segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

A íntima relação entre as guerras e as desigualdades


A íntima relação entre as guerras e as desigualdades

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Vira daqui, mexe dali, e no fim das contas historicamente tudo converge para as desigualdades. Haja vista o que foi a dizimação de inúmeros povos originários, durante o período colonial, dada a disparidade de forças que se estabeleceu entre colonizados e colonizadores.

Acontece que os séculos se passaram e essa realidade no campo dos conflitos não só permaneceu; mas, se acirrou com o advento das armas nucleares, biológicas e químicas, as quais nem todos os países tiveram o mesmo nível de acessibilidade.

Isso significa que nos rearranjos geopolíticos que vieram se estabelecendo, principalmente depois da Segunda Guerra Mundial, de maneira explícita ou implícita, a verdade é que diversos países se colocam sob uma eventual guarida bélica das potências que realmente desfrutam desse poder.

Portanto, a desigualdade no campo do confronto armamentista tece certas alianças e aproximações necessárias para mitigar eventuais investidas surpresa. Mas, é lógico que essa proteção cobra um preço.

Afinal, ela amplia o poder de influência geopolítica de quem protege, sob diferentes aspectos. O que significa manter-se numa zona de conforto bastante útil, pelo fato de ter cartas na manga muito poderosas e que não enfrentam uma resistência maciça.

Daí a razão de ela ser questionada a respeito de não se dispor a mostrar qualquer interesse em atuar a favor da redução da desigualdade, ao invés de manter esse tipo de controle. Agora, diante da invasão da Ucrânia pela Rússia se tem a perspectiva real desses movimentos.

A Rússia tenta justificar sua incursão no país vizinho, com base em suposto temor da proximidade da Ucrânia com os países ocidentais, como se isso representasse uma ameaça a sua estabilidade e segurança.

Ora, na verdade, os russos provaram que quaisquer países em condições bélicas inferiores as suas, como no caso da Ucrânia, podem se tornar seus alvos de ataque, sem qualquer pudor ou argumento plausível. Então, eles não deveriam ter o direito de se proteger, de se defender?

Talvez, por isso, antecipando esse tipo de deslocamento, é que alguns países como a Estônia, Letônia e Lituânia, tenham se integrado à União Europeia (UE), tão logo, o fim do antigo bloco da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), o qual eles faziam parte. Algo que a Ucrânia, diante da atual guerra, agora pretende formalizar.

Assim, considerando que alguns desses países estão, também, na rota geográfica da Rússia, no leste europeu, o desalinhamento da Ucrânia às influências de Moscou, graças ao fortalecimento dela através da UE, significaria prejuízos importantes aos interesses geopolíticos russos.

Sim, porque uma a adesão à UE representa o fortalecimento de aspectos econômicos e políticos, incluindo militares, por meio de parcerias entre os 27 países-membros, ou seja, Alemanha, Áustria, Bélgica, Bulgária, Chipre, Croácia, Dinamarca, Eslováquia, Eslovênia, Espanha, Estônia, Finlândia, França, Grécia, Holanda, Hungria, Irlanda, Itália, Letônia, Lituânia, Luxemburgo, Malta, Polônia, Portugal, República Tcheca, Romênia e Suécia.

De repente, se percebe que a desigualdade que fortalece alguns desfavorece aos outros. No caso da Rússia, a sua imponência bélico-militar tende a se fragilizar diante de um coletivo de forças equivalentes as suas.

E foi justamente nesse ponto que a tática russa se equivocou, ao gerar um conflito sem pé nem cabeça. Ela não só agregou, ainda mais, aqueles que ela gostaria de desagregar no continente europeu; mas, também, aproximou o apoio norte-americano deles.

Desde o fim da URSS, a Rússia parece insistir em lutar contra um fantasma que quer ameaçar o seu quinhão de poder e influência no mundo, como ela desfrutava nos áureos tempos da Guerra Fria.  

Tudo isso, então, nos dá pistas importantes sobre as razões que levam o mundo a viver sob eterna tensão. A presença da desigualdade, independentemente da forma ou conteúdo que ela se configure, é um instrumento antipacifista por excelência, na medida em que frustra a possibilidade de igualdade e equidade, parcial ou integralmente, das nações.

De modo que ela desequilibra e desregula as relações humanas a tal ponto de conseguir promover a destruição da autonomia, da independência, da liberdade, de um dos lados em questão, ou seja, aquele que está em desvantagem sob algum aspecto.

Porém, apesar dos pesares, ela sinaliza de uma maneira bastante contundente uma verdade incontestável. Ninguém, e nem quaisquer países, são autossuficientes em tudo. Razão pela qual o mundo precisa equacionar e reequilibrar o seu conjunto de forças, para que a cooperação, as parcerias, as colaborações, o auxílio mútuo, o esforço conjunto, possa acontecer de maneira distensionada e distante de conflitos de alta beligerância.

Por isso, acredito que a desigualdade a ser eliminada prioritariamente seja essa, a bélico-militar. Afinal de contas, a existência humana tem um leque de demandas a serem supridas e que se tornam reféns de disputas totalmente antiproducentes.

Então, enquanto todos tentam segurar suas cartas na manga, na materialidade de seus arsenais, um sinal claro e objetivo de desconfiança e ameaça iminente ronda a humanidade e não leva nada a lugar algum.

De modo que todas as demais relações diplomáticas, comerciais e humanitárias, que pareciam urgentes, se mostram, na verdade, como um transpirar de teatralidade ficcional absurdo. De repente, todos se esquecem da miséria, da fome, do desemprego, das doenças, ... Porque todos passam a saber que cada um dos atores esconde consigo uma arma prestes a destruir o outro.

Aí, basta uma falha de comunicação, um mal-entendido, um desinteresse repentino, uma aliança equivocada, ... e as rupturas são deflagradas ao ritmo dos tanques e das bombas.  Os mais pobres ficarão mais pobres. Os mais ricos ficarão mais ricos. Enquanto a desigualdade triunfa, como sempre fez, o seu esplendor nefasto. Assim, a humanidade se entorpece e continua acreditando que “A guerra é a paz. A liberdade é a escravatura. A ignorância é a força” (George Orwell, 1984).


Sobre nós e nossos Infernos


Sobre nós e nossos Infernos

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Parece que o mundo entrou mesmo em “inferno astral”! Instalada uma pandemia decorrente de um vírus, até então, desconhecido, eis que uma guerra, sem razão de ser, foi deflagrada no leste europeu. Sem contar todas as catástrofes climáticas recentes ocorridas em diferentes partes do planeta.

De modo que esse “inferno”, então, vem transformando os cenários, fechando ciclos, desconstruindo paradigmas, para um novo alinhamento da humanidade sob diferentes aspectos.

Mas, até que tudo se acomode, muita água vai rolar por debaixo da ponte da história. E nenhuma dessas circunstâncias chegou encontrando um terreno organizado e preparado para os solavancos que elas inevitavelmente promoveriam. Afinal, o inesperado não manda recado de que está chegando, simplesmente, ele chega.

Aos habituados a fazer o dever de casa bem feito, de cumprirem as obrigações regiamente, de planejarem com antecedência e previdência, os desafios são sempre menos amargos.

Porém, para aqueles que são o contraponto disso, os tempos tendem a ser, de fato, infernais, no sentido mais horroroso e diabólico da palavra. Infelizmente, o Brasil faz parte desse grupo.

Quando fomos surpreendidos pela pandemia, o desmantelamento das estruturas institucionais e seus serviços já estava em curso, por conta da proposta de política pública e de economia delineado pelo atual governo federal.

Acontece que não houve tempo hábil, nem mesmo, para acomodar mudanças tão radicais e impactantes, antes que a pandemia e seus sucessivos desdobramentos apresentassem suas credenciais. O tsunami dos acontecimentos varreu tudo de uma vez e deslocou quaisquer possibilidades de reorganização, deixando o cotidiano transitar sobre escombros dessa imensa confusão.

O resultado desse processo, as estatísticas informam sem deixar dúvidas. O país que já não crescia, apresentou estagnação em diversos setores, puxando o Produto Interno Bruto (PIB) para abaixo das expectativas. A inflação ressurgiu das cinzas com toda a sua voracidade. A política de juros teve que entrar em cena, elevando os seus patamares.

Assim, enquanto centenas de milhares de pessoas morreram (e centenas, ainda, morrem diariamente) pela COVID-19, em consequência da má gestão da pandemia pelo governo, que ficou registrada devidamente nos anais da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), instaurada pelo Senado da República, outros milhões vêm sendo expostos gradativamente aos infortúnios e mazelas decorrentes dos vieses da má gestão da economia pelo governo. 

Acontece que, no meio dessa situação, eventos extremos do clima trouxeram calamidade e destruição para diversos municípios, em diferentes estados brasileiros, enovelando ainda mais os problemas socioeconômicos, os quais já vinham sendo experimentados.

Não, não foi apenas a situação de desalento e de perdas materiais e humanas. Tais eventos não apenas destruíram vias importantes de transporte e escoamento de mercadorias, tendo em vista que a malha rodoviária nacional é que garante quase a totalidade desse fluxo; mas, também, e de maneira total ou parcial, áreas de produção e armazenamento agrícola, estações de tratamento de água e esgoto, pontes, barragens,...

Promovendo, assim, impactos de ordem econômica bastante significativos, por demandarem longos prazos de recuperação e reestabelecimento do equilíbrio. De modo que as estatísticas dos cenários nacionais ganharam contornos ainda mais sérios e preocupantes.

Mas, ninguém cogitava que uma guerra internacional estaria por se efetivar e sacudir a poeira, como mostram os veículos de informação e comunicação, nos últimos cinco dias. As investidas russas sobre o território da Ucrânia elevaram as tensões a tal ponto que as respostas diplomáticas internacionais tiveram que ser proporcionais à gravidade da situação.

O que significa que os mercados, em breve, terão a dimensão dos desdobramentos sobre a economia do mundo. Especialmente, no que diz respeito ao que rege os interesses econômicos russos no contexto global, tais como petróleo, combustíveis, commodities e relações cambiais.

No caso do Brasil, então, as sanções impostas à Rússia pela diplomacia internacional representarão impactos aos combustíveis, fertilizantes (o que eleva o preço do trigo e seus derivados) e ao sistema financeiro que poderá resultar em uma disparada, ainda maior, da inflação.

Em suma, o que estava ruim, agora, vai ficar péssimo. E quem mais sofre nesse cenário são as populações mais vulneráveis e desassistidas. De modo que se há um aprendizado extremamente relevante nesse momento é o fato de as conjunturas nos chamarem a atenção para a impossibilidade de levar a vida com displicência, sem planejamentos, sem responsabilidade, sem previdência.

O mundo contemporâneo não cabe amadores. Para viver nele é preciso ser expert, ou seja, profissional altamente qualificado e capacitado para lidar com tantas adversidades simultâneas. A realidade de curto prazo que se vislumbra para o Brasil, então, não é ruim apenas pelo fato da guerra em si; mas, por este possibilitar o aprofundamento do buraco socioeconômico em que o país já se encontra.

Afinal, o contexto globalizante, analisado tanto em relação à pandemia quanto à guerra, demanda uma recuperação coletiva que seja suficientemente capaz de se refletir nos atores envolvidos de maneira individual.

Ou seja, não adianta que alguns se recuperem mais rápido do que outros, considerando as teias sociais e comerciais estabelecidas. As economias precisar estar minimamente equilibradas para o processo fluir.

O Brasil está, portanto, sendo confrontado direta e objetivamente pelo modo como vem construindo suas perspectivas governamentais e políticas. Descobrindo como é jogar um jogo que acontece simultaneamente em dois tabuleiros distintos, um nacional e outro global, os quais precisam se compatibilizar a fim de gerar um resultado minimamente positivo. Um jogo em que prevalece a razão e não, a emoção.

Afinal, segundo Anthony Giddens, “A consciência humana está condicionada em uma interação dialética entre sujeito e objeto, na qual o homem molda ativamente o mundo em que vive ao mesmo tempo em que é moldado por ele” (Capitalismo e Teoria Social Moderna, 1971, p.21).

Tudo porque a contemporaneidade vem exigindo cada vez mais da participação humana uma consciência factual do que meramente uma encenação ficcional.

Portanto, estamos diante de uma situação conjuntural em que se torna necessário o protagonismo estadista. Saber o que quer, porque quer e como fazer para alcançar tal objetivo. Algo que demanda preparo, conhecimento, capacidade dialógica e de articulação; mas, que a poucos pertence.

Daí, voltamos ao marco zero das nossas escolhas e percebemos o quão delicado é não levá-las a sério, pois nunca se sabe o dia de amanhã.  Talvez, por isso, é que os textos judaicos nos alertem para o fato de que “Os homens são criadores do seu próprio inferno”.


sábado, 26 de fevereiro de 2022

Guerra. Paz. No fim, tudo parte da reflexão.


Guerra. Paz. No fim, tudo parte da reflexão.

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

A experiência de uma guerra real, talvez, seja capaz de fazer com que uma boa parte da humanidade reavalie os seus pontos de vista políticos. Especialmente, no que diz respeito a desconsiderar ou desqualificar certos discursos e comportamentos de seus representantes, atribuindo-lhes, muitas vezes, um caráter de mera fanfarronice. Afinal, no campo político nada é à toa, nada é brincadeira, nada é blefe, porque por trás das ações há intenções que não se conhece nem em extensão e nem em profundidade.

E o governo russo está provando tudo isso. O movimento da diplomacia internacional em monitorá-lo ao longo de décadas e, particularmente, depois da anexação da Crimeia, em 2014, e o seu apoio e reconhecimento de áreas separatistas na Ucrânia, no mesmo ano, mostrou-se insuficiente para conter quaisquer novas iniciativas ainda mais belicosas. A Ucrânia está sob ataque e ameaça russa nesse momento.  

Isso significa que prevenir ainda é o melhor remédio. Até mesmo, nas relações diplomáticas. Os limites e sanções precisam oferecer a segurança e a consistência exemplificativa, para dissuadir a continuidade dos atos ofensivos e delituosos que um dado país, ou conjunto de países, pretenda colocar em prática. Afinal de contas, a própria Segunda Guerra Mundial provou de todas as maneiras possíveis que a diplomacia dialógica não funciona diante de certas figuras dotadas de poder.

A aura de superioridade, de blindagem, de inacessibilidade que a investidura em cargos de governança e liderança de Estado constitui esbarra em um limite muito tênue entre a razão e a loucura. Quaisquer traços ou sinais de desequilíbrio psicoemocional podem tornar essa aura um instrumento terrível e devastador. Totalmente incontrolável, na medida em que o balizamento entre o certo e o errado, o humano e o desumano, o legítimo e o ilegítimo, o legal e o ilegal, desaparece como fumaça.

E, infelizmente, não é necessário chegar aos extremos para se perceber os caminhos que começam a ser transitados por essas pessoas. As linguagens verbais e não verbais são bastante elucidativas para desencadear um movimento mais atencioso, mais perspicaz a respeito. Pois, em algum momento, o ser humano é traído por sua própria identidade, sua própria essência, em algo muito mais significativo do que um simples ato falho.

Daí o risco imenso que se corre em “bater palma para maluco dançar”. Geralmente, quem age assim, não mede as consequências e, portanto, não sabe desatar os nós que elas podem resultar. A situação, então, sai fora de controle e começa a gerar uma retroalimentação de problemas, cada vez mais complexos e danosos. Como é o caso da guerra que estamos presenciando.

Ora, ainda que as análises diplomáticas se baseiem em um conjunto de fatos, de acontecimentos, de estratégias, de interesses, de perdas e de ganhos, não se pode desconsiderar o elemento surpresa que reside na consciência (ou inconsciência) daquele que detém o poder e pode alterar e interferir de maneira substancial e contundente nos resultados.

É preciso contar com a existência de uma certa perspectiva oculta que reside nesse outro. De modo que, no fundo, as perspectivas diplomáticas acabam se tornando um tipo de especulação, na qual o resultado pode surpreender a todos. Afinal, ninguém conhece plenamente a si mesmo, que dirá constituir certezas e convicções sobre qualquer outra pessoa!

Assim, não considero que o mundo foi pego de surpresa com essa guerra. Minha opinião é de que erraram na aposta, na insistência dialógica, na crença de um possível blefe. Ainda que estivessem certos, arriscar a vida de seres humanos dessa maneira é um preço muito alto. No entanto, eles erraram e um país inteiro está sob uma ameaça bélica, pautada na tirania de um outro país, cuja liderança acredita que não encontrará quaisquer resistências às suas investidas. Ele se habituou a não enxergar nas eventuais perdas e sanções, que possam ser impostas pela diplomacia internacional, nenhum obstáculo ao seu poder e aos seus objetivos.

O que explica a dificuldade de resolução quando a situação chega a esse ponto. Como bem escreveu José Saramago, em seu Ensaio sobre a Cegueira (1995), “[...]se antes de cada ato nosso, nos puséssemos a prever todas as consequências dele, a pensar nelas a sério, primeiro as imediatas, depois as prováveis, depois as possíveis, depois as imagináveis, não chegaríamos sequer a mover-nos de onde o primeiro pensamento nos tivesse feito parar”. Afinal, estaríamos guiados pela razão e não, lançados à imprevisibilidade através das paixões mundanas.

A ideia de “Justificar tragédias como vontade divina tira da gente e responsabilidade por nossas escolhas” (Umberto Eco). E governar, tanto quanto viver, é fazer escolhas. Sucesso ou fracasso. Construção ou destruição. Prosperidade ou penúria. Vida ou morte. Igualdade ou desigualdade. Progresso ou atraso. Enfim... A questão é que essa governança, também, existe a partir de escolhas. De modo que, no frigir dos ovos, somos todos responsáveis pelo o que acontece em tempos de guerra ou em tempos de paz.


Pretextos desbotados...


Pretextos desbotados...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Sabemos que uma guerra acontece no mundo. Que os estilhaços da discórdia e da turbulência internacional irão nos atingir, inevitavelmente. No entanto, não podemos permitir sermos absorvidos completamente por esse assunto, porque o Brasil é dado a se esconder debaixo de determinadas circunstâncias para urdir suas tramas sob medida e depois lançá-las com impacto, na primeira oportunidade, sobre a vida dos cidadãos.

Aliás, se não fosse a pandemia, o país estaria expressando suas tradições carnavalescas nos próximos quatro dias. Mas, em sinal de bom senso, de prudência, de responsabilidade, os apaixonados pela folia de Momo foram convencidos a conter a alegria e a descontração. E diante da melancolia que se estabeleceu, puderam até se recordar dos tempos em que a quarta-feira de cinzas se transformava na quarta-feira das revelações bombásticas da política nacional.

Pois é, pretextos sempre foram usados para ofuscar a atenção dos cidadãos e pegá-los de surpresa, no contrapé das situações. A guerra e o carnaval são apenas exemplos, dentre tantos outros já utilizados. A questão é que eles não alteram em si o curso dos fatos. Aquilo que acontece na calada da noite nos corredores palacianos, nas conversas cifradas, nos conchavos ao pé do ouvido, nas decisões assinadas intempestivamente, nas manobras das alianças políticas, esse é o ponto. Aquilo que só se fica sabendo depois, quando o resultado desastroso retumba sobre o país como um todo.

É preciso entender que a guerra do mundo não é, portanto, maior que a nossa própria guerra cotidiana. Quando se estabelece essa perspectiva de amplificação do destaque e da importância, nos veículos de informação e comunicação, sobre os conflitos internacionais, é como se retrocedêssemos à nossa desimportância colonial. Sim, nos tempos coloniais, quem era o Brasil na fila do pão? Quem importava, quem tinha destaque, quem era notícia, eram as Metrópoles.

E o fato de ser assim, não era porque aqui não existiam problemas ou acontecimentos relevantes. Era, simplesmente, pelo fato de sermos colônia, ou seja, um território ocupado e administrado por uma Metrópole Europeia, no caso Portugal, entre os séculos XVI e XIX, com vistas ao enriquecimento e empoderamento metropolitano. Não tínhamos vez, nem voz, nem identidade, nem nada. Éramos a expressão plena do que se determinava como colônia de exploração.  

Então, quando nos colocamos, em pleno século XXI, na condição de não priorizar, de não visibilizar adequadamente aquilo que urge no Brasil contemporâneo, não só expomos nossos ranços coloniais, como abrimos precedentes para as correntes de desserviço, de dilapidação e de deterioração do país, as quais estão vorazes e inquietas por isso. O silêncio que se estabelece nesse tipo de movimento, ainda que momentâneo, é profundamente danoso e perigoso.

Porque, enquanto os olhos estão voltados para outras direções e sentidos, a atenção deixa a desejar aqui dentro, baixando-se por completo a guarda. Assim, a vulnerabilidade se instala e o imponderável na forma de más intenções, muito bem arquitetadas, pode se instalar e agir. Afinal, a capacidade de reação nunca é instantânea. Sempre leva um tempo para entender o que está acontecendo, para processar os fatos e dar uma resposta à altura.

Aliás, dentro desse cenário, ontem, eu me deparei com a notícia de que a Secretaria de Cultura, do Governo Federal, “começou a lançar uma série de produtos alusivos ao bicentenário da independência do Brasil” 1. Não haveria problema, não fosse o fato desse material estar sendo produzido com o propósito de recontar a história, segundo os interesses do atual governo.

Trata-se de um instrumento que pretende construir uma narrativa própria e tendenciosa sobre a história, o qual não tende a ter nenhum compromisso com a historicidade e a identidade nacional. Sairemos da história para uma ficção que pode contemplar ou excluir personagens e fatos, sem a menor cerimônia. Sem contar, eventuais acréscimos relacionados a modos, comportamentos e costumes de caráter conservador, que a atual gestão tenta reintroduzir de qualquer maneira.

E isso é só um exemplo, de tantas outras coisas que permanecem acontecendo bem debaixo do nosso nariz, apesar de quaisquer pretextos que se use para desviar o foco a respeito. Garimpos Ilegais. Contaminação por mercúrio e agrotóxicos. Desmatamentos. A lentidão nos desdobramentos da CPI da COVID-19, inclusive em relação aos gastos públicos com drogas sem eficácia. A paralisia da economia nacional. O desemprego, a miséria e a vulnerabilização social. Os eventos extremos do clima. Os prejuízos e retrocessos no desenvolvimento educacional brasileiro. As violências e discriminações. ...

Já dizia o poeta e filósofo italiano, Giacomo Leopardi, que “Do hábito da resignação nasce sempre a falta de interesse, a negligência, a indolência, a inatividade e quase a imobilidade”. Vamos e convenhamos que a resignação do brasileiro, seu eterno conformismo consolidado pela trivialização e normalização da vida e dos problemas, também, se faz oportunista pelos pretextos das circunstâncias.

Mas, o que adianta? Esconder-se sob pretextos não faz o mundo parar de girar. O Brasil parar de girar. De modo que as urgências estão aí, clamando atenção, clamando solução, clamando... Então, antes que você seja surpreendentemente absorvido por elas, se posicione a respeito.  

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2022

Só faltou combinar com os russos!


Só faltou combinar com os russos!

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Muita gente por aí cheia de certeza, de convicção, sobre os rumos de 2022. Só faltou combinar com os russos! E dessa vez não é só mera expressão, os garotos valentões de Moscou decidiram fazer guerra e demonstrar força para o mundo. A partir daí tudo pode acontecer e o imprevisível se agigantar de uma maneira ainda mais avassaladora.

Afinal, conflitos como dessa magnitude, que estão se desenhando no horizonte, não tem prazo de duração. Podem se arrastar dias, meses, e até anos, dado o potencial de seus desdobramentos em se retroalimentarem. Não é uma guerra de nervos. É uma guerra com todos os componentes teóricos e práticos que o mundo contemporâneo dispõe.

Acontece que, por experiências pregressas, o mundo já sabe que o ponto de deflagração extrapola eventuais fronteiras estabelecidas. Direta ou indiretamente as ondas de propagação dos eventos alcançam o planeta como um todo e desestabilizam os arranjos preestabelecidos, criando novas perspectivas conjunturais.

A grande questão é que tais conjunturas terão que se acomodar sobre terrenos já minados por problemas novos e antigos, desafios que ainda não foram efetivamente debelados ou, pelo menos, mitigados, como é o caso da própria pandemia. Não dá para lidar com as situações de maneira individualizada, compartimentalizada, uma de cada vez. Não, é tudo junto e misturado.

E uma guerra, nessas alturas do campeonato, não poderia ser pior. Ora, nem chegamos ainda ao ponto de nos colocarmos no contexto de uma Pós-Pandemia, por exemplo. A instabilidade é total diante da possibilidade de novas variantes, de novos picos de contaminação e letalidade, de novo recrudescimento de medidas preventivas, enfim...

De modo que, as relações socioeconômicas encontram-se em um movimento de desaceleração bastante cautelosa. O que significa que o mundo não está em um momento de franca realização e prosperidade; muito pelo contrário. E em meio a todos os efeitos da pandemia, nesses quase três anos, cidades em diferentes pontos do planeta foram arrasadas, devastadas pelos efeitos dos eventos extremos do clima.

Portanto, já temos uma legião de pessoas doentes, de desempregados, de miseráveis, de desalentados, de refugiados, ... que não só tende a ganhar maiores proporções a partir da guerra; bem como, acirrar as tensões ideológicas que orbitam o universo dessas situações. Motivadas pelos discursos e narrativas dos grupos político-partidários extremistas, que tentam se reafirmar no mundo contemporâneo, elas criariam uma guerra dentro da guerra, exacerbando as diversas manifestações da violência.

Afinal, em tempos de guerra tudo se transforma em pretexto. Racismo. Misoginia. Sexismo. Homofobia. Intolerância religiosa. Aporofobia. De modo que recai sobre determinados indivíduos, especialmente as minorias sociais, a responsabilidade dos infortúnios, dos problemas, das dificuldades, dos insucessos. Como se as conjunturas se abstivessem da análise processual dos acontecimentos para simplesmente estabelecer a necessidade de culpar alguém, tomando por base apenas recortes desconexos e desalinhavados, sequencialmente, da realidade.  

Não percebem que esse movimento agrava, ainda mais, a paralisia imposta pela guerra. Quando a vida passa a ser atravessada pelos conflitos dessa grandeza, o improdutivo se estabelece e a morte ganha destaque pelas violências. Entretanto, a morte anda em círculos. Ela é a representação máxima da desordem, do retrocesso, da involução, no que diz respeito à potencialidade que é intrínseca ao ser humano e ao planeta. A morte nega o que somos, o que podemos. Não é à toa que guerras não fazem vitoriosos; pois, todos perdem.  

Olhando para os recentes acontecimentos, então, começo a entender que, de fato, a raça humana não aprendeu nada com a Segunda Guerra Mundial, haja vista a Guerra Fria. Ela só foi uma guerra de caráter ideológico, porque o mundo havia sido arrasado, empobrecido, destruído pelos horrores deflagrados entre 1939 e 1945. No entanto, ela prova que o mundo não se consternou, não se indignou, não se redimiu frente ao disparate da loucura em nome do poder.

A Guerra Fria permaneceu fomentando os mesmos equívocos, os mesmos delírios, as mesmas insanidades. Todos tinham medo das ogivas nucleares norte-americanas e soviéticas, porque o mundo estava na mira deles e na expectativa de quem poderia, de repente, acioná-los, mediante a fúria intransigente dos seus interesses geopolíticos. Algo que, no fundo, não distava em nada daquilo que levou a Segunda Guerra a ser o que foi.

E o fato de ela ter se exaurido em 1989, não significou necessariamente a extinção da ideologia de profunda rivalidade entre norte-americanos e russos. Foi só o peso das conjunturas de uma guerra incapaz de se arrastar por um tempo maior que a sua capacidade natural permitiria. Portanto, a chama da sua essência nunca se apagou e a prova se mostra, agora, em pleno século XXI, com a investida dos Russos sobre as antigas repúblicas que compunham o grande bloco da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), nos áureos tempos da Guerra Fria.

No entanto, vale ressaltar que a nostalgia dos russos é inútil. Por mais que seu ideário permaneça ativo, ele não é capaz de segurar os arroubos e avanços do tempo. O mundo mudou e, por consequência, os protagonistas globais, os interesses geopolíticos, o modo de guerrear e disputar espaços. As potências não são mais medidas pelo tamanho de seus territórios. Hoje, elas querem mostrar quem são, a força de suas identidades no campo das inovações científico-tecnológicas, o seu poder de persuasão e influência nos comportamentos e consumos da sociedade.   

Simplesmente, porque é aí que está a chave da prosperidade e da hegemonia. Guerras convencionais custam caro, muito caro, e não geram o retorno econômico esperado, na medida em que elas demandam tempo de reconstrução e de reorganização das áreas destruídas. Já as guerras contemporâneas, são atemporais, fluidas. É um processo de desconstrução e ressignificação contínuo e de alta velocidade. Porque elas buscam novidades que promovam modismos e remodelem os interesses sociais, gerando lucros extraordinários.

Como escreveu Eduardo Galeano, “A história é um profeta com o olhar voltado para trás: pelo que foi, e contra o que foi, anuncia o que será”. Assim, o conflito atual nos permite pensar, nos permite entender e olhar com mais discernimento e isenção das paixões. O mundo repete velhos erros por conta de uma resistência estúpida e arraigada do ser humano, porque se o bom senso e a objetividade prevalecessem, a obviedade de que o mundo gira e se transforma não permitiria esse erro crasso. Não permitia morticínios gratuitos.  Não permitiria tanto dinheiro jogado fora. Não permitiria tanta inutilidade raivosa.

No fim das contas, o cenário que se tem, agora, só faz ensinar que “A chuva que irriga os centros do poder imperialista afoga os vastos subúrbios do sistema. Do mesmo modo, e simetricamente, o bem-estar de nossas classes dominantes – dominantes para dentro, dominadas para fora – é a maldição de nossas multidões, condenadas a uma vida de bestas de carga” (Eduardo Galeano – As veias abertas da América Latina). O que em linhas gerais significa que “Na luta do bem contra o mal, é sempre o povo que morre”, porque “Nossa derrota esteve sempre implícita na vitória dos outros. Nossa riqueza sempre gerou nossa pobreza por nutrir a prosperidade alheia: os impérios e seus beleguins nativos” (Eduardo Galeano).


quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

Entre a criatura e o criador, de que lado você está?


Entre a criatura e o criador, de que lado você está?

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Por mais que as pessoas resistam em admitir os movimentos de tensão e desestabilização democrática, eles estão aí. E no seu arrasto, os direitos humanos fundamentais estão se deteriorando a olhos vistos, a partir de rupturas e reorganizações nas políticas públicas e legislações. De modo que a sobrevivência encontra, cada dia mais, desafios e obstáculos para se manter.

Demorou; mas, chegou, o momento em que as Revoluções Industriais começariam a fazer valer o contrato tácito que elas firmaram com a humanidade. De certa forma, em bem menos tempo do que se poderia imaginar para um processo tão complexo.

Mas, ele chegou para nos lembrar de que foi a partir dessas revoluções sociais que a vida humana foi lançada a um nível de desimportância inimaginável. Os indivíduos tornaram-se, nada mais nada menos, do que peças de reposição das engrenagens produtivas e de consumo. Afinal, o TER suplantou o SER.

E nesse movimento contínuo, orquestrado pela célere dinâmica da Ciência e da Tecnologia, a vida humana foi perdendo seu espaço de destaque e de prioridade, em razão de uma produção que deveria ser maior por um custo menor. Seres humanos custam caro. Custam salários, benefícios, férias, e nem sempre retornam tais investimentos por meio da capacidade de trabalho e de consumo.

Motivo pelo qual estão sendo substituídos por um intenso projeto de mecanização e robotização, que abre espaço para o surgimento de uma legião de desempregados e de uma condição de precarização do trabalho mais e mais acirrada.

Afinal, a recolocação no mercado de trabalho, nos moldes formais que se conhece, encontra-se em franco processo de extinção; pois, a demanda de mão de obra humana é cada vez menor. Isso significa que, por tabela, os outros direitos fundamentais – educação, saúde, previdência social, lazer, segurança, proteção à maternidade e a infância e assistência aos desamparados – vêm sendo, também, severamente impactados.

A ideia de construir um caminho de equidade e de igualdade social, de repente, parece ter perdido o sentido, tendo em vista a pouca relevância que os indivíduos passaram a desfrutar em um mundo de plena expansão tecnológica.

Sendo assim, não é de se espantar que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) volte “a julgar extensão de cobertura de tratamentos por planos de saúde”. Isso significa determinar “se as operadoras de planos de saúde podem ser obrigadas a cobrir procedimentos que não estejam elencados na lista – ou seja, se o rol da Agência Nacional de Saúde (ANS) é exemplificativo (e portanto pode ser extrapolado), ou taxativo (e deve ser seguido à risca, sem obrigação de cobrir mais nada)” 1.

Bem, considerando que a contemporaneidade tem exposto a vida humana a uma infinidade cada vez maior de doenças, síndromes e transtornos, tem havido um processo de adoecimento populacional bastante significativo e que se agrava diante das conjunturas das desigualdades sociais.

Assim, o adoecimento e a vulnerabilização social tornaram-se diretamente proporcionais, mostrando claramente como a deterioração dos mesmos fomenta o aparecimento do morticínio social.  Sim, porque não apenas pelas perdas humanas que se dá o massacre; mas, pela construção de obstáculos intransponíveis de acessibilidade aos atendimentos médico-hospitalares demandados dentro da realidade atual.

A generalização superficializada desse processo de adoecimento social desfigura o que de fato está acontecendo, estabelecendo um rol de doenças tratáveis enquanto permite que outras sequer sejam questionadas e/ou investigadas. Daí a cronificação das carências dos serviços de saúde, que passam não só a não contar com profissionais, infraestrutura e insumos suficientes para atender os pacientes, como, também, a não dispor de tratamentos de alta complexidade e vanguarda.

Ora, é justamente isso que tem produzido o fenômeno da judicialização da saúde, no Brasil. Afinal de contas, diz a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 196, que “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantindo mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.

De modo que fica bastante evidenciado o enviesamento interpretativo dos entes públicos em relação ao que expressa muito claramente a lei maior do país. O que significa uma constante arbitragem, por parte do Judiciário, para o cumprimento desse direito “universal e igualitário”, ou seja, um direito no qual não cabe quaisquer menções de discriminação social ou de demanda de serviço médico-hospitalar.

A lei não faz ressalvas, não estabelece exceções, porque a saúde humana é um todo indivisível e ninguém escolhe deliberadamente se vai ficar doente, que doença vai ter, que tratamentos precisa realizar, que remédios irá tomar, simplesmente adoece.

E há uma questão, ainda mais, crucial nessa discussão. A de que o adoecimento populacional tem tido cada vez mais o componente das desigualdades sociais, decorrentes da insuficiência, da ineficiência, do descaso e da irresponsabilidade do poder público. Sobretudo, em relação aos segmentos mais vulneráveis da população.

Portanto, a judicialização tornou-se um modus operandi do Estado para ganhar tempo em não fazer, em não cumprir as leis, não se importando, em absoluto, com a vida de quem aguarda por uma decisão.

Esse mecanismo que vem se institucionalizando está, na verdade, estreitando os limites entre a vida e a morte a algo insustentável. Tudo porque o ser humano não é mais importante, mais fundamental, para o sistema. Ele é, agora, visto e entendido como um ônus desnecessário e passível de substituição pelas novas tecnologias. A criatura está destruindo o criador.

Como escreveu Mary Shelley, “Mente calma, a salvo de paixões perturbadoras, é a condição do ser humano em seu estado normal. Não pode a busca do saber ser elevada à conta de exceção a essa regra. Se o estudo, por qualquer forma, tende a debilitar nossas afeições, nosso gosto pelos prazeres simples, trata-se então de uma atividade ilícita, que não se ajusta ao espírito humano. Se essa norma fosse sempre observada, se todo homem estabelecesse um limite entre seus misteres e sua vida afetiva, a Grécia não teria sido escravizada, César teria poupado a sua pátria, a América teria sido colonizada sem maiores conflitos, e os impérios dos astecas e dos incas não teriam sido aniquilados” (Frankenstein ou o Prometeu Moderno) 2. Portanto, essa é a grande reflexão que nos cabe diante das conjunturas.



2 SHELLEY, M. Frankenstein ou o Prometeu Moderno. Traduzido por Adriana Lisboa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011. 244p. 

terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

O alto custo da alienação


O alto custo da alienação

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Cada dia mais me convenço de que a contemporaneidade nos tirou a capacidade de olhar além do visível, de ler as entrelinhas, de lidar com a realidade de maneira mais franca e objetivamente. E isso em todos os planos, de todas as formas. Como se tivéssemos sido enovelados por uma trama de alienações. Algo que não só é danoso; mas, extremamente, perigoso.  Aliás, um dos exemplos clássicos desse fenômeno diz respeito à nossa própria saúde.

Entre tantas discussões sobre agrotóxicos 1 e contaminações por garimpos 2 a estampar as manchetes dos veículos de informação e comunicação, nacionais e estrangeiros, o fato que chama atenção permanece ainda pouco visibilizado. Discute-se os riscos desses produtos químicos em franca utilização. Discute-se os prejuízos ambientais por eles desencadeados. Discute-se o adoecimento de diversas populações.

No entanto, ninguém puxou o fio da história, apesar dessas considerações, para dizer que temos enviesado o olhar diante da saúde pública. Ora, pessoas adoecem. Isso é parte integrante e integrada da condição biológica. Portanto, independentemente da idade, gênero, status social, religião, escolaridade, enfim. E as causas são as mais diversas. Genéticas. Fisiológicas. Anatômicas. Por agentes infectocontagiosos. Por excesso ou intolerância a alimentos e fármacos. Por plantas ou animais. ...

Mas, de repente, apesar de todos os avanços nas Ciências Médicas e nas Biotecnologias, um olhar raso e, até certo ponto, negligente, não tem permitido que os diagnósticos alcancem as raízes do problema. Como se uma chave de identificação não fosse levada a termo, da maneira que seria o ideal ou o esperado. Paramos em certo ponto da investigação, dando como suficiente, quando na verdade não é.

De modo que, se por um instante começássemos a pensar sobre a quantidade de doenças raras, de alergias, de intolerâncias, de distúrbios, que vêm emergindo nas populações sem maiores explicações e precisão diagnóstica e de tratamento, milhares de pulgas se alojariam nas nossas orelhas. Afinal, temos estado cada vez mais expostos não apenas aos agentes contaminantes e poluidores convencionais; mas, a uma infinidade de outras novas substâncias.

Acontece que o corpo humano foi criado para realizar a degradação e metabolização de um conjunto de substâncias que ele reconhece imediatamente ao entrar em contato. Quando surgem novidades no radar, ele passa a desdobrar um esforço fisiológico e bioquímico descomunal, o qual não vai resultar em sucesso.

Portanto, essas moléculas desconhecidas ficam circulando pelo organismo, se agregando por efeito cumulativo em diferentes órgãos e tecidos – quando da intensidade e da periodicidade da exposição a elas –, até que comecem a produzir efeitos patológicos importantes e, muitas vezes, irreversíveis e letais.

Então, uma vez ciente desse processo, o ser humano precisa ficar atento ao seu cotidiano. Infelizmente, a água, o ar, o solo e os alimentos que são produzidos, natural e artificialmente, estão sob ataque direto de agentes químicos importantes, os quais estão por aí, graças aos interesses político-econômicos que vigoram no Brasil e no mundo.

Divulgado com frequência pelos veículos de informação e comunicação, há lobbies em todos os setores da política, defendendo ideias e produtos que vão exatamente na contramão dos interesses da população, inclusive, no campo da saúde. Há lobby do agronegócio, da indústria de armas, dos planos de saúde, e por aí vai.

Todos querendo exercer influência e participação no processo legislativo, a fim de interferir diretamente na elaboração de políticas públicas que afetam toda a população. A questão é que não se sabe exatamente a extensão do trabalho lobista.

Desse modo, o que se tem como ponto de partida para analisar, subtraindo-se qualquer acaso ou coincidência, é o fato de que as doenças têm sido colocadas, na maioria das vezes, no campo de sintomas genéricos e passíveis de serem encontrados em diversas delas.

A verdade é que não se vê ninguém estabelecendo uma conexão com situações de risco ambiental, tais como agrotóxicos e contaminações por garimpos. É como se no ato da anamnese, por exemplo, que é a construção do histórico clínico do paciente pelo profissional de saúde, esse tipo de questionamento fosse, de algum modo, desconsiderado.

Aliás, foi o que se tentou fazer no Japão, no caso de Minamata. Durante décadas, uma importante corporação química despejou centenas de toneladas de metilmercúrio, na baía de Minamata, afetando a população local que consumia peixes e moluscos provenientes dali. Tendo em vista que os sintomas inicialmente eram sutis – dor de cabeça, irritabilidade, fadiga, falta de sensibilidade nos braços e pernas, e dificuldade de deglutição – e poderiam ser ligados a diversas doenças, demorou-se mais de uma década para que se compreendesse o que realmente acontecia.  

Mas, através do efeito cumulativo do metilmercúrio, ao longo de uma década, quando os sintomas evoluíram para distúrbios sensoriais, danos à visão e audição, paralisia e morte, é que os médicos conseguiram estabelecer a relação entre a contaminação e o adoecimento daquelas pessoas e elas puderam reivindicar, por via judicial, os seus direitos. Trata-se de um caso tão emblemático que, em agosto de 2017, entrou em vigor a Convenção de Minamata, pela Organização das Nações Unidas (ONU).   

Ela visa proteger a saúde humana e o meio ambiente dos efeitos adversos do mercúrio, provocados pelas “liberações antropogênicas em todo o seu ciclo de vida: mineração, importação e exportação, produtos e processos, emissões para a atmosfera, liberações para o solo e a água, locais contaminados, gerenciamento de resíduos e muitos outros. [...]Desde então, 132 partes de todo o mundo têm trabalhado em conjunto para interromper o comércio, aumentar a sensibilização pública, desenvolver capacidades institucionais e criar e produtos sem mercúrio” 3.

Isso significa que a humanidade já dispõe de fato concreto, para expandir seu olhar e lançar seus esforços para combater tais absurdos. Além de Minamata, outros episódios já levaram os culpados aos tribunais e indenizações vultosas foram pagas as vítimas ou seus descendentes.

Porque não é só o mercúrio, ou o cádmio, ou o chumbo, ou o amianto, ou os diversos elementos radioativos, ... há milhares de agrotóxicos, de poluentes industriais, de resíduos de hidrocarboneto, sendo utilizados e lançados inadvertidamente, adoecendo e matando milhares de pessoas, sem que elas saibam as verdadeiras razões que levaram a esse processo.

Assim, além de subestimadas, as estatísticas de óbito divulgadas podem estar impregnadas por equívocos, ou vieses, em razão do desconhecimento quanto à verdadeira causa mortis.    

É preciso entender, de uma vez por todas, que o silêncio proposital em torno da verdade é letal. Na medida em que ele não permite a interrupção da exposição a esses contaminantes pela população e uma condução apropriada em relação ao tratamento das doenças por eles desencadeadas.

Isso significa que, no caso brasileiro, estamos diante de um flagrante atentado à nossa legislação no que tange ao artigo 196 4, da Constituição Federal de 1988, e ao artigo 132 5, do Código Penal; bem como, aos tratados e acordos internacionais que o país é signatário, inclusive a Convenção de Minamata.  

Abraham Lincoln já dizia que “Pecar pelo silêncio, quando se deveria protestar, transforma homens em covardes”.  Parece que urge, então, um posicionamento humanitário em relação a esse morticínio, o qual vem passando despercebido com a ajuda consciente (e inconsciente) de uma expressiva parcela da população; sobretudo, aqueles que têm o poder de influenciar, de decidir, de agir.

Porque o que está em jogo, não são apenas as perdas humanas; mas, todo um lastro de sofrimento, de dor, de incompreensão, de desestruturação social e de outros problemas, que esse silêncio covarde ajuda a consolidar. Talvez, por isso, Maomé tenha deixado a seguinte e oportuna reflexão, “A pior forma de covardia é testar o poder na fraqueza do outro”. Sendo assim...



4 Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. (CF, 1988).

5 Art. 132. Expor a vida ou a saúde de outrem a perigo direto e iminente. (Código Penal – Decreto-lei 2848/40) 

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022

Nós e nossos ... muros, cercas, bolhas, guetos


Nós e nossos ... muros, cercas, bolhas, guetos

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Não é de hoje que a humanidade recorre a soluções placebo para lhe dar com os maiores desafios da sua existência, convivência e coexistência. Uma delas consiste, justamente, em encapsular os problemas, talvez, pensando e acreditando que dessa forma estariam reduzindo as suas dimensões e possibilitando uma ação mais certeira. Bem, o exemplo mais recente diz respeito ao fato de que a “República Dominicana começa a construir um muro na fronteira com o Haiti, um projeto que busca coibir a imigração ilegal e o contrabando e o tráfico de drogas e armas”1.  

Mais um muro. Mais uma cerca. Mais uma bolha. Mais um gueto. A história está repleta desse tipo de instrumento de segregação e apartação social. Toda vez que a sociedade não sabe resolver ou não quer resolver um problema é assim, que ela toma uma atitude. Algo que é bem diferente de agir com consciência, com responsabilidade, com compromisso, com planejamento, com a verdadeira intenção de solucionar. E esse movimento não altera o curso da história, da dinâmica dos desafios sociais.

Já é notório que a dialogia vem perdendo seu espaço e importância há muito tempo. Mas, nesse caso, não é só isso o que está em xeque. Na verdade, o encapsulamento social tornou-se um dos mais expressivos fracassos da governança. Considerando que muitos governos têm se permitido guiar pela omissão, pela negligência, pela irresponsabilidade, pela corrupção, pelo peculato, pela concussão, pela prevaricação, sustentados ou não pelo apoio de redes do crime organizado, eles acabam por institucionalizar um processo de deslocamento social da sua população para outros lugares, em nome da sobrevivência.

Sob o peso das violências e das desigualdades, que se mantêm intensas e cronificadas nos seus países de origem, as pessoas se veem obrigadas a partir, constituindo dois grupos de deslocamento territorial distintos, os refugiados e os migrantes. Ocorre que o volume desses deslocamentos é inversamente proporcional a capacidade de absorção desses contingentes por outros países. De modo que a dignidade dessas pessoas, independentemente do grupo ao qual pertençam, refugiados ou migrantes, corre risco.

Sem contar, que em muitas das rotas de fuga utilizadas, essas pessoas acabam chegando a locais onde a xenofobia, que é o sentimento de desconfiança, temor ou antipatia por pessoas estrangeiras, tem sido cada vez mais exacerbado pelas correntes ideológicas da direita e suas ramificações extremistas. Portanto, elas são consideradas uma ameaça ao equilíbrio e aos interesses socioeconômicos daquele determinado país, fato que leva ao tal mecanismo de encapsulamento, ou seja, os muros, as cercas, as bolhas, os guetos. A manifestação de uma anticidadania pelos próprios países de origem dessas pessoas, então, fomenta essa construção conjuntural xenofóbica.

De modo que em nenhum ponto dessa estrada há uma proposição resolutiva para o cerne desse problema que é, justamente, a garantia de uma vida digna para todo e qualquer ser humano, ou seja, “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos, dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade” (art. 1º - Declaração Universal dos Direitos Humanos/DUDH). Nesse sentido, “Todo indivíduo tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal” (art. 3º - DUDH).

Portanto, toda essa questão perpassa pelo modo como a sociedade, no conjunto da sua coletividade, entende e se comporta em relação à governança. A naturalização, a trivialização, a banalização ou a institucionalização da omissão, da negligência, da irresponsabilidade, da corrupção, do peculato, da concussão, da prevaricação é que fazem com que muitas pessoas tenham a sua cidadania, a sua identidade nacional, comprometidas e ameaçadas a tal ponto, que elas sejam obrigadas a abrir mão das suas raízes, expondo-se a uma série de outros infortúnios e dissabores sociais. O recente caso do assassinato de Moïse Kabagambe, um congolês, de 24 anos, no Rio de Janeiro, exemplifica bem como é desafiador, e pode ser letal, esse deslocamento.  

É preciso entender que, ressalvada uma minoria que não alcança nem 10% da população, o restante vive e convive sob os efeitos da governança. De modo que a qualquer tempo, em qualquer lugar, por razões socioeconômicas diversas, eles podem ser compelidos a abandonar o país. A se lançarem, muitas vezes, sem quaisquer redes de apoio ou proteção, à condição de “forasteiros” (outsiders), que é um estereótipo presente nos sistemas sociais vigentes para auxiliar no mecanismo de ordem e controle social.

Mesmo quando conseguem a formalização da sua entrada em um país estrangeiro, seja por visto de refugiado, de migrante ou de permanência, como é o caso do Green Card, nos EUA, essas pessoas jamais serão vistas e aceitas como “locais” (insiders). Simplesmente, porque a diferença é marcada em relação à identidade, através de sistemas classificatórios que fabricam sistemas simbólicos por meio de exclusão. Os “forasteiros” (outsiders) têm outras bases socioculturais, outros valores, outros princípios, que moldam a suas identidades nacionais, as quais são impossíveis de caber e se ajustar plenamente aquele novo lugar.

Portanto, os deslocamentos forçados, como se têm visto amiúde na contemporaneidade, são feridas sociais que não cicatrizam. Todos os dias elas encontram razões para abrir, para sangrar, para doer um pouquinho, para não deixar essas pessoas se esquecerem dos motivos que as fizeram atravessar as fronteiras. Lançá-los, simplesmente, a uma vida entre os muros, as cercas, as bolhas, os guetos, é de uma brutalidade, uma perversidade incompreensível. Nenhum cidadão deveria ser privado de viver na sua terra natal, à sombra da árvore da sua identidade.

Entendo que essa é uma discussão áspera, difícil e complexa. Primeiro, porque o país que não se preocupa com seus próprios cidadãos, não está nem aí com o destino deles. Não se comove. Não se sensibiliza. Não se condói. Portanto, não tem disposição ou interesse dialógico para caminhar rumo a quaisquer transformações na sua governança.

Segundo, porque a irresponsabilidade de uns não pode, simplesmente, resultar em ônus e problemas diversos para os outros. Eles não podem arcar sozinhos com esse desafio gigante; mas, por senso humanitário, também, não podem virar as costas para milhares de desalentados. Então, é preciso equacionar esse impasse, valendo-se de medidas diplomáticas mais firmes, com sanções econômicas mais severas aos países causadores dos deslocamentos. Afinal, eles fazem o que fazem desperdiçando recursos públicos. Se medidas para “a fonte secar” forem tomadas, inclusive com assinatura de termos de ajustamento de condutas, eles terão que repensar suas gestões.

Isaac Newton já dizia, “Construímos muros demais e pontes de menos”. E isso só me faz crer o quanto a humanidade padece de um medo, o qual ela nem consegue definir exatamente qual é.  Às vezes, penso que seja em perder regalias e privilégios. Outras, que seja perder os espaços, os territórios, os poderes. Algumas, que seja pela consciência da sua insignificância existencial. Ou para simplesmente não perturbar a visão com aquilo que a desconforta. Bem, não importa o motivo. O que importa é que nada disso faz sentido.

Não é à toa que o poeta norte-americano, Robert Lee Frost, escreveu, “Antes de construir um muro pergunto sempre quem estou murando e quem estou deixando de fora”. Porque quando se constroem muros, cercas, bolhas ou guetos, se está isolando do outro; mas, principalmente de si mesmo, posto que a vida acontece na vastidão da pluralidade. No entanto, nada disso nos impede de carregarmos as subjetividades da existência humana, os nossos problemas, as nossas angústias, as nossas fraquezas, as nossas vulnerabilidades, as memórias, as lembranças, ... o fato de encapsular, de limitar, de guardar, não é capaz de apagar a vida como ela é. Assim, pensemos com mais objetividade a respeito.