terça-feira, 23 de abril de 2024

Na contramão da Inconfidência Mineira


Na contramão da Inconfidência Mineira

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Nada poderia ser mais interessante de se observar, no contexto dos acontecimentos recentes no Brasil, que em pleno 21 de abril, marco importante do movimento denominado Inconfidência Mineira, tenha ocorrido um evento político na praia de Copacabana, no Rio de Janeiro, exaltando o mais profundo sentimento colonialista; porém, em relação aos EUA.

Enquanto a elite socioeconômica das Minas Gerais travou, no século XVIII, a sua luta republicana e separatista, contra o domínio colonial português; sobretudo, em relação à política fiscal empregada pela metrópole, agora, três séculos depois, saem às ruas milhares de brasileiros em favor do imperialismo digital 1, liderado por um bilionário norte-americano.

Para mim, esta foi a prova cabal daquilo que venho falando, há tempos, ou seja, o ranço colonial ainda domina o Brasil. Vira daqui e mexe dali o brasileiro não perde a oportunidade de exercer o seu vira-latismo explicitamente.

Como bem escreveu Nelson Rodrigues, “Por ‘complexo de vira-lata’ entendo eu a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo. O brasileiro é um narciso às avessas, que cospe na própria imagem. Eis a verdade: não encontramos pretextos pessoais ou históricos para a autoestima” 2.

Bem, o fato de hastearem faixas e bandeiras em apoio ao tal norte-americano, ou de proferirem discursos na língua inglesa, apesar de caricato não diz tudo. Na verdade, pode ser considerado apenas como a cereja do bolo, porque muito antes, um grupo de parlamentares federais, custeados com dinheiro público, esteve algumas vezes na terra do Tio Sam, denegrindo a imagem do Brasil junto a certos parlamentares estadunidenses.

Munidos de inverdades e absurdos foram clamar por uma eventual interferência daquele país sobre o nosso. Vociferaram que aqui é uma ditadura. Que a Suprema Corte brasileira está fora de controle.  Que há perseguição política. Enfim... Mas, no fundo parecia que estávamos de volta aos tempos coloniais, em que era preciso a vigilância e o controle da metrópole nos assuntos locais.

Bem, se engana quem pensa que essas coisas dizem respeito apenas à fragilidade da identidade nacional brasileira. Não, o buraco é bem mais fundo. É por essas e por outras que a Democracia, por aqui, vive na corda bamba, aos sobressaltos dos humores alheios.  A impressão que se tem é de que os brasileiros não apreciaram muito a ideia de assumir as responsabilidades republicanas. Afinal de contas, liberdade e responsabilidade são palavras que não se dissociam!

Assim, o gosto por ter quem tome às rédeas da situação, decida, faça e aconteça, que demonstre poder absoluto, para muitos deles é o que seria ideal. Como se o preço pago por essa tutela não fosse altíssimo, inclusive, do ponto de vista depreciativo da identidade nacional. Vamos e convenhamos que essa subserviência, esse servilismo, essa submissão, é bastante constrangedora e nos coloca em uma posição de atraso imutável.

Não nos esqueçamos de que a nossa Constituição vigente está fundamentada pela soberania, pela cidadania, pela dignidade da pessoa humana, pelos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e pelo pluralismo político (art. 1º). Portanto, não precisamos de ninguém que diga o que é certo ou errado em nosso país. Que dê pitaco baseado em Fake News, construídas a partir de informações equivocadas, inexistentes. Saudosismos à parte, os tempos coloniais brasileiros ficaram no passado!

Imagino que, o pobre diabo do Tiradentes e seus companheiros devem ter se revirado no túmulo, no último domingo. Estamos falando de uma estirpe que tinha consciência política, cidadã, e lutava contra os abusos e arbitrariedades da metrópole.

Nenhum deles pensava que a Coroa Portuguesa defendia liberdade ou tinha espírito democrático. Nem poderiam; pois, ficou claro, desde 1500, que o propósito era a dominação portuguesa, através de vários vieses, ou seja, territorial, cultural, religioso e econômico. Quaisquer tentativas de jugo sobre outra nação é, portanto, colonialismo!

A grande questão é que há 500 anos, o desequilíbrio de forças entre a colônia e a metrópole era um fato. Romper com a dominação era praticamente impossível. Somente três séculos depois da chegada dos portugueses, no país, é que o Brasil se faz independente da metrópole e começa a trilhar caminhos de elaboração para a sua consolidação republicana e, mais adiante, democrática.

Daí o espanto em perceber que há, em pleno século XXI, quem queira fazer um caminho contrário na história! Diante dessa constatação, não pude deixar de lembrar das palavras de Jose Luis Borges, escritor argentino, que “As ditaduras fomentam a opressão, as ditaduras fomentam o servilismo, as ditaduras fomentam a crueldade; mas o mais abominável é que elas fomentam a idiotia”.

Pois é, a forma de governança colonial não difere das ditaduras contemporâneas. O colonialismo foi um precursor sim, na medida da sua arbitrariedade, da sua exploração das desigualdades, da sua seletivização social, da sua brutalidade ideológica. Então, a reafirmação do desejo colonial é a reafirmação desse desejo autoritário, alienante, silenciador, opressor, capaz de elevar socialmente uns poucos em detrimento da maioria.

O que, no caso do imperialismo digital contemporâneo, ganha maior intensidade e velocidade, graças ao arcabouço tecnológico desenvolvido por grandes potências globais, como são os EUA. Entendam que, absortas pelo encantamento virtual, milhões de pessoas facilmente passam a ser controladas e manipuladas através das mídias sociais.

Assim, devidamente programadas a conduzir o indivíduo por algoritmos refratários, qualquer ideia contrária aos interesses do poder dominante é rechaçada. E aí, a dominação territorial, cultural, religiosa e econômica, faz a festa!

Segundo Michel Foucault, “Existem momentos na vida onde a questão de saber se se pode pensar diferentemente do que se pensa, e perceber diferentemente do que se vê, é indispensável para continuar a olhar ou a refletir”.

E isso significa que “Precisamos resolver nossos monstros secretos, nossas feridas clandestinas, nossa insanidade oculta” (Michel Foucault), para podermos avançar ao invés de regredir sócio-historicamente.

Afinal, “O discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar” (Michel Foucault). Prestemos bastante atenção a respeito, a fim de que possamos nos colocar a realmente pensar e dar lugar a busca por essa tal liberdade ainda que tardia 3!



3 “LIBERTAS QUAE SERA TAMEN” (Liberdade ainda que tardia) – lema dos inconfidentes mineiros e presente na bandeira do Estado de Minas Gerais.