Enquanto
a realidade zomba das lutas inglórias
Por
Alessandra Leles Rocha
Olhando com bastante atenção,
para o Brasil atual, penso que seria oportuno considerar as palavras do provérbio
espanhol que diz “quando você ver as
barbas de seu vizinho pegar fogo, ponha as suas de molho”. Sei que é muito mais interessante a idealização
do que a realidade; mas, a vida mesmo em plena contemporaneidade impõe a
necessidade de manter os pés fincados em solo bem firme e os olhos bem abertos
para enxergar com clareza o que acontece.
Então, considerando aqueles que
muito já extrapolaram os limites do devaneio alucinado e cruzaram a fronteira
da ilegalidade criminosa e destrutiva, em nome de uma rebeldia estapafúrdia motivada
por uma frustração constrangedoramente infantilizada, eis que a notícia do dia
merece espaço para reflexão: “China impõe
lockdown a 3,7 mi em Guangzhou em meio a debates sobre Covid zero” 1.
Pois é, a Pandemia não acabou. E
esse é só um dos motivos pelos quais não há espaço para fazer birra, para criar
o caos e a instabilidade social, por aí. Um breve retrospecto do que foram os três
últimos anos para a realidade mundial e se chega ao óbvio de que a ameaça viral
colocou a vida de 8 bilhões de seres humanos de cabeça para baixo em todos os
sentidos. Uma ruptura drástica e profunda aconteceu na dinâmica das relações socioeconômicas,
a tal ponto que vem impondo, desde então, a construção de uma nova ordem a fim
de recompor e recuperar o desenvolvimento global.
Não, não houve nenhum setor, ou
nenhum país, que tenha passado incólume por esse processo. O mundo foi pego no
seu contrapé e aqueles que já vinham arrastando suas mazelas secularmente
foram, ainda mais, impactados. O que de
certa forma não deveria causar espanto, pois a vida funciona assim. Tudo
acontece simultaneamente, o que obriga os indivíduos a aprenderem a existir equilibrando
pratos. Tem Sars-Cov-2 e suas variantes circulando livremente por aí. Tem
Dengue. Tem Varíola dos macacos (Monkeypox). Tem Sarampo. Tem Poliomielite. Tem
inflação subindo e se espalhando entre as classes com maior poder aquisitivo. Tem...
de tudo um pouco.
Então, se abster de pensar,
fingir que nada disso está acontecendo, negar até o último suspiro, é inútil. Nada
disso muda o curso da história. Mas, agir coletiva e responsavelmente muda. Entendo
que a estratificação social cria a ideia de bolhas de isolamento que impedem
uns e outros de perceberem a realidade exatamente como ela é. Contudo, a
recente experiência pandêmica funciona como excelente exemplo para desconstruir
essa falsa impressão. Só no Brasil, já são mais de 689 mil mortes (e
computando) que aconteceram desconsiderando, por completo, distinções como
raça, gênero, idade, credo, status, profissão, escolaridade.
E grande parte desse registro
funesto se deu justamente porque faltou nas sociedades, incluindo a brasileira,
a consciência empática e coletiva, na qual o exercício da responsabilidade
individual repercute no cuidado comunitário. Infelizmente, houve quem negasse terminantemente
a existência de limites sociais, para que a sua pseudoliberdade de escolha, de
decisão, pudesse vigorar e sobrepor a quaisquer contestações. Mas, como dizia o
sociólogo Zygmunt Bauman, “Há dois
fatores indispensáveis a uma vida satisfatória e relativamente feliz. Um é
segurança e o outro liberdade. Você não consegue ter uma vida digna na ausência
de um deles. Segurança sem liberdade é escravidão; liberdade sem segurança é
caos...”.
A pergunta a se fazer, então, é
por onde anda o equilíbrio entre esses dois fatores, hein? Se essa pergunta não
for respondida rapidamente, os desafios tendem a se agigantar diante de nós de
uma maneira inimaginável. Porque eles não nascem só dos desdobramentos daquilo
que já fizemos ou já conhecemos, há também o imponderável nos espreitando. E é
ele que nos impacta com a maior severidade, na medida em que nos pega
despreparados, de pés e mãos atados, vulneráveis. Portanto, essa não é uma
questão de viés único e estritamente prático, administrativo; mas, ético e
moral, tendo em vista de que repercute sobre a vida de bilhões de seres
humanos.
Assim, para entender os
movimentos antidemocráticos emergidos após o resultado das eleições brasileiras
dentro do contexto da realidade que se impõe diante do mundo, basta pensar que “Se os direitos políticos podem ser usados
para enraizar e solidificar as liberdades pessoais assentadas no poder econômico,
dificilmente garantirão liberdades pessoais aos despossuídos, que não têm
nenhum direito aos recursos sem os quais a liberdade pessoal não pode ser
obtida nem, na prática, desfrutada” (Zygmunt Bauman- Tempos Líquidos, 2007).
Talvez, isso nos ajude a entender
o que Umberto Eco escreveu, “Alguém já
disse que o patriotismo é o último refúgio dos canalhas: quem não tem
princípios morais costuma se enrolar em uma bandeira, e os bastardos sempre se
reportam à pureza da sua raça. A identidade nacional é o último recurso dos
deserdados. Muito bem, o senso de identidade se baseia no ódio, no ódio por
quem não é idêntico” (O cemitério de Praga, 2010).
Afinal, essas pessoas não querem de
modo algum perder essa pseudolegitimidade ideológica, discursiva, social, que o
governo vigente lhes proporcionou. Ninguém
ali está preocupado com segurança; mas, quer defender a sua liberdade com unhas
e dentes. Uma liberdade que não tem pudor algum de passar por cima de tudo e de
todos.
Acontece que à revelia de suas vontades e quereres, no fim das contas, “Nós somos responsáveis pelo outro, estando atentos a isto ou não, desejando ou não, torcendo positivamente ou indo contra, pela simples razão de que, em nosso mundo globalizado, tudo o que fazemos (ou deixamos de fazer) tem impacto na vida de todo mundo e tudo o que as pessoas fazem (ou se privam de fazer) acaba afetando nossas vidas” (Modernidade Líquida, 2001). Simples assim.