domingo, 21 de abril de 2024

A fogueira das vaidades


A fogueira das vaidades

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Quando li Frankenstein: or The Modern Prometheus, a grande obra literária de Mary Shelley, escrita no início do século XIX, uma das passagens que mais me impactou foi “Não pode a busca do saber ser levada à conta de exceção a essa regra. Se o estudo, por qualquer forma, tende a debilitar nossas afeições, nosso gosto pelos prazeres simples, trata-se então de uma atividade ilícita, que não se ajusta ao espírito humano. Se essa norma fosse sempre observada, se todo homem estabelecesse um limite entre seus misteres e sua vida afetiva, a Grécia não teria sido escravizada, César teria poupado sua pátria, a América teria sido colonizada sem maiores conflitos, e os impérios dos astecas e dos incas não teriam sido aniquilados” (SHELLEY, p.54) 1. A franqueza da autora diante de uma observação ética, tão óbvia, reverbera uma atemporalidade reflexiva extremamente necessária.

De modo que ao assistir ao premiadíssimo Oppenheimer 2 , não pude deixar de pensar a respeito do tênue limite existente entre a ética científica e a ausência dela. Inclusive, no fato de que J. Robert Oppenheimer poderia facilmente ter dito as seguintes palavras: “Senti o gosto amargo da decepção. Sonhos que me haviam embalado por tanto tempo eram, repentinamente, transformados numa realidade infernal” (SHELLEY, p.57).

Tenho comigo que a Revolução Industrial, a partir da segunda metade do século XVIII, foi sim, um grande salto para a humanidade; mas, sem quaisquer redes de proteção. Afinal, não se pode olhar os acontecimentos somente pela perspectiva da produção em escala e o consumo massificador. A Revolução Industrial, em cada uma das etapas que ela se apresenta, trata de uma jornada de ciência e tecnologia. O conhecimento foi posto à prova, no sentido de trazer à tona todos os avanços e progressos, possíveis e desejáveis, para os membros do topo da pirâmide social. 

Entretanto, o conhecimento não se resume em si mesmo, ele é parte da subjetividade humana. O que significa que seu processo construtivo se dá a partir da identidade e das percepções individuais, as quais moldam a relação das pessoas com o mundo.  E quanto mais os indivíduos alcançam satisfação nas suas descobertas, na aquisição de elementos para constituírem seus conhecimentos, mais eles se tornam envoltos por uma aura de distinção social. De modo que acaba sendo inevitável a vaidade correr freneticamente pelas veias de quaisquer cientistas ou personalidades da academia.

Cada descoberta, apontada como um assombro de genialidade, na verdade, tem esse lustro pelo papel que pode estabelecer nos rumos da humanidade. E quem não quer ser o primeiro nessa corrida? Receber os louros da vitória, os aplausos, as reverências? Acontece que, nem sempre, os resultados estão amparados pela ética. Teoria e prática, nem sempre, caminham juntas. Por mais que a ciência tente prever e evitar dissabores, quando ela ultrapassa as fronteiras dos laboratórios acadêmicos para ser apropriada por certos segmentos da sociedade, ela incorre sim, no risco de um profundo desvirtuamento de propósito.

Segundo registro na biografia de Alberto Santos Dumont, o famoso inventor brasileiro, foi vítima disso. “No dia 8 de dezembro de 1914, ao ver seu invento ser usado para bombardear a cidade de Colônia, se decepciona. No Brasil, sua tristeza aumentou quando o aeroplano foi usado durante a revolução de 1932, em São Paulo” 3. O “pai da aviação” viu seu trabalho manchado pela beligerância da 1ª Guerra Mundial e depois pela Revolução Constitucionalista, ocorrida em seu próprio país. O seu conhecimento foi brutalmente desumanizado e conduzido para um fim ignóbil.

Um outro exemplo importante diz respeito ao uso do DDT (Diclorodifeniltricloroetano), da família dos organoclorados, ele foi uma das substâncias sintéticas mais estudadas e comercializadas no século XX. A descoberta de suas propriedades inseticidas data de 1939, pelo entomologista suíço Paul Müller, valendo-lhe o Prêmio Nobel de Medicina devido ao uso do DDT no combate à malária 4. No entanto, seu uso durante a Segunda Guerra Mundial, depois na agricultura em todo o mundo, mostrou-se uma ameaça ao equilíbrio ambiental e aos agravos significativos no campo da saúde pública, levando à sua proibição.

A ciência que cria, também, destrói. Controverso. Discutível. Questionável. Mas é assim. A ciência vive sobre um intenso dilema ético. E olhando para o imediatismo contemporâneo, com seus numerosos egos narcísicos, hasteando bandeiras de liberdade irrestrita, há de se pensar a respeito. De tecer uma reflexão longa e profunda. Albert Schweitzer dizia que “Ética é, sem ressalvas, responsabilidade por tudo o que tem vida”. Portanto, se a ciência não coloca a vida como elemento central a ser resguardado na sua busca pelo conhecimento, o planeta viverá sempre em constante sobressalto.  

E pensar sobre isso é interessante, porque se considerássemos o arsenal bélico de posse de certos players internacionais, talvez, a Terra já tivesse se desintegrado. Mas, isso só não ocorreu, porque aquele que deflagar a primeira ogiva perderá a razão de continuar tentando impor a sua supremacia, na medida em que não terá mais com quem disputar. Todos os habitantes do planeta terão morrido. Então, com a ajuda da ciência e da tecnologia eles fazem o seu ritual macabro de eliminação civilizatória, de ostentação de poder, a conta-gotas.  Nos matam, lenta e gradualmente, de diferentes formas.  

Assim, tenhamos cuidado, “Prometeu roubou o fogo dos deuses e o deu ao homem. Por isso ele foi acorrentado a uma rocha e torturado por toda a eternidade”, o que trazendo para o contexto contemporâneo significa que “Você não pode cometer um pecado e depois pedir a todos nós que sintamos pena de você quando houver consequências” (citações do filme Oppenheimer, 2023). A fogueira das vaidades é implacável e certos erros não têm como corrigir, nem voltar atrás.



1 SHELLEY, M. [1817]. Frankenstein: or The Modern Prometheus. Tradução de Pietro Nassetti. Disponível em: http://lelivros.love/book/frankestein-mary-shelley/. Acesso em 1º jul. 2019.

2 Oscar 2024 – ATOR, DIRETOR, FILME, ATOR COADJUVANTE, FOTOGRAFIA, TRILHA SONORA ORIGINAL, MONTAGEM.

Trailer oficial -   https://www.youtube.com/watch?v=F3OxA9Cz17A

4 https://cetesb.sp.gov.br/laboratorios/wp-content/uploads/sites/24/2022/02/DDT.pdf