sábado, 19 de novembro de 2022

RACISMO. Entre silêncios confortáveis e convenientes...



RACISMO. Entre silêncios confortáveis e convenientes...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Em pleno século XXI, não deveria mais haver espaço para o racismo, no Brasil ou em quaisquer outros lugares do mundo. Por força da luta e do empenho do povo negro brasileiro, a lei n. º 7.716/89 estabelece que o racismo são “os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”. Mas, veja você, caro (a) leitor (a), que apesar do que diz a legislação, o impulso do que foi impregnado negativamente no inconsciente coletivo nacional, ao longo desses pouco mais de 500 anos de história, ainda permanece resistente e ativo.

Com base em uma construção ideológica, de caráter muitas vezes colonial e imperialista, na qual se permitiu estabelecer que alguns indivíduos poderiam ser mais importantes do que outros, esse modelo social vem regendo a humanidade em um processo de constante recrudescimento do racismo, nas suas mais diferentes formas e conteúdos.

Entretanto, acaba sendo curioso, o fato de o racismo precisar ser estimulado para não perecer. Nelson Mandela, ex-presidente da África do Sul (1994-1999) e prêmio Nobel da Paz (1993), falou a respeito com muita propriedade, quando afirmou que “Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, por sua origem ou ainda por sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender, e se podem aprender a odiar, elas podem ser ensinadas a amar”.   

Portanto, apesar de a raça humana vir se prestando ao papel de disseminar ininterruptamente a ideologia racista, é bom que se diga que isso não acontece meramente sob o ponto de vista autômato e condicionado pelos registros do inconsciente coletivo. As práxis do racismo têm método, têm planejamento, têm propósito a se atingir. Daí a necessidade urgente de dissecar os acontecimentos a fim de depurar com exatidão o papel do racismo no mundo, no sentido de compreender quais os motivos que levaram a sua formulação, quais os benefícios que ele tem retornado para os seus idealizadores e fomentadores, ao longo do curso histórico da humanidade.

É a partir desse ponto que a compreensão tende a emergir robusta e plausível. Ora, desde que a figura humana passou a compor o planeta, uma pirâmide de estratificação social se estabeleceu com base na hierarquização dos poderes; sobretudo, os político-econômicos. Portanto, sempre esteve nas mãos do pequeno estrato do topo piramidal o controle e a vigilância do mundo, ou seja, a vida concebida e determinada pela perspectiva dos interesses dessa ínfima minoria. Que primeiro se estabeleceu pelo combate da força bruta, depois pela conquista territorial e a produção econômica dos espaços, em seguida a organização social político-administrativa, até se chegar ao domínio pelo capital.

Então, as estratificações foram sendo formadas mediante a agregação dos vencedores ao longo desses processos. De modo que, aos vencedores tudo. Aos perdedores a submissão. O que significa que a sua sobrevivência, no campo da convivência e da coexistência humana, estaria subordinada aos ditames dos vencedores, às regras por eles estabelecidas, à soberania das suas decisões. Foi assim, então, que os vencedores se deram conta de que não precisavam suar a camisa para conseguir a manutenção do seu bem-estar, das suas regalias, dos seus privilégios, pois havia um contingente apto a suprir todas as suas vontades e necessidades.

Considerando que os vencedores eram a personificação dos poderes, eles puderam definir as diretrizes do jogo social. Daí as diferenças, as pluralidades, se tornarem uma opção argumentativa mais palatável para suas decisões. Embora tais argumentos pudessem oferecer uma explicação minimamente aceitável, eles jamais disporiam de uma verdadeira capacidade de justificativa ética e moral. Afinal, quaisquer que fossem as diferenças ou as pluralidades apontadas – raça, cor, etnia, religião, procedência nacional etc. –, elas jamais poderiam suplantar a condição existencial humana. No entanto, sendo eles o topo da pirâmide, quem iria contestar? Quem iria contra-argumentar? Quem iria confrontar?

Pois é, sem oposição, o racismo vingou. E com ele todo tipo de absurdos socioeconômicos imagináveis e inimagináveis vieram sendo configurados dentro do coletivo social humano. A tal ponto, que certos discursos, narrativas e práxis beiram as raias do surreal, sem, contudo, causar o mínimo constrangimento na sociedade em geral. Como se houvesse uma completa dissociação, por exemplo, entre a baixa representatividade étnica em diversos campos profissionais e o racismo, ou entre a disparidade salarial e o racismo, ou entre a baixa escolaridade e o racismo.

Acontece que as vítimas do racismo são colocadas, portanto, entre dois mundos. Um mundo de invisibilidade e outro de realidade, porque se por um lado dizem que o racismo não existe por outro quem sofre na alma a sua fúria paga os mesmos impostos, vive as mesmas mazelas sociais, e tem reconhecida constitucionalmente a mesma cidadania. O que significa que o racismo pune seus alvos inúmeras e diferentes vezes, sem que não haja um movimento que o rechace efetivamente. Há um silêncio omisso e perverso que abafa os horrores racistas, para que não se rompa com os pseudoconfortos daqueles que dominam o mundo. Expor o que era para ser invisível impõe a necessidade de desconstruir paradigmas, de transformar, de agir, e isso é trabalhoso.

Não é à toa que a contemporaneidade tem assistido tão de perto a uma exacerbação do racismo conjugada ao conservadorismo e ao negacionismo propagados pela ultradireita, ao redor do mundo. A tentativa desesperada de ajustar o mundo contemporâneo a fim de que ele possa caber nos moldes retrógrados do passado tem se mostrado muito visível nas barbáries racistas 1. A sensação de legitimidade discursiva abriu a Caixa de Pandora! Mas, esse é só o impacto direto expresso pela linguagem. Há muitos outros disfarçados nas entrelinhas do cotidiano, através das manifestações de trabalho análogo à escravidão, da precarização e subaproveitamento profissional, da desqualificação intelectual, enfim...

Mesmo sabendo que o racismo e a injúria racial são crimes, no caso brasileiro, por exemplo, essas pessoas mantêm seus comportamentos e atitudes racistas porque se entendem e se percebem acima de tudo e de todos. Elas são as mesmas que saem, por aí, bradando em alto e bom som, em nome da família, da vida, dos direitos humanos; mas, desde que seja para gente da sua bolha social, que se enquadre dentro dos seus perfis, dos seus protocolos, dos seus ditames e aceites. Portanto, há uma dose de hipocrisia substancial nesses discursos e narrativas que vêm se espalhando pelo mundo.

Já dizia Paulo Freire que, “a inclusão acontece quando se aprende com as diferenças e não com as igualdades”. Mas, para quem detém o poder, isso pouco importa! Suas atitudes demonstram como é fácil se negar a admitir e aceitar, por exemplo, que “tudo o que Hitler fez na Alemanha era legal” (Martin Luther King Jr.). Afinal de contas, pessoas assim, se julgavam legitimadas e autorizadas a exercer o racismo no mais extremo da sua expressão. Portanto, perceba que esse é o ponto de reflexão, “a injustiça num lugar qualquer é uma ameaça à justiça em todo lugar” (Martin Luther King Jr.) e em qualquer tempo. A mudança, então, depende de que lado da história você pretende ficar. Mas, não se esqueça do que disse Desmond Tutu, prêmio Nobel da Paz (1984), “Se você fica neutro em situações de injustiça, você escolhe o lado do opressor”.

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