Por
Alessandra Leles Rocha
Em pleno século XXI, não deveria
mais haver espaço para o racismo, no Brasil ou em quaisquer outros lugares do
mundo. Por força da luta e do empenho do povo negro brasileiro, a lei n. º
7.716/89 estabelece que o racismo são “os
crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia,
religião ou procedência nacional”. Mas, veja você, caro (a) leitor (a), que
apesar do que diz a legislação, o impulso do que foi impregnado negativamente
no inconsciente coletivo nacional, ao longo desses pouco mais de 500 anos de
história, ainda permanece resistente e ativo.
Com base em uma construção
ideológica, de caráter muitas vezes colonial e imperialista, na qual se
permitiu estabelecer que alguns indivíduos poderiam ser mais importantes do que
outros, esse modelo social vem regendo a humanidade em um processo de constante
recrudescimento do racismo, nas suas mais diferentes formas e conteúdos.
Entretanto, acaba sendo curioso,
o fato de o racismo precisar ser estimulado para não perecer. Nelson Mandela,
ex-presidente da África do Sul (1994-1999) e prêmio Nobel da Paz (1993), falou
a respeito com muita propriedade, quando afirmou que “Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, por sua
origem ou ainda por sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender, e
se podem aprender a odiar, elas podem ser ensinadas a amar”.
Portanto, apesar de a raça humana
vir se prestando ao papel de disseminar ininterruptamente a ideologia racista,
é bom que se diga que isso não acontece meramente sob o ponto de vista autômato
e condicionado pelos registros do inconsciente coletivo. As práxis do racismo
têm método, têm planejamento, têm propósito a se atingir. Daí a necessidade
urgente de dissecar os acontecimentos a fim de depurar com exatidão o papel do
racismo no mundo, no sentido de compreender quais os motivos que levaram a sua
formulação, quais os benefícios que ele tem retornado para os seus
idealizadores e fomentadores, ao longo do curso histórico da humanidade.
É a partir desse ponto que a
compreensão tende a emergir robusta e plausível. Ora, desde que a figura humana
passou a compor o planeta, uma pirâmide de estratificação social se estabeleceu
com base na hierarquização dos poderes; sobretudo, os político-econômicos.
Portanto, sempre esteve nas mãos do pequeno estrato do topo piramidal o
controle e a vigilância do mundo, ou seja, a vida concebida e determinada pela
perspectiva dos interesses dessa ínfima minoria. Que primeiro se estabeleceu
pelo combate da força bruta, depois pela conquista territorial e a produção
econômica dos espaços, em seguida a organização social político-administrativa,
até se chegar ao domínio pelo capital.
Então, as estratificações foram
sendo formadas mediante a agregação dos vencedores ao longo desses processos.
De modo que, aos vencedores tudo. Aos perdedores a submissão. O que significa
que a sua sobrevivência, no campo da convivência e da coexistência humana,
estaria subordinada aos ditames dos vencedores, às regras por eles
estabelecidas, à soberania das suas decisões. Foi assim, então, que os
vencedores se deram conta de que não precisavam suar a camisa para conseguir a
manutenção do seu bem-estar, das suas regalias, dos seus privilégios, pois
havia um contingente apto a suprir todas as suas vontades e necessidades.
Considerando que os vencedores
eram a personificação dos poderes, eles puderam definir as diretrizes do jogo
social. Daí as diferenças, as pluralidades, se tornarem uma opção argumentativa
mais palatável para suas decisões. Embora tais argumentos pudessem oferecer uma
explicação minimamente aceitável, eles jamais disporiam de uma verdadeira capacidade
de justificativa ética e moral. Afinal, quaisquer que fossem as diferenças ou
as pluralidades apontadas – raça, cor, etnia, religião, procedência nacional
etc. –, elas jamais poderiam suplantar a condição existencial humana. No
entanto, sendo eles o topo da pirâmide, quem iria contestar? Quem iria
contra-argumentar? Quem iria confrontar?
Pois é, sem oposição, o racismo
vingou. E com ele todo tipo de absurdos socioeconômicos imagináveis e
inimagináveis vieram sendo configurados dentro do coletivo social humano. A tal
ponto, que certos discursos, narrativas e práxis beiram as raias do surreal,
sem, contudo, causar o mínimo constrangimento na sociedade em geral. Como se
houvesse uma completa dissociação, por exemplo, entre a baixa
representatividade étnica em diversos campos profissionais e o racismo, ou
entre a disparidade salarial e o racismo, ou entre a baixa escolaridade e o
racismo.
Acontece que as vítimas do
racismo são colocadas, portanto, entre dois mundos. Um mundo de invisibilidade
e outro de realidade, porque se por um lado dizem que o racismo não existe por
outro quem sofre na alma a sua fúria paga os mesmos impostos, vive as mesmas
mazelas sociais, e tem reconhecida constitucionalmente a mesma cidadania. O que
significa que o racismo pune seus alvos inúmeras e diferentes vezes, sem que
não haja um movimento que o rechace efetivamente. Há um silêncio omisso e
perverso que abafa os horrores racistas, para que não se rompa com os
pseudoconfortos daqueles que dominam o mundo. Expor o que era para ser
invisível impõe a necessidade de desconstruir paradigmas, de transformar, de
agir, e isso é trabalhoso.
Não é à toa que a
contemporaneidade tem assistido tão de perto a uma exacerbação do racismo
conjugada ao conservadorismo e ao negacionismo propagados pela ultradireita, ao
redor do mundo. A tentativa desesperada de ajustar o mundo contemporâneo a fim
de que ele possa caber nos moldes retrógrados do passado tem se mostrado muito
visível nas barbáries racistas 1. A
sensação de legitimidade discursiva abriu a Caixa de Pandora! Mas, esse é só o
impacto direto expresso pela linguagem. Há muitos outros disfarçados nas
entrelinhas do cotidiano, através das manifestações de trabalho análogo à
escravidão, da precarização e subaproveitamento profissional, da
desqualificação intelectual, enfim...
Mesmo sabendo que o racismo e a
injúria racial são crimes, no caso brasileiro, por exemplo, essas pessoas mantêm
seus comportamentos e atitudes racistas porque se entendem e se percebem acima
de tudo e de todos. Elas são as mesmas que saem, por aí, bradando em alto e bom
som, em nome da família, da vida, dos direitos humanos; mas, desde que seja
para gente da sua bolha social, que se enquadre dentro dos seus perfis, dos
seus protocolos, dos seus ditames e aceites. Portanto, há uma dose de
hipocrisia substancial nesses discursos e narrativas que vêm se espalhando pelo
mundo.
Já dizia Paulo Freire que, “a inclusão acontece quando se aprende com
as diferenças e não com as igualdades”. Mas, para quem detém o poder, isso
pouco importa! Suas atitudes demonstram como é fácil se negar a admitir e
aceitar, por exemplo, que “tudo o que
Hitler fez na Alemanha era legal” (Martin Luther King Jr.). Afinal de
contas, pessoas assim, se julgavam legitimadas e autorizadas a exercer o
racismo no mais extremo da sua expressão. Portanto, perceba que esse é o ponto
de reflexão, “a injustiça num lugar
qualquer é uma ameaça à justiça em todo lugar” (Martin Luther King Jr.) e
em qualquer tempo. A mudança, então, depende de que lado da história você
pretende ficar. Mas, não se esqueça do que disse Desmond Tutu, prêmio Nobel da
Paz (1984), “Se você fica neutro em
situações de injustiça, você escolhe o lado do opressor”.