sexta-feira, 9 de fevereiro de 2024

Por trás de cada silêncio


Por trás de cada silêncio

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

As horas passam e a perplexidade sobre as investigações em torno da tentativa de golpe de Estado se amplificam, como tinha de ser.  Mas, tudo me parece carecer de um olhar mais distante do agora, de uma análise mais profunda das entrelinhas. Tudo porque o país se permitiu acreditar que certos silêncios eram garantias de tempos de paz.

Ledo engano! Situações mal resolvidas abrem sempre precedentes para confusão, ainda que demore um tempo. As duas décadas de chumbo em que o Brasil foi sumariamente envolvido, não poderiam jamais ter sido contemporizadas. Sob perspectivas diferentes, a anistia proposta não resolveu para nenhum dos lados.

Aliás, olhando para os recentes acontecimentos, começo a acreditar que para os militares a decisão soou pior, pelo fato de que estariam sempre na iminência das contestações, sob o escrutínio da opinião pública; sobretudo, daqueles mais diretamente afetados pelas ações do regime.

Não é à toa que evitaram, como puderam, o surgimento de uma comissão que revelasse os detalhes daqueles tempos sombrios e tristes. Assim, os silêncios foram um artifício para esperar por alguma solução que pudesse lhes restituir o poder e dar fim ao incômodo das memórias, de uma vez por todas.  

E nesse processo, eis que surge um fato totalmente desconectado desse assunto. O ex-presidente da República, ainda nos tempos da ativa, promoveu ato de insubordinação e rebeldia, que lhe poderia ter custado a expulsão. Mas, dizem que por forças de cordialidade superior, a punição prevista não foi aplicada e ele saiu sem tal desonra.

Bem, há um provérbio que diz “quando a esmola é demais, o santo desconfia”.  Em algum momento, certamente, essa benesse seria cobrada. Sem se dar conta, ele se transformou no que pode se chamar de “o idiota útil”. Não é difícil pensar que seu perfil, especialmente ideológico, coadunava aos interesses ressentidos da caserna. Então, apesar da sua passagem arranhada e tendo seguido outro caminho, o da política, mesmo assim, as relações não se esgarçaram, não foram interrompidas.

Ele permaneceu encontrando as portas abertas, inclusive, para suas campanhas políticas. Até que em um momento recente, bastante conturbado na realidade brasileira, lhe apoiaram para concorrer ao cargo máximo do país. Era a oportunidade de ouro, que aguardavam há mais de três décadas. Chegava-se a hora de “o idiota útil” cumprir seu papel.

Aliás, o próprio vídeo da reunião de 05 de julho de 2022, divulgado pelos veículos de comunicação e de informação, com autorização judicial, deixa claro em certos momentos, como o ex-presidente tinha consciência sobre si mesmo e padecia de uma profunda baixa autoestima, ao ponto de se considerar surpreso por ter conseguido ocupar um cargo de tamanha importância. No entanto, não me prece que ele desconhecesse as razões para sua escolha.

Ora, a questão do perfil ideológico foi determinante.  Ele estava tão afinado com as narrativas militares, defendidas durante os anos de chumbo, que mesmo não tendo participado diretamente do período, em sua campanha, em 2018, um de seus filhos foi flagrado defendendo a ideia de fechamento do STF e de retorno do AI-5.

O que em tese colabora para a ideia de uma legitimidade discursiva, dentro e fora do ambiente familiar, apesar da repercussão negativa da fala tê-los feito recuar temporariamente. No entanto, a pretensão golpista mostrou-se pairando no ar para ele e seus apoiadores, simpatizantes e asseclas.

Assim, vencidas as eleições em 2018, o que se segue na linha histórica é uma sucessão de fatos que reafirmam a empreitada; embora, uma grande parte da população tenha feito vistas grossas a respeito. Chamavam de bravata, de fanfarronice, de farolagem, de presepada, para não admitir a verdade nua e crua que estava bem diante do nariz.

De modo que se muita gente, agora, prende a respiração, em sinal de perplexidade, é porque sabe exatamente o que deixou de fazer nos verões passados. E ao que tudo indica, diante dos achados recentes das investigações da Polícia Federal (PF), a prevaricação correu solta na República de Brasília; visto que, o silêncio oportunista imperou.

A ameaça golpista é, portanto, muito mais antiga do que se pode imaginar. Ela foi fiada ao longo de muito tempo e contou com participações diretas e indiretas de muitos agentes políticos e institucionais. Vamos dizer que esse episódio repugnante teria sido mais um, numa história de tantos outros, desde o início da República.

Como parte de uma herança histórica que não foi oportunamente descontruída para alicerçar adequadamente os princípios democráticos e republicanos. Daí a Democracia, o Estado de Direito, a cidadania, viverem aos sobressaltos!

Pois é, cheios de pudores para não nomear corretamente os fatos, os acontecimentos. Os atos reprováveis idealizados nos espaços palacianos obscuros. Mas, a verdade, é que não se trata de pudor, de vergonha, de constrangimento. Apenas engolem seco os absurdos; pois, quem sabe, em algum momento, não podem ser úteis, não é mesmo?!

Acontece que, agora, a história mostra que a verdade tarda, mas não falta. Um dia ela aparece. Um dia os tapetes da história se tornam insuficientes para esconder todos os malfeitos, todas as sujidades, todas as imundices da imoralidade e da falta de ética nacional.   

Diante dessa constatação, lembrei-me das seguintes palavras de Rui Barbosa, “Lucram com a desordem os governos desacreditados, que, vivendo apenas de viver, tendo violado todas as leis, faltado a todos os deveres, perdido toda a estima pública, necessitam de romancear revoluções, que recomendem o zelo da administração pela estabilidade da paz, autorizem a perpetração de insídias contra o direito desarmado, e encubram, na confusão das ruas, a mão da polícia, que passa, executando os seus cálculos de eliminação homicida” 1.

Sendo assim, caro (a) leitor (a), a grande lição chega pela compreensão de que os silêncios são inúteis e podem ser muito mais nefastos e devastadores, do que quaisquer palavras. Agora, sabemos que os silêncios não absolvem, não eximem, não isentam, simplesmente, porque eles reverberam seus gritos no inconsciente humano. E, nenhum de nós, jamais sabe o que se passa na inconsciência alheia, no conjunto de crenças, valores e princípios dos outros.

Não é à toa que Martin Luther King Jr. tenha dito, “O que me preocupa não é o grito dos maus. É o silêncio dos bons”; afinal de contas, “A verdadeira medida de um homem não se vê na forma como se comporta em momentos de conforto e conveniência, mas em como se mantém em tempos de controvérsia e desafio”. Pensemos a respeito!



1 “Obras completas de Rui Barbosa”. p.103. Publicado pelo Ministério de Educação e saúde, 1942.   

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