Se podemos respirar...
podemos aspirar
Por Alessandra Leles
Rocha
Página virada na história recente dos Estados Unidos, o mundo
pode olhar para eles e para si mesmo em um movimento de profunda reflexão sobre
respirar e aspirar. Falou-se muito de democracia, de unidade, de reconstrução/restauração,
de cura, durante a cerimônia de posse do 46º presidente norte-americano; mas,
tudo isso é atravessado pelos dois termos que acabei de citar.
Entre o desejo e a realidade de colocar a vida de volta aos trilhos
é fundamental que os cidadãos aspirem verdadeiramente por isso. A aspiração vem
da consciência, da percepção de que se pode realizar mais e melhor. De modo que
ela exerce um papel contagiante e aglutinador na sociedade que pode sim, desencadear
feitos incríveis.
Mas só aspira quem sabe e pode respirar. Respiração tem tudo
a ver com liberdade. O ar para penetrar nos pulmões não pode encontrar obstáculos;
tudo precisa estar livre para acontecer. E de posse desse processo mágico que atua,
inclusive, na capacidade de pensamento, as aspirações começam a ganhar forma,
força, direção e sentido.
Algo que me faz lembrar imediatamente a Hortência, jogadora
da seleção brasileira de basquete. Toda vez que ela ia cobrar lances livres,
com a bola nas mãos ela parava, inspirava profundamente e depois arremessava.
Respiração e aspiração que se fundiam em uma explosão de êxito e vitória.
Embora, o mundo esteja vivendo a tormenta da Pandemia, não me
parece adequado creditar todos os problemas e desafios da sociedade nisso. Já vínhamos
atravessando os caminhos da contemporaneidade demasiadamente afoitos e sob
constantes sobressaltos. Até certo ponto, manipulados pelos ditames de um
inconsciente coletivo que dava sinais de deturpação da realidade, das
prioridades, das demandas.
De modo que a respiração estava cada vez mais ofegante. O fôlego
cada vez mais curto para enfrentar o ritmo frenético do cotidiano. Respirar, no
seu sentido mais pleno, entrava para o rol dos privilégios e regalias. Porque o
tempo não oportunizava esse pequeno “luxo” para os seres de carne e osso que
teimavam em se ajustar aos parâmetros das máquinas. No curso das Revoluções
Industriais havíamos chegado ao momento em que a celeridade e a eficiência da
produção pesavam mais sobre os seres humanos do que sobre suas engenhosas
tecnologias.
E se não respiravam quantitativa e qualitativamente bem, as
aspirações iam minguando. Reduzindo-se aos limites da sobrevivência. Abandonando
as esferas dos sonhos e das potencialidades. Consequências da automatização
arbitrária da vida. Como peças de um sistema grandioso e complexo, a função que
nos cabe, inevitavelmente, faz restringir as possibilidades de aspiração.
Quando perceberam, esse redemoinho havia varrido nossa consciência,
tão avassaladoramente, sobre questões fundamentais como a democracia e o senso de
unidade, ao ponto de não vermos que a necessidade de reconstrução e restauração
é fundamental para que a sociedade seja curada de suas mazelas. Daí a importância
de se preservar a respiração e a aspiração, mesmo em condições extremas como
agora.
Esse é, portanto, o ponto de partida da transformação humana
tanto no sentido individual quanto coletivo. Nas bases de sua própria biologia,
o corpo em toda a sua extensão convive na busca do equilíbrio (homeostase) e a
respiração vem de encontro a compor essa lógica. Se cada indivíduo exercita esse
princípio no mundo um senso de estabilidade compartilhada passa a criar
condições de aspiração. E isso é extraordinário porque “A lei da mente é implacável. O que você pensa, você cria; o que você sente,
você atrai; o que você acredita torna-se realidade” (Sidarta Gautama – Buda).
Dentro desse contexto, que os ventos da mudança, ainda que
incipientes, sejam capazes de que romper as amarras visíveis e invisíveis, estimulando
novamente o desejo de respirar e, por consequência imediata, de aspirar. Como
escreveu Miguel de Cervantes, “Sonhar o
sonho impossível, sofrer a angústia implacável, pisar onde os bravos não ousam,
reparar o mal irreparável, amar um amor casto à distância, enfrentar o inimigo invencível,
tentar quando as forças se esvaem, alcançar a estrela inatingível”, porque essa
deve ser a busca de qualquer ser humano em qualquer tempo da história.