A fogueira
das vaidades
Por Alessandra
Leles Rocha
Quando li Frankenstein: or The
Modern Prometheus, a grande obra literária de Mary Shelley, escrita no
início do século XIX, uma das passagens que mais me impactou foi “Não pode a
busca do saber ser levada à conta de exceção a essa regra. Se o estudo, por
qualquer forma, tende a debilitar nossas afeições, nosso gosto pelos prazeres
simples, trata-se então de uma atividade ilícita, que não se ajusta ao espírito
humano. Se essa norma fosse sempre observada, se todo homem estabelecesse um
limite entre seus misteres e sua vida afetiva, a Grécia não teria sido
escravizada, César teria poupado sua pátria, a América teria sido colonizada
sem maiores conflitos, e os impérios dos astecas e dos incas não teriam sido
aniquilados” (SHELLEY, p.54) 1. A franqueza
da autora diante de uma observação ética, tão óbvia, reverbera uma
atemporalidade reflexiva extremamente necessária.
De modo que ao assistir ao
premiadíssimo Oppenheimer 2 , não
pude deixar de pensar a respeito do tênue limite existente entre a ética científica
e a ausência dela. Inclusive, no fato de que J. Robert Oppenheimer poderia
facilmente ter dito as seguintes palavras: “Senti o gosto amargo da
decepção. Sonhos que me haviam embalado por tanto tempo eram, repentinamente, transformados
numa realidade infernal” (SHELLEY, p.57).
Tenho comigo que a Revolução
Industrial, a partir da segunda metade do século XVIII, foi sim, um grande salto
para a humanidade; mas, sem quaisquer redes de proteção. Afinal, não se pode olhar
os acontecimentos somente pela perspectiva da produção em escala e o consumo
massificador. A Revolução Industrial, em cada uma das etapas que ela se apresenta,
trata de uma jornada de ciência e tecnologia. O conhecimento foi posto à prova,
no sentido de trazer à tona todos os avanços e progressos, possíveis e
desejáveis, para os membros do topo da pirâmide social.
Entretanto, o conhecimento não se
resume em si mesmo, ele é parte da subjetividade humana. O que significa que seu
processo construtivo se dá a partir da identidade e das percepções individuais,
as quais moldam a relação das pessoas com o mundo. E quanto mais os indivíduos alcançam satisfação
nas suas descobertas, na aquisição de elementos para constituírem seus
conhecimentos, mais eles se tornam envoltos por uma aura de distinção social. De
modo que acaba sendo inevitável a vaidade correr freneticamente pelas veias de
quaisquer cientistas ou personalidades da academia.
Cada descoberta, apontada como um
assombro de genialidade, na verdade, tem esse lustro pelo papel que pode estabelecer
nos rumos da humanidade. E quem não quer ser o primeiro nessa corrida? Receber os
louros da vitória, os aplausos, as reverências? Acontece que, nem sempre, os
resultados estão amparados pela ética. Teoria e prática, nem sempre, caminham juntas.
Por mais que a ciência tente prever e evitar dissabores, quando ela ultrapassa as
fronteiras dos laboratórios acadêmicos para ser apropriada por certos segmentos
da sociedade, ela incorre sim, no risco de um profundo desvirtuamento de propósito.
Segundo registro na biografia de Alberto
Santos Dumont, o famoso inventor brasileiro, foi vítima disso. “No dia 8 de
dezembro de 1914, ao ver seu invento ser usado para bombardear a cidade de Colônia,
se decepciona. No Brasil, sua tristeza aumentou quando o aeroplano foi usado durante
a revolução de 1932, em São Paulo” 3.
O “pai da aviação” viu seu trabalho manchado pela beligerância da 1ª
Guerra Mundial e depois pela Revolução Constitucionalista, ocorrida em seu próprio
país. O seu conhecimento foi brutalmente desumanizado e conduzido para um fim
ignóbil.
Um outro exemplo importante diz
respeito ao uso do DDT (Diclorodifeniltricloroetano), da família dos
organoclorados, ele foi uma das substâncias sintéticas mais estudadas e
comercializadas no século XX. A descoberta de suas propriedades inseticidas data
de 1939, pelo entomologista suíço Paul Müller, valendo-lhe o Prêmio Nobel de
Medicina devido ao uso do DDT no combate à malária 4.
No entanto, seu uso durante a Segunda Guerra Mundial, depois na agricultura em
todo o mundo, mostrou-se uma ameaça ao equilíbrio ambiental e aos agravos significativos
no campo da saúde pública, levando à sua proibição.
A ciência que cria, também, destrói.
Controverso. Discutível. Questionável. Mas é assim. A ciência vive sobre um intenso
dilema ético. E olhando para o imediatismo contemporâneo, com seus numerosos
egos narcísicos, hasteando bandeiras de liberdade irrestrita, há de se pensar a
respeito. De tecer uma reflexão longa e profunda. Albert Schweitzer dizia que “Ética
é, sem ressalvas, responsabilidade por tudo o que tem vida”. Portanto, se a
ciência não coloca a vida como elemento central a ser resguardado na sua busca
pelo conhecimento, o planeta viverá sempre em constante sobressalto.
E pensar sobre isso é
interessante, porque se considerássemos o arsenal bélico de posse de certos players
internacionais, talvez, a Terra já tivesse se desintegrado. Mas, isso só não
ocorreu, porque aquele que deflagar a primeira ogiva perderá a razão de
continuar tentando impor a sua supremacia, na medida em que não terá mais com
quem disputar. Todos os habitantes do planeta terão morrido. Então, com a ajuda
da ciência e da tecnologia eles fazem o seu ritual macabro de eliminação
civilizatória, de ostentação de poder, a conta-gotas. Nos matam, lenta e gradualmente, de diferentes
formas.
Assim, tenhamos cuidado, “Prometeu
roubou o fogo dos deuses e o deu ao homem. Por isso ele foi acorrentado a uma
rocha e torturado por toda a eternidade”, o que trazendo para o contexto contemporâneo
significa que “Você não pode cometer um pecado e depois pedir a todos nós
que sintamos pena de você quando houver consequências” (citações do filme
Oppenheimer, 2023). A fogueira das vaidades é implacável e certos erros não
têm como corrigir, nem voltar atrás.
1
SHELLEY, M. [1817]. Frankenstein: or The Modern Prometheus. Tradução de Pietro
Nassetti. Disponível em: http://lelivros.love/book/frankestein-mary-shelley/.
Acesso em 1º jul. 2019.
2
Oscar 2024 – ATOR, DIRETOR, FILME, ATOR COADJUVANTE, FOTOGRAFIA, TRILHA SONORA
ORIGINAL, MONTAGEM.
Trailer oficial - https://www.youtube.com/watch?v=F3OxA9Cz17A
4 https://cetesb.sp.gov.br/laboratorios/wp-content/uploads/sites/24/2022/02/DDT.pdf