quinta-feira, 8 de fevereiro de 2024

Democracia fraturada


Democracia fraturada

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Alguns podem até dizer que o Brasil não é para amadores. Mas, o contexto desse dia, desse 8 de fevereiro de 2024 1, reflete algo bem mais subjetivo e profundo, um pouco distante de uma particularidade, ou especificidade, nacional.

Queiram ou não admitir, o mundo está em franca transformação. Sob diferentes formas e conteúdos. A humanidade nunca esteve tão dissociada das certezas.

De repente, o acúmulo de postergações, de sujeiras lançadas sob os tapetes da história, de jeitinhos daqui e dali, começam a cobrar a conta, a exigir que a história seja revisitada a fim de passar certos pontos a limpo.

E hoje foi um desses momentos importantes. Se ele não diz tudo, diz muito mais do que seria possível pensar. Se ele não é a solução plena, é o primeiro degrau para se alcançá-la.

O que não dá é para desqualificá-lo, fazer pouco de tudo aquilo que foi trazido à tona, a partir de processo investigatório devidamente autorizado pela Justiça.

No entanto, não posso deixar de lamentar que os olhos tomados pela perplexidade do agora, tenham estado cegos ao ponto de permitir que as tramas da história nacional chegassem ao ponto que chegaram.

Dizem as Sagradas Escrituras que o ser humano não peca só por palavras e atos; mas, também, por omissões. A gravidade das notícias não se resume a si mesma.

Na verdade, elas pontam para a inquestionável convicção de que vieram sendo urdidas há bem mais tempo do que se imagina, dada a sua rede de conexões explícitas e/ou implícitas com o mundo da ultradireita em franca expansão global.

Por trás de cada gesto, de cada discurso, de cada estratégia, de cada traço de beligerância, já estava consolidada uma rede de fundamentação ideológica com base em teorias conspiratórias, em grupos organizados internacionalmente.

Bastou unir essas pessoas aos grupos de ultradireita interessados em ascender ao poder, no Brasil. Aliás, é bom que se reflita sobre os interesses da ultradireita nacional, traçando uma cuidadosa linha histórica do tempo.

Diferente de outros países, por aqui, o seu objetivo não era meramente uma transformação de poder. Embora não menos importante, talvez, em um primeiro momento, isso precisasse ser deixado em segundo plano.

Afinal, a necessidade que parecia imperar diante desse propósito estava associada a um conjunto de arestas mal aparadas ao longo do passado. Questões que ainda causavam desconforto, preocupação, porque não se havia esgotado todas as tratativas a respeito.

No entanto, na ânsia de afugentar esses fantasmas pretéritos, acabaram metendo os pés pelas mãos. Por mais expertise que o Brasil pareça ter em ações golpistas, o assunto jamais poderia ser tratado como receita de bolo.

Cada caso é um caso. O Brasil de ontem, não é o Brasil de agora. Não só pela explosão demográfica visível; mas, sobretudo, pelo cenário tecnológico das informações e das comunicações.

Queimas de arquivo, no atual contexto da contemporaneidade, por exemplo, são praticamente impensáveis. Sobre a realidade do globo terrestre pairam nuvens de informações, criadas por sistemas de tecnologia avançados, que impõe uma série de obstáculos de acesso e de impossibilidade de destruição. 

De modo que áudios, vídeos, documentos, tudo dispõe de uma nova dinâmica social. Sem contar que, como já manifestei muitas vezes, o país carece de letramento digital para, de fato, sobreviver no contexto dessa nova realidade.

Inclusive, no sentido de saber manejar as ferramentas tecnológicas, das mais simples às mais complexas, extraindo delas o seu pleno potencial, segundo interesses expressos em cada situação.

O que significa que ainda são poucos os nativos digitais, que transitam com total desenvoltura por esse universo. A grande maioria tateia no escuro e peca pela falta de conhecimento, habilidade e competência.

Mas, não podemos negar que, apesar dos pesares, estivemos a um triz de mais um golpe de Estado. Mais um arroubo de vaidade da Direita e seus matizes. Sim, porque essa paleta político-partidária se homogeneizou pela necessidade de arregimentação de apoiadores e simpatizantes, em um amálgama único.

Mais um ato irresponsável em desfavor do país. Mais um traço da herança histórica nefasta nacional. Portanto, esse é só um, de muitos dias que se seguirão no curso desse processo de apurações e de responsabilizações.

O que, na verdade, permanece não sendo o suficiente para arrefecer de vez o ímpeto da ultradireita. Temos que admitir, olhando fixamente para a contemporaneidade, que a deterioração intelectual e moral, na raça humana, é fato concreto, abrindo espaços para manifestações, cada vez mais recorrentes, do arraigamento ideológico-comportamental e da alienação social.

Daí a necessidade de reflexão. Porque milhares de simpatizantes não estão no rol desse ato da Justiça, embora, sua existência não seja desconsiderada. São essas pessoas o que se pode chamar de brasas encobertas por cinza.

Lamentavelmente, caberá a elas e seus futuros representantes político-partidários a tarefa de manter acesa as chamas desse espírito golpista, desse desvirtuamento cidadão, inspirado no ideário ultradireitista. E ao que tudo indica, esses indivíduos não se furtarão em desempenhar esse papel.

Afinal de contas, totalmente condicionada a acreditar que “a perda da liberdade é um mal necessário para se ter segurança, a Direita e seus matizes têm nas mãos o pretexto perfeito para justificar a consolidação de uma governança antidemocrática, ditatorial, como tantas já se viu descritas nas páginas da história” 2.