eficaz; bem como, outras medicações que pudessem contribuir para a redução dos impactos negativos da doença. Quanto as medicações não houve sucesso nas tentativas testadas. Mas, em relação à vacina, a humanidade logrou êxito. Em quase um ano, mais de um tipo delas atendeu as expectativas da ciência mundial. De modo que, em parte a pressa cumpriu seu papel.

No entanto, a história não termina por aí. A descoberta em si não satisfaz plenamente as demandas emergenciais da atual conjuntura social. Depois das análises de praxe em relação ao processo cientifico de desenvolvimento imunobiológico iniciam-se as etapas de produção em larga escala das doses. Isso porque os investimentos são pautados numa análise de riscos; visto que, não se pode garantir de antemão que as pesquisas alcancem os objetivos propostos. Desse modo, não há como produzir grandes quantidades antecipadamente.

Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), oficialmente existem 193 países no mundo, totalizando cerca de 7bilhões e 800 mil pessoas. Tendo em vista que cada uma delas tem autonomia para planejar suas ações de prevenção e combate as doenças, o processo durante a Pandemia não transcorre dentro de uma linearidade e uniformidade coletiva. Bem como, há de se considerar as discrepâncias socioeconômicas que constituem as desigualdades no mundo e se refletem, também, no campo da saúde pública. Assim, alguns saíram à frente nas tratativas dos acordos comerciais com os produtores das vacinas enquanto outros ficaram para trás.

Acontece que a produção em larga escala não é atingida rapidamente. É um processo contínuo que pode levar meses até poder alcançar a totalidade dos pedidos. O que significa que a heterogeneidade da imunização mundial será uma questão importante a se ter em mente. Enquanto alguns terão imunizado suas populações outros estarão em curso disso; portanto, o vírus permanecerá circulante e transitando entre fronteiras como tem feito até aqui. O que exige uma vigilância e resguardo das medidas de prevenção básicas – isolamento social, higiene periódica das mãos com água e sabão e/ou álcool em gel e uso de máscaras – por um tempo maior ainda não determinado.

Isso evidencia como a pressa em ter de volta à normalidade do cotidiano é relativa. O processo científico é marcado pela ação temporal. Não basta que esse ou aquele queira que seja assim ou assado, segundo suas próprias vontades. Nem todas as etapas podem ser suprimidas sob pena dos resultados não representarem a realidade. E no campo da produção, os rígidos controles de segurança não podem passar despercebidos ou serem, simplesmente, suprimidos sob pena das consequências aos usuários daquele produto.

Até aqui, então, foi dado um primeiro passo; mas, a estrada a ser percorrida ainda é longa. Por isso a pressa por uma resolução plena da Pandemia é inútil. Esse sopro de esperança trazido pelas vacinas faz todo o sentido porque ele vem envolto pela certeza da mitigação dos efeitos mais graves potencializados pelo vírus Sars-Cov-2. Só de reduzir eventualmente o grau de letalidade já é um alento, diante dos mais de 2 milhões de vítimas fatais ao redor do planeta.

Uma canção que eu adoro diz: “Enquanto todo mundo espera a cura do mal / e a loucura finge que isso tudo é normal / eu finjo ter paciência ...” 1; mas, eu discordo desse “fingir”. Porque é preciso mesmo dar a mão à palmatória e admitir que não é hora de pressa; mas, de paciência. O que absolutamente não significa sermos passivos, inativos, indiferentes diante das nossas responsabilidades coletivas; mas, exercitar continuamente uma consciência que vê e compreende a realidade em que estamos vivendo. De modo que ela passe a balizar o nosso foco a partir das possibilidades e das perspectivas que temos nas mãos. Assim, a luz desse equilíbrio físico e mental é que se descortinam, com mais fundamento, as melhores ações. Sem paciência não há esperança.

 

quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

LANÇAMENTO LITERÁRIO (Do texto ao filme: a temática queer na literatura e no cinema.)





Se podemos respirar... podemos aspirar


Se podemos respirar... podemos aspirar

 

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

 

Página virada na história recente dos Estados Unidos, o mundo pode olhar para eles e para si mesmo em um movimento de profunda reflexão sobre respirar e aspirar. Falou-se muito de democracia, de unidade, de reconstrução/restauração, de cura, durante a cerimônia de posse do 46º presidente norte-americano; mas, tudo isso é atravessado pelos dois termos que acabei de citar.

Entre o desejo e a realidade de colocar a vida de volta aos trilhos é fundamental que os cidadãos aspirem verdadeiramente por isso. A aspiração vem da consciência, da percepção de que se pode realizar mais e melhor. De modo que ela exerce um papel contagiante e aglutinador na sociedade que pode sim, desencadear feitos incríveis.

Mas só aspira quem sabe e pode respirar. Respiração tem tudo a ver com liberdade. O ar para penetrar nos pulmões não pode encontrar obstáculos; tudo precisa estar livre para acontecer. E de posse desse processo mágico que atua, inclusive, na capacidade de pensamento, as aspirações começam a ganhar forma, força, direção e sentido.

Algo que me faz lembrar imediatamente a Hortência, jogadora da seleção brasileira de basquete. Toda vez que ela ia cobrar lances livres, com a bola nas mãos ela parava, inspirava profundamente e depois arremessava. Respiração e aspiração que se fundiam em uma explosão de êxito e vitória.   

Embora, o mundo esteja vivendo a tormenta da Pandemia, não me parece adequado creditar todos os problemas e desafios da sociedade nisso. Já vínhamos atravessando os caminhos da contemporaneidade demasiadamente afoitos e sob constantes sobressaltos. Até certo ponto, manipulados pelos ditames de um inconsciente coletivo que dava sinais de deturpação da realidade, das prioridades, das demandas.

De modo que a respiração estava cada vez mais ofegante. O fôlego cada vez mais curto para enfrentar o ritmo frenético do cotidiano. Respirar, no seu sentido mais pleno, entrava para o rol dos privilégios e regalias. Porque o tempo não oportunizava esse pequeno “luxo” para os seres de carne e osso que teimavam em se ajustar aos parâmetros das máquinas. No curso das Revoluções Industriais havíamos chegado ao momento em que a celeridade e a eficiência da produção pesavam mais sobre os seres humanos do que sobre suas engenhosas tecnologias.

E se não respiravam quantitativa e qualitativamente bem, as aspirações iam minguando. Reduzindo-se aos limites da sobrevivência. Abandonando as esferas dos sonhos e das potencialidades. Consequências da automatização arbitrária da vida. Como peças de um sistema grandioso e complexo, a função que nos cabe, inevitavelmente, faz restringir as possibilidades de aspiração.

Quando perceberam, esse redemoinho havia varrido nossa consciência, tão avassaladoramente, sobre questões fundamentais como a democracia e o senso de unidade, ao ponto de não vermos que a necessidade de reconstrução e restauração é fundamental para que a sociedade seja curada de suas mazelas. Daí a importância de se preservar a respiração e a aspiração, mesmo em condições extremas como agora.

Esse é, portanto, o ponto de partida da transformação humana tanto no sentido individual quanto coletivo. Nas bases de sua própria biologia, o corpo em toda a sua extensão convive na busca do equilíbrio (homeostase) e a respiração vem de encontro a compor essa lógica. Se cada indivíduo exercita esse princípio no mundo um senso de estabilidade compartilhada passa a criar condições de aspiração. E isso é extraordinário porque “A lei da mente é implacável. O que você pensa, você cria; o que você sente, você atrai; o que você acredita torna-se realidade” (Sidarta Gautama – Buda).

Dentro desse contexto, que os ventos da mudança, ainda que incipientes, sejam capazes de que romper as amarras visíveis e invisíveis, estimulando novamente o desejo de respirar e, por consequência imediata, de aspirar. Como escreveu Miguel de Cervantes, “Sonhar o sonho impossível, sofrer a angústia implacável, pisar onde os bravos não ousam, reparar o mal irreparável, amar um amor casto à distância, enfrentar o inimigo invencível, tentar quando as forças se esvaem, alcançar a estrela inatingível”, porque essa deve ser a busca de qualquer ser humano em qualquer tempo da história.   


terça-feira, 19 de janeiro de 2021

O “know-how” e a Vacina postos em xeque


O “know-how” e a Vacina postos em xeque

 

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

 

O chamado “know-how” é construído no tempo. Da noite para o dia não há como se atingir a habilidade, a tecnologia, a capacidade, a competência ou, simplesmente, o saber como fazer. Quando o Sars-COV-2 adentrou ao nosso convívio, como um ilustre desconhecido, fomos tomados por uma perplexidade inicial para depois nos ingressarmos nas linhas de frente para decifrá-lo e tomarmos as medidas mais adequadas e eficazes. Portanto, um “know-how” a ser desenvolvido simultaneamente ao processo pandêmico; o que significa que lá se foram até aqui 11 meses.

Mas do ponto de vista do Brasil, contrariando vários bons exemplos de “know-how” em diferentes áreas, o resultado dessa vez caminha aquém das expectativas mais elementares. A falta de planejamento, de método, de organização tem sido crucial para fomentar um panorama caótico.  Esquecido de que, dessa vez, esse não era um problema único e exclusivamente seu, o país não ponderou sobre uma análise global todos os impactos e demandas, tornando-se retardatário em questões emergenciais. Abdicou de estabelecer o seu “know-how”.

Equipamentos de proteção individual e respiradores foram as primeiras insuficiências apontadas durante a 1ª onda da pandemia em território nacional. O país viveu momentos de tensão, no limite de sua capacidade de atendimento, enquanto tentava driblar tais carências. Algo inimaginado e que, certamente, não esqueceremos jamais. E sem dispensar um olhar holístico para uma situação tão grave, os gestores responsáveis focaram na solução desse ponto emergencial como se estivessem tentando apagar um incêndio com copos d’água.

Entretanto, na dianteira do “know-how” os principais centros de pesquisa trabalhavam ininterruptamente na busca por potenciais vacinas que pudessem conter a disseminação da pandemia o mais rápido possível. Sem apoio orçamentário do governo federal, os principais institutos de pesquisa brasileiros, Instituto Butantan e a Fiocruz, buscaram estabelecer parcerias com alguns desses centros para aquisição de vacinas com potencial transferência tecnológica para produção nacional das mesmas.

Mas diante da inação do protagonismo federal na tecitura desses acordos, as conquistas foram pequenas diante da necessidade do país. Afinal, como diz o provérbio, “quem chega primeiro bebe água limpa”. A demora na tomada de decisões no campo comercial diante de uma acirrada lei da oferta e da procura é sempre fatal. Ficamos à mercê das conjunturas internacionais, a espera no fim de uma longa fila de interessados pelas potenciais vacinas.

E quando finalmente foi dado o aval, para os únicos dois acordos firmados pelo país – Instituto Butantan / Sinovac e Fiocruz / Oxford / AstraZeneca, para uso emergencial das vacinas, a esperança se ofusca pela realidade da insuficiência de doses disponíveis até o momento, ou seja, são 6 milhões de doses da CoronaVac, parceria Butantan / Sinovac. Quanto a vacina da parceria Fiocruz / Oxford / AstraZeneca, que viria de um laboratório indiano, não tem uma previsão exata de chegada em solo brasileiro. Além disso, tanto o Butantan quanto a Fiocruz ainda aguardam a liberação de insumos para as respectivas vacinas, os quais são oriundos da China, por conta de entraves burocráticos que demandam intermediação diplomática pelo Brasil.

O que significa que não conseguiremos cumprir a totalidade do 1º grupo prioritário estabelecido para receber a 1ª dose da CoronaVac. O que instala uma nova tensão, na medida em que se permanece com a maior parte da população sem receber a 1ª dose e sem perspectiva de conseguir cumprir a 2ª dose em tempo hábil aos poucos que já foram vacinados. Portanto, o país não saiu do lugar e o vírus permanece ativo, mutante e, altamente, circulante por aí.

Esse panorama só faz apontar por uma solução cada vez mais distante no que diz respeito a uma retomada segura do cotidiano. Distante da imunização que visa prevenir os quadros mais graves, os quais demandam internações longas em Unidade de Terapia Intensiva (UTI), a população não tem outro caminho a não ser evitar as aglomerações, utilizar corretamente a máscara, higienizar frequentemente as mãos por meio de lavagem com água e sabão ou álcool em gel, se não quiser se expor a roleta russa do vírus.

Aliás, o colapso que atinge algumas cidades da região norte do país, por conta da falta de oxigênio para os pacientes internados, não resume em si a história; mas, de certa forma, é a materialização do momento para quem ainda tiver alguma dúvida sobre a gravidade da pandemia. A insuficiência acontece quando se cria um gargalo de sobrecarga no sistema de saúde, seja ele público ou privado.

Assim, se a demanda por esse produto aumentou exponencialmente em pouco tempo foi porque mais pessoas passaram a necessitar desse recurso. Muitas delas, inclusive, em atendimento domiciliar dada a impossibilidade de internação pelo esgotamento do número de leitos e equipes de saúde para atendimento hospitalar. São casos graves. Muito graves.

Por isso, a Pandemia expõe a necessidade de um comportamento coletivo no que diz respeito à prevenção. Cada indivíduo que decide romper essa “corrente do bem” só fará fortalecer a disseminação viral e a velocidade de ocorrência de mutações do agente infeccioso. Porque o vírus depende obrigatoriamente de um organismo vivo para se reproduzir. Então, sem a vacinação completa, conforme os protocolos previstos, cada um de nós permanece como potencial “bola da vez” para o Sars-Cov-2, até que a história encontre o desfecho ideal.   


segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

A morte como denominador comum


A morte como denominador comum

 

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

 

Não, não é a eloquência do silêncio que incomoda. Aliás, façamos dele o benefício para uma reflexão profunda frente ao cenário configurado, o qual vem sendo construído a pouco mais de um ano. Porque observando com bastante atenção as linhas que se traçam no horizonte, elas encontram um ponto comum; a morte.

A falta de oxigênio em Manaus, talvez, seja a manifestação mais explicita do desdém dispensado a vida do cidadão brasileiro. Mas, quem disse que o ar já não se consumia e asfixiava, quando labaredas flamejavam pelos principais biomas nacionais, hein? Toneladas e mais toneladas de gás carbônico lançadas na atmosfera em meio as fuligens de uma flora e fauna destruídas. Ali, também, não se conseguia respirar.

Mas, como a morte é hábil em encontrar maneiras de exercer seu ofício, nem só de ausência de ar pode morrer o ser humano. Mudanças que flexibilizaram as leis de trânsito tornaram a direção de veículos potencialmente mais perigosa. O apreço a um sistema que invocava a direção defensiva se desconstruiu, enquanto acidentes de graves proporções têm vitimado milhares de pessoas e deixado sequelas em outras tantas, impossibilitando-as de retomarem sua vida normal e sua autossuficiência.

Cada acidente amplia o rol de dependência do INSS (Instituto Nacional do Seguro Social), tornando-o cada vez mais sobrecarregado e insuficiente para atendimento de suas obrigações. Situação que faz do cidadão um verdadeiro indigente, na medida da negligência e do desrespeito dispensado, tantas vezes, na manifestação desse serviço; obrigando-o a uma sina de peregrinações e desinformações que se arrastam acima do tempo necessário e condizente à dignidade humana.

No entanto, não é só o INSS. É importante destacar a importância do SUS (Sistema Único de Saúde) nesse processo; visto que, ele tem recebido um número cada vez maior de pacientes também. No caso de acidentes de veículos, quase sempre o acidentado dá entrada primeiramente no serviço público de saúde e, caso tenha convênio privado, posteriormente pode ser reencaminhado. Mas, o fato é que o sistema em si convive com a saturação por várias razões, as quais variam desde ausência de suprimentos até de corpo clínico para atendimento; o que favorece a piora do adoecimento dos pacientes e eventuais óbitos que poderiam ser evitados se as condições fossem outras.

A somar nessa situação de desalento preocupante, a legislação referente ao uso e porte de armas também amplia as possibilidades no campo da assistência médica e social. O abrandamento das leis é, inevitavelmente, um estímulo poderoso as manifestações da violência. De modo que se ela não mata pode ferir com gravidade e, até mesmo, interromper a dinâmica natural da vida de um ser humano, tornando-o dependente do Estado, conforme garantido pela Constituição Federal de 1988.   

É importante ressaltar que os impactos sociais gerados pela violência extrapolam a perspectiva da vítima e do agente causador. Eles se desdobram dentro da sociedade, agravando não só a insuficiência de recursos financeiros, mas as fronteiras de desigualdade humana que acentuam a precarização e desestruturação social; o que não deixa de ser um caminho aberto para a morte. Afinal, as violências se retroalimentam, particularmente, no universo das drogas lícitas e ilícitas.  

Um problema que culmina por alcançar o mercado de trabalho. Já penalizado por um ciclo nada virtuoso de acumulação de baixa oferta de oportunidades e de elevada oferta de mão de obra, é certo que o contingente oriundo da tal precarização e desestruturação social compete em franca desvantagem. Essas pessoas chegam fadadas a manterem-se no imobilismo do cenário social, ou seja, a sobreviverem resistindo a todo infortúnio de flertes com a morte.

Cada vez que o mercado sinaliza com o fechamento de vagas, mais pessoas são levadas a compor esse contingente. Ainda que muitos tentem um espaço na informalidade, este não responde a uma garantia de sobrevivência em longo prazo. Chega um momento em que as perspectivas se esvaem e aprofundam as dificuldades; o que desloca essas pessoas para as teias da vulnerabilidade social. Isso é comum de se perceber, principalmente em capitais, quando famílias passam a viver em áreas invadidas, coletando resíduos e sucatas, porque não têm mais condições de arcar com as despesas mínimas de sobrevivência.

Portanto, a morte é o denominador comum da sociedade brasileira na conjuntura atual. Seja ela direta ou indireta, o fato é que tudo se encaminha para esse fim. Isso representa uma permissividade em relação ao esfacelamento da sociedade da maneira mais brutal que se possa imaginar. E ela só existe porque há quem se permita silenciar diante da realidade, anestesiado por doses generosas de indiferença e de escárnio.

É lastimável que, em pleno século XXI, ainda, existam pessoas capazes de enxergar o ser humano sob o prisma de “peças de reposição”, como durante a Revolução Industrial. Como se cada um que morresse pudesse ser rapidamente substituído e retomar as atividades sem prejuízo. Mas, como diz a canção, “[...] gado a gente marca / Tange, ferra, engorda e mata / mas com gente é diferente” 1. Gente tem família. Gente tem amigos. Gente tem amores. Gente tem sentimento. Gente tem sonhos. ... E pode o mundo girar, o progresso se instalar; mas, só gente é que faz a vida pulsar em todas as suas vertentes.