quarta-feira, 30 de novembro de 2022

O espelho do ódio


O espelho do ódio

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

O ódio como refúgio para esconder a frustração. Há tempos que ouço falar sobre a dificuldade contemporânea de lidar com as negativas, as impossibilidades, os limites, sejam crianças, jovens ou adultos. Algo que tem uma correlação direta com o desenvolvimento tecnológico experimentado pela humanidade, o qual lhe tem permitido manipular, com muito mais facilidade, quaisquer desagrados, bastando para tal um simples deletar, bloquear, cancelar.

Dessa forma, “Perde-se a profundidade das relações; perde-se a conversa que possibilita a harmonia e também o destoar. Nas relações virtuais não existem discussões que terminem em abraços vivos, as discussões são mudas, distantes. As relações começam e terminam sem contato algum. Analisamos o outro por suas fotos e frases de efeito. Não existe a troca vivida. Ao mesmo tempo em que experimentamos um isolamento protetor, vivenciamos uma absoluta exposição. Não há o privado, tudo é desvendado: o que se come, o que se compra; o que nos atormenta e o que nos alegra” (Zygmunt Bauman).

O que significa que a humanidade se colocou diante de um gigantesco desafio social, o qual ela não consegue administrar. Daí a exacerbação da fúria, do ódio, da violência. Porque a realidade não cabe nos protocolos das idealizações individuais, como tantos gostariam. E a contínua persistência na idealização não muda o curso da história. Assim, esse desajuste é profundamente incomodativo e desconfortante, na medida em que ele afronta de maneira direta e inquestionável o senso contemporâneo de liberdade, de escolha, de inexistência de limites.

Daqui e dali as pessoas são, desse modo, confrontadas com essa impossibilidade. No entanto, ao invés de exercitarem a sua capacidade de compreensão a respeito, passam a buscar discursos e narrativas que possam legitimar o seu próprio pensamento e fortalecer o seu arraigamento diante de certos pontos de vista e opiniões. Sim, porque não se trata somente da liberdade ou da escolha, tudo isso implica também na prevalência impositiva e absoluta das suas convicções, das suas perspectivas 1. Algo que, segundo essas pessoas, não pode ser negociado ou flexibilizado. Elas não se permitem, em hipótese alguma, admitir ou barganhar com o contraditório.

Isso aponta para um real distanciamento humano da sua capacidade dialógica e argumentativa. Infelizmente, muitos seres humanos têm se colocado na posição “ou está comigo ou está contra mim”, o que estabelece uma linha muito tênue com a beligerância social. Ora, a construção dessa bipolaridade, além de totalmente antiproducente, é irreal. Nenhum ser humano se mantém fiel às mesmas crenças, valores e princípios, o tempo todo, a vida inteira. A força das circunstâncias, das conjunturas, nos obriga a ter momentos de análise, de reflexão, de criticidade, para nos reajustar e sobreviver.

Aliás, foi graças a esse movimento que o mundo chegou ao Terceiro Milênio com a configuração atual. Certamente, muitas vezes, repaginada e reestruturada pelos deslocamentos e mudanças impostas pela evolução psicossocial. Se ainda somos bárbaros, cruéis e perversos, não somos da mesma maneira que nossos ancestrais das cavernas! Demos passos adiante, sim. E ainda que não tenha sido genuinamente voluntário, consciente, planejado, aconteceu porque era uma demanda do mundo, da vida, e que não tinha razão para pedir permissão a ninguém para se operacionalizar. Portanto, esse ódio destilado, gratuitamente, é inútil. Consome-se uma energia descomunal, por nada. Agridem e ameaçam pessoas, por nada. Perdem um tempo preciosíssimo, por nada.       

Carl Gustav Jung dizia, “Que eu faça um mendigo sentar-se à minha mesa, que eu perdoe aquele que me ofende e me esforce por amar, inclusive o meu inimigo, em nome de Cristo, tudo isso, naturalmente, não deixa de ser uma grande virtude. O que faço ao menor dos meus irmãos é ao próprio Cristo que faço. Mas, o que acontecerá, se descubro, porventura, que o menor, o mais miserável de todos, o mais pobre dos mendigos, o mais insolente dos meus caluniadores, o meu inimigo, reside dentro de mim, sou eu mesmo, e precisa da esmola da minha bondade, e que eu mesmo sou o inimigo que é necessário amar? ”.

E esse é o ponto, caro (a) leitor (a), quando observamos a disseminação em massa e o recrudescimento do ódio na contemporaneidade. O que parece uma questão coletiva, na verdade, está incrustada no individualismo, em todas as suas camadas de egoísmo, de egocentrismo, de narcisismo. Por isso, para enfrentá-lo é fundamental o entendimento de que “Tudo o que nos irrita nos outros pode nos levar a uma melhor compreensão de nós mesmos”; afinal, “Sua visão se tornará clara apenas quando você puder olhar dentro de seu coração. Quem olha para fora sonha, quem olha para dentro acorda” (Carl Gustav Jung). Façamos essa reflexão! 

terça-feira, 29 de novembro de 2022

A Cultura nos tempos de Pandemias


A Cultura nos tempos de Pandemias

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Lamento, mas depois de grandes acontecimentos a vida não retoma exatamente o seu curso natural. Mudanças se fazem necessárias a partir do conhecimento que se é produzido. Nesse sentido, me preocupa olhar ao redor e ver tanta gente imbuída em fazer parecer uma normalidade após o auge da pandemia, como se o pior já tivesse passado. Só que não. O Sars-Cov-2 e suas variantes estão por aí, livres, leves e soltos, fazendo estragos pelo mundo afora.

Como sabemos, esses impactos negativos não ficaram restritos aos campos da saúde; mas, se estenderam pela vida humana no seu contexto geral. Principalmente, em relação à mola propulsora da dinâmica social que é a Economia. O processo de recomposição e recuperação das estratégias econômicas está longe de alcançar uma estabilidade satisfatória para as novas demandas contemporâneas, em razão, principalmente, das idas e vindas da COVID-19 que tensionam os movimentos dentro das populações.

E aí, pensando no peso que o isolamento e o distanciamento social impuseram para as relações socioeconômicas, talvez, seja importante para setores, como a Cultura, buscarem alternativas e traçarem novas estratégias para desenvolverem suas atividades sem incorrer no risco de enfrentar situações semelhantes no futuro. Sim, porque a Ciência já se manifestou a esse respeito e expôs uma viabilidade enorme de ocorrência de novos episódios pandêmicos, tendo em vista a existência de muitos agentes infectocontagiosos ainda desconhecidos dos seres humanos.

Como o setor cultural foi direta e severamente impactado pelas medidas de isolamento e restrição social, em razão da sua própria dinâmica que demanda, geralmente, a reunião de grandes coletivos de profissionais e de público, tal possibilidade não pode passar a margem ou ser desconsiderada na elaboração das novas diretrizes de funcionamento. Afinal, como escreveram Lulu Santos e Nelson Motta, “Nada do que foi será / De novo do jeito que já foi um dia [...]” 1.

Isso significa, então, que esse importantíssimo viés da Economia Criativa, a Cultura, vai ter que se ajustar a um contexto sem aglomerações, sem grandes multidões, com locais que disponham de sistemas de ventilação adequados, com intervalos satisfatórios para higienização dos ambientes, com protocolos sanitários definidos e respeitados, a fim de equacionar a liberdade com a segurança de todos os envolvidos. Considerando que a maioria dos agentes infectocontagiosos têm disseminação por via respiratória – tosse, espirro, gotículas e/ou fômites 2, essas medidas são essenciais para que não haja interrupção das atividades e consequente prejuízos de natureza material e imaterial.

Ora, segundo o filósofo espanhol José Ortega y Gasset, “A cultura é uma necessidade imprescindível de toda uma vida, é uma dimensão constitutiva da existência humana, como as mãos são um atributo do homem”; pois, ela é “o sistema de ideias vivas que cada época possui. Melhor: o sistema de ideias das quais o tempo vive” (O Livro das Missões).  

Daí a necessidade de se cuidar de todas as camadas que envolvem a cultura, incluindo a saúde física, mental e emocional de todos. Pois, estamos falando dessa cadeia produtiva baseada no conhecimento, no entretenimento, no lazer dos indivíduos, que promove um bem-estar subjetivo incomensurável; mas, que, também, ultrapassa as fronteiras desse imaterial pela capacidade de gerar riqueza, de promover empregos e constituir mecanismos de distribuição de renda. O que se faz necessário, então, é o equilíbrio, o bom senso, a racionalidade, a humanidade no trato dessa questão.

Em tempos de tanta incerteza, de tanta tristeza, de tanta aflição, é preciso exercitar essas reflexões para não se incorrer em desdobramentos cada vez piores, como os que foram vistos, no Brasil, nesses últimos três anos. Queiram ou não admitir, pode estar no setor cultural um dos caminhos para redenção econômica brasileira, mesmo em tempos de crise. Porque ele é responsável por uma parcela expressiva do Produto Interno Bruto nacional (PIB), na medida em que movimenta direta e indiretamente a produção, a distribuição e a criação de bens e serviços essenciais para a população.

A cultura ensina. A cultura profissionaliza. A cultura gera esperança. A cultura promove alegria e bem-estar. A cultura penetra por todos os espaços geográficos. ... Portanto, como alquimista da adversidade ela não pode parar; mas, pode se recriar e se moldar frente às novas conjunturas do mundo, da vida. O que a torna incompatível à dinâmica social é a resistência às mudanças, ao abandono das eventuais zonas de conforto. Por isso, “O progresso é impossível sem mudanças; e aqueles que não conseguem mudar suas mentes não conseguem mudar nada” (George Bernard Shaw).


1 Como uma onda (Zen-surfismo) – Lulu Santos / Nelson Motta - https://www.letras.mus.br/lulu-santos/47132/ 

2 Denominação dada ao objeto ou superfície (celular, embalagem, bancada, corrimão, maçaneta, etc.) que, ao entrar em contato com agentes infecciosos (como vírus e bactérias), pode alojá-los e permitir a sua transmissão; vetor passivo. Fonte: http://www2.academia.org.br/nossa-lingua/nova-palavra/fomite 

segunda-feira, 28 de novembro de 2022

Até quando???


Até quando???

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

 

Dentre tantas surpresas causadas pela Pandemia uma das mais emblemáticas foi, sem dúvida alguma, o comportamento humano diante da situação. A velha máxima do instinto de sobrevivência sucumbiu frente aos anseios da liberdade contemporânea. Valendo-se do negacionismo científico, embalado pelas Fake News e Teorias Conspiratórias circulantes pelo mundo, milhares de pessoas se abstiveram das práticas sanitárias de prevenção e se permitiram coexistir com o vírus apesar de todos os riscos.

E lá se vão três anos de idas e vindas do Sars-Cov-2 e suas variantes, sem que o planeta possa finalmente dizer que a Pandemia chegou ao fim. Culpa do vírus? Culpa da humanidade? Culpa das políticas sanitárias? Esta não é uma questão que caiba eleger esse ou aquele culpado. Fomos pegos pelo imponderável e o modo como lidamos com as circunstâncias a respeito é que traçaram o panorama até o momento. É nisso, portanto, que se concentra o x do problema.

Então, observando as repercussões em torno da notícia de que “Manifestantes na China protestam contra lockdown e política de ‘Covid zero’” 1, considerei oportuno trazer à tona alguns pontos para a reflexão. Antes de tudo, quero ressaltar que, no caso da China, é importante considerar que a insatisfação não decorre necessariamente da presença do vírus; mas, da existência de velhos anseios de liberdade adormecidos pelo contexto autoritário do regime político vigente por lá. Assim, os ruídos e as tensões oriundas da China trazem um componente a mais para o processo que está em curso.

Acontece que, mundo afora, nesses longos e extenuantes três anos, os países vêm padecendo com um contínuo movimento de novas variantes do Sars-Cov-2, que lhes exigem medidas sanitárias importantes para sua contenção. De modo que é inevitável que exista um cansaço físico, moral e mental da população quanto às práxis que se fazem necessárias. No entanto, embora essa seja uma constatação aceitável, ela não sintetiza a complexidade desse processo. Me parece evidente que o negacionismo científico, as Fake News e as Teorias Conspiratórias circulantes pelo mundo atuaram muito além dos impactos visíveis.

Digo isso, porque percebo uma clara dissociação lógica da dinâmica pandêmica. É certo que vírus, bactérias e outros agentes infectocontagiosos estão, por aí, aos milhares. Alguns conhecidos, outros não. Alguns tratáveis, outros não. Alguns com vacinas para prevenção de efeitos severos e graves, outros não. Portanto, a linha de partida nessa corrida contra a Pandemia está nas práticas sanitárias de prevenção. Achando bom ou ruim, é aí que começa o verdadeiro enfrentamento da doença!

Contudo, não foi exatamente isso o que aconteceu até aqui. Na medida em que cada país operacionalizou as suas próprias estratégias de contenção da Pandemia, o vírus permaneceu livremente circulante ao redor do mundo globalizado. E nessas condições, ele fatalmente se permite usar do seu sistema de mutação para sobreviver, adequando-se às novas conjunturas ambientais. De modo que a desigualdade na oferta de imunizantes, no processo de vacinação, na disponibilização de máscaras, no acesso ao saneamento básico para higienização correta das mãos, nos serviços médico-hospitalares, tudo isso vem interferindo de maneira direta nas idas e vindas da COVID-19.

São 8 bilhões de seres humanos sobre a Terra, distribuídos de maneira irregular, mas potencialmente afetados pelos movimentos de deslocamento voluntário ou obrigatório. Portanto, realidades socioeconômicas e culturais completamente diferentes transitam entre si e possibilitam, também, o compartilhamento involuntário de inúmeras doenças. Isso significa que é um enorme engano acreditar que o fato de seu país lhe proporcionar certas regalias e privilégios significa uma blindagem contra todos os males que circulam no planeta. Esopo, quando contava a fábula “A Ratoeira”, não errou em tentar nos alertar de que “O problema de um é problema de todos” 2.

O que a China e o mundo precisam, urgentemente, entender é que a Pandemia exige uma solução conjunta, de ação conjunta. Caso contrário, continuaremos a andar em círculos de arrefecimento e recrudescimento do Sars-Cov-2 e suas variantes, e isso tem um preço alto demais. Com impactos diretos sobre a produção, o consumo, o comércio exterior, a diplomacia, a educação, o agronegócio, a ciência, a tecnologia, enfim. A postergação pode significar um agravamento consistente daquilo que já tem sido possível aferir nesses três últimos anos.

É hora de desconstruir os paradigmas, de refazer as estratégias, de olhar além do visível. Por enquanto, o inimigo da vez parece ser o vírus Sars-Cov-2; embora, já circulem também a Varíola dos Macacos (monkeypox), o Morbillivirus (Sarampo), a Poliovírus (Poliomielite ou Paralisia Infantil), a Dengue, ... De modo que a qualquer momento, outros desconhecidos podem dar o ar da graça! E aí, como a humanidade conduzirá as novas emergências sanitárias, as novas epidemias? Como vai equilibrar os pratos dos interesses político-econômicos? Como vai sustentar o desenvolvimento e o progresso em meio às tensões? ...

Espero que as respostas para essas e tantas outras perguntas não tardem a emergir. Não gostaria de ter que concordar com Albert Camus, quando escreveu que “Houve no mundo igual número de pestes e de guerras. E contudo, as pestes, assim como as guerras, encontram sempre as pessoas igualmente desprevenidas” (A peste, 1947).

Afinal, isso significa que “a pior cegueira é a mental, que faz com que não reconheçamos o que temos pela frente”. Aliás, não é à toa que “Estamos a destruir o planeta e o egoísmo de cada geração não se preocupa em perguntar como é que vão viver os que virão depois. A única coisa que importa é o triunfo do agora” (José Saramago – Ensaio sobre a Cegueira, 1995).


domingo, 27 de novembro de 2022

Ainda bem que existe o Futebol!


Ainda bem que existe o Futebol!

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Depois de quatro anos que reviraram a história da humanidade de cabeça para baixo, eis que a Copa do Mundo acontece para atenuar os impactos. Me reservo, então, ao direito de escrever e olhar para esse grande evento a margem das entrelinhas dos interesses político-econômicos, dos abusos sociais, dos extremismos culturais, do estrelismo que ronda certas personalidades dos gramados.

Decidi tentar resgatar no baú das minhas memórias o sentimento que me embalou na infância, durante a Copa do Mundo da Espanha, em 1982. Aquele encanto mágico que brotava da plasticidade dos movimentos, das jogadas que pareciam pura perfeição genial, da alegria que se espalhava feito rastilho de pólvora pela cidade.

Se alguns torciam o nariz por considerar aquela seleção brasileira abaixo da fenomenal seleção de 70, eu não me importava. Ora, em 1970 eu nem era nascida! Eu não tinha referência para fazer qualquer juízo de valor a respeito. Então, era por Zico, Sócrates, Falcão, Júnior, Éder Aleixo e companhia que meus olhos ficavam fixos na tela da TV, enquanto o coração acelerava de euforia.  

Em uma época em que meninas se restringiam a meras torcedoras da Seleção Brasileira Masculina de Futebol, porque esse não era um esporte para elas, sendo neta única dos meus avós maternos, meu avô, então, teve que se contentar com a minha companhia durante os jogos e dedicar sua paciência e atenção para me ensinar as regras do futebol. Foi bom demais! Fui muita privilegiada por poder aprender com ele e dali adiante podermos rir e comentarmos juntos muitos jogos.

Certas lições desse tempo eu não esqueço de jeito algum. Meu avô dizia que futebol, enquanto esporte coletivo, precisava de uma boa equipe, consistente, coesa, preparada. Afinal, no esporte por equipe, quase sempre, o emprego da força acaba ocasionando muitas lesões e deixando muita gente fora de combate. Então, essa história de se fiar nos prodígios da vida, como foram Pelé e Garrincha, por exemplo, era um erro. O time tinha sempre que ter cartas na manga, para quaisquer eventualidades.

Daí essa história de reservas ser uma grande bobagem. Escolhem-se os melhores. Preparam-se os melhores. E aí se tem uma equipe em ponto de bala. Uma combinação técnica e tática, a partir de 26 jogadores selecionados, para que 11 deem o pontapé inicial em cada partida. Assim, cada jogo tem a sua história marcada pelo talento individual e coletivo dos que entraram em campo. Se vai ser vitória ou derrota, cabe somente aos Deuses do Futebol a resposta! Não é à toa que, de vez em quando, as zebras do futebol cortam os gramados!

O bacana é que, enquanto nos distraímos com esse movimento frenético e hipnotizante, nos permitimos curar a alma. É! Mesmo que ao final dos 90 minutos, o resultado não seja do nosso agrado, a essência da vida parece repousar segura dentro de nós. Como se, de repente, estivéssemos mais leves, mais etéreos, por estarmos preenchidos de graça e de diversão. Nada nos desconforta, nos amedronta, nos aflige, nos consome. A vida entra num estado mágico de satisfação!

Eu sei que é só uma impressão; mas, ela é necessária! Na verdade, ela é fundamental para a nossa sanidade mental. Enquanto nos permitimos viver o futebol dessa maneira, baixamos a guarda, relaxamos o corpo, apaziguamos a alma, nos colocamos fora dos combates intensos e cruéis da vida. Por 90 minutos voltamos a ser humanos novamente. Rimos. Choramos. Gritamos. Suspiramos. Explodimos de entusiasmo emocionado. Falamos sobre coisas simples, quiçá desimportantes.

Pois é, Nelson Rodrigues tinha mesmo razão, “Em futebol, o pior cego é o que só vê a bola”. Ainda que o mundo não tenha parado de rodopiar, nem os problemas de existir, o futebol nos permite ver a vida de uma outra perspectiva. Paradoxalmente, o frenesi dos gramados contrasta a desaceleração involuntária que age sobre nós. Como se tudo pudesse esperar. Como se houvesse espaço apenas para ser feliz. Como se naquela bola coubesse o mundo com todos os seus mistérios, suas aventuras e desventuras.

Assim, cada gol é a catarse da nossa humanidade. Cada gol é a explosão do que há de melhor em nós.  No verde dos gramados, somos iguais, somos apenas gente, de carne, osso e emoção. Não precisamos de raça, de credo, de gênero, de status, de nada. Apenas daquela aura sublime, que transcende os corpos dos desportistas e penetra em nós sem pedir licença, agigantando o nosso espírito frágil e infantil.  

sexta-feira, 25 de novembro de 2022

O Brasil à beira do "ponto de não retorno" da Educação


O Brasil à beira do ponto de não retorno da Educação

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Refletir sobre a educação brasileira é sempre desafiador; pois, como muito bem apontou Darcy Ribeiro, “A crise da educação no Brasil não é uma crise; é um projeto”. Afinal, ela não perpassa somente pelos atores principais – alunos, professores, instituições de ensino, entes da federação, governo federal –; mas, por toda a população, a qual sem se dar conta, na maioria do tempo, se esquece de que depende das políticas educacionais o desenvolvimento e o progresso nacional. Portanto, se elas vão mal ou inexistem, como manter a dinâmica do país nos trilhos, hein?

Apesar de este não ser um tratado de Educação, apenas um convite à reflexão, entre tantas camadas a serem devidamente dissecadas, decidi eleger uma, considerando que sem ela não há ensino-aprendizagem sob nenhuma forma, ou seja, os (as) professores (as). Não é de hoje que a busca pela docência perde espaço no rol das profissões.  Desvalorização, desqualificação, humilhação, ingerências externas e violências são algumas das causas desse abandono das salas de aula. Há de se convir que esse não deve ser o contexto atraente para ninguém que tenha se dedicado anos a fio se preparando para atuar profissionalmente.

Ser professor (a), no Brasil, se transformou em profissão de risco! De altíssimo risco! Não só pelo adoecimento provocado por um estresse sem fim; mas, pelas incertezas impostas pela brutalidade cotidiana que adentrou os muros da escola. O círculo vicioso gerado pela tríade deseducação, violência e desigualdades sociais rompeu as fronteiras das vias urbanas para invadir todos os espaços sociais. Portanto, o que era um templo de aprendizado, de conhecimento, de sabedoria, hoje é só mais um lugar inseguro para estar.

Esse é o ponto de partida que deveria nos preocupar a todos, bem antes de pensarmos sobre as lacunas geracionais de aprendizagem, causadas pelos recentes impactos da Pandemia de COVID-19, na medida em que ele está por trás de tantas deficiências, ineficiências e insuficiências educacionais, no Brasil. Por trás da desmotivação, da reprovação contínua, da evasão, do abandono escolar, sempre houve um traço bem marcado desse círculo vicioso; embora, autoridades e população se abstivessem em admitir.

Negligência, invisibilização, postergação de medidas, má gestão de recursos, ... daqui e dali sempre se buscou uma alternativa para não avançar na solução dessas questões, como se elas pudessem caber ajustadas sob os tapetes da burocracia nacional. Mas, não cabem. Simplesmente, porque na essência delas estão seres humanos, cujas demandas e urgências têm uma tendência explosiva natural, quando mal administradas. Mas, a pergunta a se fazer é por quê deixaram as conjunturas transitarem assim?

Queiram ou não admitir, a Educação, no Brasil, sempre esteve na condição de fronteira social. Coisa de rico. Coisa de quem pode pagar. Demorou muito, décadas e décadas, para que finalmente ela alcançasse a universalização social, tendo em vista o ranço colonial que instituiu no país uma desigualdade, quase que, intransponível. Por conta desse ranço, a conquista da universalização social da Educação se deparou, então, com a flagrante assimetria entre o ensino público e o privado. O que significa que a igualdade e a equidade educacional no país não existem de fato e de direito, de modo que o ensino-aprendizagem não garante a todos os cidadãos a mesma formação quantitativa e qualitativa, por razões diversas e complexas da própria configuração nacional.

Diante desse cenário, daqui e dali o que se pode ver acontecer na educação brasileira foi uma avalanche de discursos, narrativas e práxis, oriundos da classe dominante nacional, que tiveram como único objetivo obstaculizar e precarizar o ensino das camadas mais vulneráveis e desassistidas da população. Sem perceberem que esse movimento cruel e errático criava legiões de pessoas desqualificadas tanto para o exercício profissional quanto da sua própria cidadania. Quem nunca ouviu dizer, por aí, sobre a falta de mão de obra qualificada, hein?

Mas, isso não parece causar quaisquer desconfortos para a sociedade brasileira. Ora, esses abismos educacionais favorecem ao imobilismo social, garantindo regalias e privilégios para uns em detrimento de outros. A fragilidade educacional funciona como um argumento plausível, por exemplo, para a precarização do trabalho, para os baixos salários, para a inacessibilidade de melhores oportunidades. Assim, os últimos quatro anos de uma política nacional de ultradireita mostraram toda a sua radicalização em conduzir a Educação para os braços da iniciativa privada e ajustá-la dentro de um modelo ideológico fundamentalista, a fim de atender ao controle social por parte do governo.

Para isso, o ensino público, em todos os níveis, padeceu com cortes orçamentários severos. Docentes perderam a sua autonomia didático-pedagógica em razão de ameaças e ingerências externas, que lhes causaram, em muitos casos, demissões sumárias 1. Alunos ficaram sem aulas por insuficiência de professores para lecionar. Enfim... O que é importante foi desconsiderado para que desimportâncias alheias se tornassem o centro da discussão.

Não é à toa, então, que estamos presenciando no país, neste momento, um conjunto de práticas antidemocráticas e ilegais. Não se trata apenas de bloqueios em rodovias, obstruções ao direito de ir e vir, atentados contra a Constituição Federal de 1988 e demais instrumentos legais, ameaças contra instituições e pessoas. Esses atos têm uma linguagem simbólica de legitimação para o desrespeito, para a ruptura com a educação, a civilidade e a legalidade no país, para a perda total do sentido de coletividade. Uns e outros estão certos de que dispõe de alguma prerrogativa absurda para agirem segundo as suas próprias crenças, valores e convicções em total prejuízo aos demais.

Portanto, se atentem a seguinte notícia, “Ataque em escolas deixa três mortos e 13 feridos em Aracruz, no ES” 2. Lamento, mas esse não foi o primeiro e, certamente, não será o último caso a acontecer no país, se não houver uma reflexão e uma desconstrução paradigmática profunda em relação à Educação brasileira. Caso contrário, muito antes do que se possa imaginar, o Brasil terá encontrado o seu “ponto de não retorno” para a educação. E o preço dessa incapacidade de reversão dos problemas será cobrado de diferentes formas, conteúdos e intensidades ao longo das futuras gerações. Afinal, o círculo vicioso gerado pela tríade deseducação, violência e desigualdades sociais não mata somente indivíduos, mata a sociedade, mata o país. Pense a respeito!

quarta-feira, 23 de novembro de 2022

Licença para perturbar???


Licença para perturbar???

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Recobrar a razão é o que alguns brasileiros precisam com urgência. Há 26 anos o sistema eleitoral brasileiro utiliza as urnas eletrônicas sem que quaisquer dúvidas quanto à confiabilidade do sistema fossem apontadas, que quaisquer resultados eleitorais fossem questionados. O que faz das eleições brasileiras um exemplo de credibilidade, agilidade e avanço para o mundo.

Diante das constantes manifestações antidemocráticas, que seguem desde o resultado do segundo turno eleitoral deste ano, é preciso, então, dizer que nenhum cidadão brasileiro dispõe de licença para perturbar a ordem, o sossego, o direito de ir e vir; muito menos, exercer a ilicitude despudoradamente, como vem ocorrendo país afora.

Se o cidadão comum não se permite mais pensar e raciocinar adequadamente, que tal, as lideranças político-partidárias exercerem o papel de conter os absurdos, de colocar ordem na casa, a fim de que o progresso do país tenha alguma chance de vingar?

Me refiro a essas pessoas, considerando justamente que, muitas delas, foram eleitas ao longo desses 26 anos e jamais se opuseram ou questionaram o referido sistema eleitoral. Foram só alegria e contentamento! Afinal, as eleições lhes permitiram conquistar o poder, a influência, o status, os salários, os penduricalhos, as mordomias, pagas por meio do dinheiro público na forma dos seus milhões.

Assim, tanto o cerrar fileiras com a legião antidemocrata nacional quanto abster-se de quaisquer manifestações, nesse momento, é ultrajante para o país. Talvez, não tenham se dado conta de que nem todos os seus eleitores, aqueles que depositaram votos a seu favor, estejam realmente em plena concordância com as ações ilegais que vêm sendo cometidas no país, inclusive, colocando em risco pessoas gravemente doentes que demandam atendimento médico de urgência.

Mas, em relação ao bem-estar e a saúde, comportamentos assim, não surpreendem se lembrarmos de todo o desserviço prestado em relação à COVID-19, ao escárnio manifesto contra as vítimas das violências urbanas, ao negacionismo contra a vacinação, à fome e à miséria crescente, ... Essas pessoas, em momento algum, tiveram quaisquer comportamentos respeitosos, empáticos, fraternos em relação à vida de seus semelhantes. Então...

Desse modo, depois de perder a eleição, como já determinado e reconhecido pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e por todos os órgãos observadores nacionais e internacionais, eles decidiram, portanto, por perderem a simpatia e o respeito de muitos dos seus apoiadores. Elevando assim, o contingente numérico contrário às suas pretensões golpistas.

Bem, havia cinco cargos em disputa – Presidente da República, Governador, Senador, Deputado Federal, Deputado Estadual e Deputado Distrital, para serem escolhidos como representantes da população, em primeiro e em segundo turno, quando necessário. Então, como é possível questionar o resultado do segundo turno para Presidente da República, em relação a um certo grupo de urnas, se havia também 12 estados elegendo seus governadores? Nenhum dos candidatos aos governos estaduais se opuseram aos resultados. Nem tampouco, quaisquer dos Senadores, Deputados Federais, Deputados Estaduais e Deputados Distritais, derrotados ou eleitos em primeiro turno.

Lamento, mas não estamos diante de nenhum argumento plausível, sustentável, factível. Todo o processo foi verificado, auditado, conferido, avaliado, por diversas autoridades. O que se vê nesse arrastar de correntes deprimente é a anticidadania em estado bruto. Não se respeitam as leis, as instituições, as pessoas, ou seja, a ideia é não respeitar nada e nem ninguém, a fim de satisfazer seus desejos e vontades, mesmo vindo a instituir o caos no país. Então, eu lhe pergunto, isso é bom para quem, cara pálida?

Para quem dizia que o Brasil, em pleno auge da Pandemia, não podia parar, que os cidadãos tinham que sair as ruas e manterem suas rotinas de trabalho, parece que a opinião mudou subitamente. Talvez, porque quem esteja na linha de frente da antidemocracia sejam aqueles que detém as rédeas da política, da economia, nas mãos. Mas, se engana quem pensa que eles passam incólumes pelo caos. Não, não passam. Porque não tarda a sua irresponsabilidade afetar a dinâmica do país, a tal ponto de repercutir diretamente sobre os seus interesses econômicos.

Pena, que “A humanidade erra por ter a sua consciência submersa na ignorância” (Bhagavad-Gita). São tantas certezas, tantas convicções, que, quando menos se espera, tropeça no próprio cadarço do seu caos.

Portanto, a única coisa que resta a se dizer, diante desse cenário antidemocrático abjeto, é que “Os verdadeiros democratas não são aqueles histéricos que exigem isto e reivindicam aquilo, que dizem que precisamos de não sei quê e que vamos morrer estúpidos se não fizermos não sei que mais. São os que vivem e deixam viver. São os que respeitam as opiniões, as excentricidades e as manias dos outros, sem ceder à tentação de os desconvencer à força (Miguel Esteves Cardoso – As Minhas Aventuras na República Portuguesa). Só essa compreensão é capaz de separar o joio do trigo e resgatar a razão em meio à insanidade nacional contemporânea. 

terça-feira, 22 de novembro de 2022

Ele tinha que manter a sua fama de mau...


Ele tinha que manter a sua fama de mau...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Pois é, ele tinha que manter a sua fama de mau e foi embora assim, de repente! Bem no dia de Santa Cecília, a padroeira dos músicos! Foi compor o coro dos céus, fazer festa no campo celeste, alegrar com seu sorriso doce a plateia dos anjos.

Foram mais de seis décadas de carreira, de um talento que consagrou suas canções para a eternidade. Muitas delas na parceria de seu grande amigo Roberto Carlos.

A sua singularidade humana permitiu que o tempo passasse e ele continuasse transitando pelas gerações com a mesma alegria, a mesma desenvoltura, a mesma acolhida.

Conviver com a pluralidade, talvez, fosse a maior marca da sua personalidade afetuosa e gentil. Parecia que ele estava sempre de braços abertos para receber uma nova parceria, para compartilhar, para trocar o que a vida tem de bom.  

Por sorte, ou por providência divina, ele pode receber a notícia pela vitória no Grammy Latino. Seu último álbum, “O futuro pertence à... Jovem Guarda”, foi escolhido como o Melhor Álbum de Rock ou de Música Alternativa em Língua Portuguesa, na última quinta-feira, 17 de novembro. Pois é, coisas de um garoto de 81 anos!

E se não fosse a música, ele não teria ido tão longe. Afinal, o sucesso traz fama, notoriedade, dinheiro; mas, é insuficientemente capaz de blindar qualquer ser humano contra as adversidades do mundo.

Na vida dele foram muitos momentos sentados à beira do caminho, sentindo a melancolia e a tristeza, até ser capaz de superar e seguir em frente. Lições gigantes de um gigante!

É, ele tinha que ser gigante mesmo, para fazer caber a sua essência, a sua humanidade. Discreto sem ser arrogante, Erasmo Carlos sabia o que dizer, quando dizer e por quê dizer. Tinha o timing certo, perfeito, das palavras tanto na poesia da sua música quanto na vida. Algo que fica no registro da sua atemporalidade.    

De fato, o tempo nunca fez diferença para o Erasmo. Talvez, porque ele simplesmente se permitiu ser ele. Sempre houve identidade no seu trabalho independente do estilo que ele se propusesse trilhar.

Sempre houve leveza nesse processo. Sempre houve prazer. Sempre houve uma busca por compartilhar com o mundo ao invés de simplesmente satisfazer ao mercado da música. E assim, o trabalho árduo, responsável, criterioso, fluía naturalmente.

Agora, é hora do descanso do guerreiro! Como bem escreveu Caio Fernando Abreu, “ADEUS = A-DEUS: Não é uma despedida, é entregar nas mãos de Deus aquilo que você não pode mais cuidar”.

Ele parte com a certeza de uma missão belissimamente cumprida! Um legado inesquecível! Sai a presença física e entra a imortalidade materializada pelo som inconfundível da sua voz, do acervo audiovisual dos veículos de informação e comunicação e das memórias que cada um guarda, mais do que na mente, na alma.

Hoje é dia para entender que “Sem música a vida não faria sentido” (Friedrich Nietzsche). Obrigado, Erasmo! Você trouxe a percepção exata de que “A música expressa o que não pode ser dito em palavras, mas não pode permanecer em silêncio” (Victor Hugo). Daí a razão pela qual sua presença foi tremendamente impactante entre nós. 

Sagitário - 22 de novembro até o dia 21 de dezembro



segunda-feira, 21 de novembro de 2022

Enquanto a realidade zomba das lutas inglórias


Enquanto a realidade zomba das lutas inglórias

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

 

Olhando com bastante atenção, para o Brasil atual, penso que seria oportuno considerar as palavras do provérbio espanhol que diz “quando você ver as barbas de seu vizinho pegar fogo, ponha as suas de molho”.  Sei que é muito mais interessante a idealização do que a realidade; mas, a vida mesmo em plena contemporaneidade impõe a necessidade de manter os pés fincados em solo bem firme e os olhos bem abertos para enxergar com clareza o que acontece.

Então, considerando aqueles que muito já extrapolaram os limites do devaneio alucinado e cruzaram a fronteira da ilegalidade criminosa e destrutiva, em nome de uma rebeldia estapafúrdia motivada por uma frustração constrangedoramente infantilizada, eis que a notícia do dia merece espaço para reflexão: “China impõe lockdown a 3,7 mi em Guangzhou em meio a debates sobre Covid zero” 1.

Pois é, a Pandemia não acabou. E esse é só um dos motivos pelos quais não há espaço para fazer birra, para criar o caos e a instabilidade social, por aí. Um breve retrospecto do que foram os três últimos anos para a realidade mundial e se chega ao óbvio de que a ameaça viral colocou a vida de 8 bilhões de seres humanos de cabeça para baixo em todos os sentidos. Uma ruptura drástica e profunda aconteceu na dinâmica das relações socioeconômicas, a tal ponto que vem impondo, desde então, a construção de uma nova ordem a fim de recompor e recuperar o desenvolvimento global.

Não, não houve nenhum setor, ou nenhum país, que tenha passado incólume por esse processo. O mundo foi pego no seu contrapé e aqueles que já vinham arrastando suas mazelas secularmente foram, ainda mais, impactados.  O que de certa forma não deveria causar espanto, pois a vida funciona assim. Tudo acontece simultaneamente, o que obriga os indivíduos a aprenderem a existir equilibrando pratos. Tem Sars-Cov-2 e suas variantes circulando livremente por aí. Tem Dengue. Tem Varíola dos macacos (Monkeypox). Tem Sarampo. Tem Poliomielite. Tem inflação subindo e se espalhando entre as classes com maior poder aquisitivo. Tem... de tudo um pouco.

Então, se abster de pensar, fingir que nada disso está acontecendo, negar até o último suspiro, é inútil. Nada disso muda o curso da história. Mas, agir coletiva e responsavelmente muda. Entendo que a estratificação social cria a ideia de bolhas de isolamento que impedem uns e outros de perceberem a realidade exatamente como ela é. Contudo, a recente experiência pandêmica funciona como excelente exemplo para desconstruir essa falsa impressão. Só no Brasil, já são mais de 689 mil mortes (e computando) que aconteceram desconsiderando, por completo, distinções como raça, gênero, idade, credo, status, profissão, escolaridade.

E grande parte desse registro funesto se deu justamente porque faltou nas sociedades, incluindo a brasileira, a consciência empática e coletiva, na qual o exercício da responsabilidade individual repercute no cuidado comunitário. Infelizmente, houve quem negasse terminantemente a existência de limites sociais, para que a sua pseudoliberdade de escolha, de decisão, pudesse vigorar e sobrepor a quaisquer contestações. Mas, como dizia o sociólogo Zygmunt Bauman, “Há dois fatores indispensáveis a uma vida satisfatória e relativamente feliz. Um é segurança e o outro liberdade. Você não consegue ter uma vida digna na ausência de um deles. Segurança sem liberdade é escravidão; liberdade sem segurança é caos...”.

A pergunta a se fazer, então, é por onde anda o equilíbrio entre esses dois fatores, hein? Se essa pergunta não for respondida rapidamente, os desafios tendem a se agigantar diante de nós de uma maneira inimaginável. Porque eles não nascem só dos desdobramentos daquilo que já fizemos ou já conhecemos, há também o imponderável nos espreitando. E é ele que nos impacta com a maior severidade, na medida em que nos pega despreparados, de pés e mãos atados, vulneráveis. Portanto, essa não é uma questão de viés único e estritamente prático, administrativo; mas, ético e moral, tendo em vista de que repercute sobre a vida de bilhões de seres humanos.

Assim, para entender os movimentos antidemocráticos emergidos após o resultado das eleições brasileiras dentro do contexto da realidade que se impõe diante do mundo, basta pensar que “Se os direitos políticos podem ser usados para enraizar e solidificar as liberdades pessoais assentadas no poder econômico, dificilmente garantirão liberdades pessoais aos despossuídos, que não têm nenhum direito aos recursos sem os quais a liberdade pessoal não pode ser obtida nem, na prática, desfrutada” (Zygmunt Bauman- Tempos Líquidos, 2007).

Talvez, isso nos ajude a entender o que Umberto Eco escreveu, “Alguém já disse que o patriotismo é o último refúgio dos canalhas: quem não tem princípios morais costuma se enrolar em uma bandeira, e os bastardos sempre se reportam à pureza da sua raça. A identidade nacional é o último recurso dos deserdados. Muito bem, o senso de identidade se baseia no ódio, no ódio por quem não é idêntico” (O cemitério de Praga, 2010).

Afinal, essas pessoas não querem de modo algum perder essa pseudolegitimidade ideológica, discursiva, social, que o governo vigente lhes proporcionou.  Ninguém ali está preocupado com segurança; mas, quer defender a sua liberdade com unhas e dentes. Uma liberdade que não tem pudor algum de passar por cima de tudo e de todos.

Acontece que à revelia de suas vontades e quereres, no fim das contas, “Nós somos responsáveis pelo outro, estando atentos a isto ou não, desejando ou não, torcendo positivamente ou indo contra, pela simples razão de que, em nosso mundo globalizado, tudo o que fazemos (ou deixamos de fazer) tem impacto na vida de todo mundo e tudo o que as pessoas fazem (ou se privam de fazer) acaba afetando nossas vidas” (Modernidade Líquida, 2001). Simples assim. 

sábado, 19 de novembro de 2022

RACISMO. Entre silêncios confortáveis e convenientes...



RACISMO. Entre silêncios confortáveis e convenientes...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Em pleno século XXI, não deveria mais haver espaço para o racismo, no Brasil ou em quaisquer outros lugares do mundo. Por força da luta e do empenho do povo negro brasileiro, a lei n. º 7.716/89 estabelece que o racismo são “os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”. Mas, veja você, caro (a) leitor (a), que apesar do que diz a legislação, o impulso do que foi impregnado negativamente no inconsciente coletivo nacional, ao longo desses pouco mais de 500 anos de história, ainda permanece resistente e ativo.

Com base em uma construção ideológica, de caráter muitas vezes colonial e imperialista, na qual se permitiu estabelecer que alguns indivíduos poderiam ser mais importantes do que outros, esse modelo social vem regendo a humanidade em um processo de constante recrudescimento do racismo, nas suas mais diferentes formas e conteúdos.

Entretanto, acaba sendo curioso, o fato de o racismo precisar ser estimulado para não perecer. Nelson Mandela, ex-presidente da África do Sul (1994-1999) e prêmio Nobel da Paz (1993), falou a respeito com muita propriedade, quando afirmou que “Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, por sua origem ou ainda por sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender, e se podem aprender a odiar, elas podem ser ensinadas a amar”.   

Portanto, apesar de a raça humana vir se prestando ao papel de disseminar ininterruptamente a ideologia racista, é bom que se diga que isso não acontece meramente sob o ponto de vista autômato e condicionado pelos registros do inconsciente coletivo. As práxis do racismo têm método, têm planejamento, têm propósito a se atingir. Daí a necessidade urgente de dissecar os acontecimentos a fim de depurar com exatidão o papel do racismo no mundo, no sentido de compreender quais os motivos que levaram a sua formulação, quais os benefícios que ele tem retornado para os seus idealizadores e fomentadores, ao longo do curso histórico da humanidade.

É a partir desse ponto que a compreensão tende a emergir robusta e plausível. Ora, desde que a figura humana passou a compor o planeta, uma pirâmide de estratificação social se estabeleceu com base na hierarquização dos poderes; sobretudo, os político-econômicos. Portanto, sempre esteve nas mãos do pequeno estrato do topo piramidal o controle e a vigilância do mundo, ou seja, a vida concebida e determinada pela perspectiva dos interesses dessa ínfima minoria. Que primeiro se estabeleceu pelo combate da força bruta, depois pela conquista territorial e a produção econômica dos espaços, em seguida a organização social político-administrativa, até se chegar ao domínio pelo capital.

Então, as estratificações foram sendo formadas mediante a agregação dos vencedores ao longo desses processos. De modo que, aos vencedores tudo. Aos perdedores a submissão. O que significa que a sua sobrevivência, no campo da convivência e da coexistência humana, estaria subordinada aos ditames dos vencedores, às regras por eles estabelecidas, à soberania das suas decisões. Foi assim, então, que os vencedores se deram conta de que não precisavam suar a camisa para conseguir a manutenção do seu bem-estar, das suas regalias, dos seus privilégios, pois havia um contingente apto a suprir todas as suas vontades e necessidades.

Considerando que os vencedores eram a personificação dos poderes, eles puderam definir as diretrizes do jogo social. Daí as diferenças, as pluralidades, se tornarem uma opção argumentativa mais palatável para suas decisões. Embora tais argumentos pudessem oferecer uma explicação minimamente aceitável, eles jamais disporiam de uma verdadeira capacidade de justificativa ética e moral. Afinal, quaisquer que fossem as diferenças ou as pluralidades apontadas – raça, cor, etnia, religião, procedência nacional etc. –, elas jamais poderiam suplantar a condição existencial humana. No entanto, sendo eles o topo da pirâmide, quem iria contestar? Quem iria contra-argumentar? Quem iria confrontar?

Pois é, sem oposição, o racismo vingou. E com ele todo tipo de absurdos socioeconômicos imagináveis e inimagináveis vieram sendo configurados dentro do coletivo social humano. A tal ponto, que certos discursos, narrativas e práxis beiram as raias do surreal, sem, contudo, causar o mínimo constrangimento na sociedade em geral. Como se houvesse uma completa dissociação, por exemplo, entre a baixa representatividade étnica em diversos campos profissionais e o racismo, ou entre a disparidade salarial e o racismo, ou entre a baixa escolaridade e o racismo.

Acontece que as vítimas do racismo são colocadas, portanto, entre dois mundos. Um mundo de invisibilidade e outro de realidade, porque se por um lado dizem que o racismo não existe por outro quem sofre na alma a sua fúria paga os mesmos impostos, vive as mesmas mazelas sociais, e tem reconhecida constitucionalmente a mesma cidadania. O que significa que o racismo pune seus alvos inúmeras e diferentes vezes, sem que não haja um movimento que o rechace efetivamente. Há um silêncio omisso e perverso que abafa os horrores racistas, para que não se rompa com os pseudoconfortos daqueles que dominam o mundo. Expor o que era para ser invisível impõe a necessidade de desconstruir paradigmas, de transformar, de agir, e isso é trabalhoso.

Não é à toa que a contemporaneidade tem assistido tão de perto a uma exacerbação do racismo conjugada ao conservadorismo e ao negacionismo propagados pela ultradireita, ao redor do mundo. A tentativa desesperada de ajustar o mundo contemporâneo a fim de que ele possa caber nos moldes retrógrados do passado tem se mostrado muito visível nas barbáries racistas 1. A sensação de legitimidade discursiva abriu a Caixa de Pandora! Mas, esse é só o impacto direto expresso pela linguagem. Há muitos outros disfarçados nas entrelinhas do cotidiano, através das manifestações de trabalho análogo à escravidão, da precarização e subaproveitamento profissional, da desqualificação intelectual, enfim...

Mesmo sabendo que o racismo e a injúria racial são crimes, no caso brasileiro, por exemplo, essas pessoas mantêm seus comportamentos e atitudes racistas porque se entendem e se percebem acima de tudo e de todos. Elas são as mesmas que saem, por aí, bradando em alto e bom som, em nome da família, da vida, dos direitos humanos; mas, desde que seja para gente da sua bolha social, que se enquadre dentro dos seus perfis, dos seus protocolos, dos seus ditames e aceites. Portanto, há uma dose de hipocrisia substancial nesses discursos e narrativas que vêm se espalhando pelo mundo.

Já dizia Paulo Freire que, “a inclusão acontece quando se aprende com as diferenças e não com as igualdades”. Mas, para quem detém o poder, isso pouco importa! Suas atitudes demonstram como é fácil se negar a admitir e aceitar, por exemplo, que “tudo o que Hitler fez na Alemanha era legal” (Martin Luther King Jr.). Afinal de contas, pessoas assim, se julgavam legitimadas e autorizadas a exercer o racismo no mais extremo da sua expressão. Portanto, perceba que esse é o ponto de reflexão, “a injustiça num lugar qualquer é uma ameaça à justiça em todo lugar” (Martin Luther King Jr.) e em qualquer tempo. A mudança, então, depende de que lado da história você pretende ficar. Mas, não se esqueça do que disse Desmond Tutu, prêmio Nobel da Paz (1984), “Se você fica neutro em situações de injustiça, você escolhe o lado do opressor”.

sexta-feira, 18 de novembro de 2022

COP27, empobrecimento, fome, demissões em massa ... O planeta de 8 bilhões de pessoas


COP27, empobrecimento, fome, demissões em massa ... O planeta de 8 bilhões de pessoas

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Uma infância registrada pela montagem de inúmeros quebra-cabeças me fez entender que a vida se faz no mosaico contínuo de peças que se conectam. De modo que, de um jeito ou de outro, é impossível romper com a sua lógica indissociável. Os fatos, os acontecimentos, tudo se encontra ligado por uma ponte de significância, de complementariedade de sentido, ainda que à revelia das nossas compreensões ou capacidades de percepção imediata.

Enquanto a 27ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP27) chega ao seu fim, no Egito, ao contrário do que muitos acreditam, o grande protagonista das discussões continua sendo o ser humano. Nenhuma mesa de negociação, nacional ou internacional, deveria acontecer sem que a presença humana fosse considerada o substrato da argumentação, independentemente do assunto que seja objeto de tratativa.

Depende da raça humana todos os rumos do planeta Terra; afinal, já são 8 bilhões de indivíduos ocupando 1/3 do seu espaço geográfico. Portanto, pessoas que precisam que a sua dignidade seja mantida através do acesso à educação, à saúde, à alimentação, ao trabalho, à moradia, ao transporte, ao lazer, à segurança, a um meio ambiente sustentável e equilibrado, em todas as suas etapas de vida. O que implica necessariamente em um movimento permanente de acomodação dessas demandas com todas as políticas socioeconômicas empenhadas por cada país.

Acontece que não é necessário ser nenhum gênio para saber que nem tudo são flores nesse processo! Há aproximadamente um ano, o Relatório sobre as Desigualdades Mundiais, elaborado pelo Laboratório das Desigualdades Mundiais que integra a Escola de Economia de Paris, mostrou, por exemplo, o “Brasil como ‘um dos países mais desiguais do mundo’”, considerando que “os 10% mais ricos no Brasil ganham quase 59% da renda nacional total, os 50% mais pobres ganham 29 vezes menos do que os 10% mais ricos, a metade brasileira mais pobre menos de 1% da riqueza do país e o 1% mais rico possui quase a metade da fortuna patrimonial brasileira” 1.

De modo que esse panorama nos dá uma perspectiva importante acerca de como o fenômeno das Revoluções Industriais, ocorridas a partir da segunda metade do século XVIII, criou um mundo de ilusão fincado sobre as desigualdades reais. Todas as promessas e esperanças sociais projetadas nesse movimento, que veio cunhando ao longo dos séculos uma nova ordem para as relações socioeconômicas, na verdade nunca esteve acessível à grande massa que impulsiona as suas engrenagens.

Enquanto a industrialização promoveu a usurpação e a dilapidação dos recursos naturais para conseguir ampliar e satisfazer as demandas produtivas, ela fez o mesmo com os contingentes de mão de obra, expondo-os à precarização de seus trabalhos, à insalubridade física e mental e à disparidade entre o salário pago e o valor daquilo que é produzido. Isso significa que embora participem ativamente da construção e da consolidação da sociedade de consumo, essa gigantesca fatia da pirâmide social não consegue o acesso para ser parte dela.

Essas pessoas correm desesperadamente em busca da sua sobrevivência cotidiana. O sistema produtivo que as absorve, ou renega, trabalha com extrema crueldade e perversidade para que elas não tenham tempo ou condições de desfrutar dos resultados do seu próprio trabalho. Elas estão sempre muitos passos atrás da própria tecnologia e ciência que verte do seu esforço. Seja no campo dos bens, produtos e serviços, seja nos avanços médicos, seja na satisfação da sua segurança alimentar, enfim... E quando os eventos extremos do clima decidem arrasar o planeta, em resposta a tudo o que o sistema produtivo lhe impôs, é a vida delas que está linha de frente, submetidas aos piores impactos e tragédias, pela fragilidade imposta à sua condição habitacional.

Mas, mergulhando um pouco mais fundo nessa realidade, eis que, infelizmente, nos deparamos com a persistente manifestação do trabalho análogo à escravidão. De maneira sutil ou direta, fato é que, para manter as regalias, os privilégios e os lucros do sistema produtivo global, uma parcela da humanidade não se constrange em submeter pessoas a tais condições. O trabalho análogo à escravidão vem sendo recorrente nas mais diversas áreas de trabalho, ao redor do planeta, enquanto a opulência e o poder desfilam sob aplausos sem que se questione as bases que os sustentam. Na verdade, como sempre aconteceu no curso da história humana sobre a Terra.

Por isso, a notícia de que grandes empresas, lideradas por multimilionários, têm feito demissões em massa e proposto aos funcionários remanescentes a vergonhosa proposta de trabalhar exaustivas jornadas para compensar a insuficiência numérica dos colegas 2, merece ser discutida com atenção. Paira no ar um risco iminente de que essas práxis se tornem exemplos a serem seguidos, especialmente, em países onde a legislação trabalhista seja frágil e inconsistente para amparar os trabalhadores.

Está claro que o que está sendo colocado em discussão é que o lucro não pode ser compatibilizado com o ser humano, e que este pode ser submetido aos extremos da sua insalubridade física e mental, em nome do desenvolvimento e do progresso. É possível perceber, então, que estamos à beira de um verdadeiro caos, muito antes do que se imagina. O recrudescimento da precarização do trabalho e da insuficiência dos salários para uma gigantesca parcela da população mundial, induz as pessoas a se submeterem a tais condições em nome da sobrevivência, sem dimensionarem à sua própria capacidade de resistir aos efeitos da indignidade humana.

Embora tenha dito no início dessa reflexão que o ser humano é protagonista das discussões nacionais e internacionais, não necessariamente isso aponta para a direção correta das suas demandas, dos seus interesses, da sua humanidade. Entre falas, relatórios, debates, fóruns, aos que ainda insistem em não entender, no frigir dos ovos o que temos diante dos olhos é a mais absoluta desimportância do ser humano, na sua essência, na sua condição existencial. Em uma linha de prioridades, ele está sendo alocado, cada vez mais, no final de todas as filas para que não represente prejuízo ao poder capital. Assim, ele vaga sem destino, sem grandes expectativas, na torcida para que alguém se condoa com os seus sofrimentos, que alguém se comova com a sua realidade.