Pretextos
desbotados...
Por
Alessandra Leles Rocha
Sabemos que uma guerra acontece
no mundo. Que os estilhaços da discórdia e da turbulência internacional irão
nos atingir, inevitavelmente. No entanto, não podemos permitir sermos
absorvidos completamente por esse assunto, porque o Brasil é dado a se esconder
debaixo de determinadas circunstâncias para urdir suas tramas sob medida e
depois lançá-las com impacto, na primeira oportunidade, sobre a vida dos
cidadãos.
Aliás, se não fosse a pandemia, o
país estaria expressando suas tradições carnavalescas nos próximos quatro dias.
Mas, em sinal de bom senso, de prudência, de responsabilidade, os apaixonados
pela folia de Momo foram convencidos a conter a alegria e a descontração. E diante
da melancolia que se estabeleceu, puderam até se recordar dos tempos em que a
quarta-feira de cinzas se transformava na quarta-feira das revelações bombásticas
da política nacional.
Pois é, pretextos sempre foram
usados para ofuscar a atenção dos cidadãos e pegá-los de surpresa, no contrapé
das situações. A guerra e o carnaval são apenas exemplos, dentre tantos outros
já utilizados. A questão é que eles não alteram em si o curso dos fatos. Aquilo
que acontece na calada da noite nos corredores palacianos, nas conversas
cifradas, nos conchavos ao pé do ouvido, nas decisões assinadas
intempestivamente, nas manobras das alianças políticas, esse é o ponto. Aquilo que
só se fica sabendo depois, quando o resultado desastroso retumba sobre o país
como um todo.
É preciso entender que a guerra
do mundo não é, portanto, maior que a nossa própria guerra cotidiana. Quando se
estabelece essa perspectiva de amplificação do destaque e da importância, nos veículos
de informação e comunicação, sobre os conflitos internacionais, é como se retrocedêssemos
à nossa desimportância colonial. Sim, nos tempos coloniais, quem era o Brasil
na fila do pão? Quem importava, quem tinha destaque, quem era notícia, eram as Metrópoles.
E o fato de ser assim, não era
porque aqui não existiam problemas ou acontecimentos relevantes. Era,
simplesmente, pelo fato de sermos colônia, ou seja, um território ocupado e
administrado por uma Metrópole Europeia, no caso Portugal, entre os séculos XVI
e XIX, com vistas ao enriquecimento e empoderamento metropolitano. Não tínhamos
vez, nem voz, nem identidade, nem nada. Éramos a expressão plena do que se
determinava como colônia de exploração.
Então, quando nos colocamos, em
pleno século XXI, na condição de não priorizar, de não visibilizar
adequadamente aquilo que urge no Brasil contemporâneo, não só expomos nossos ranços
coloniais, como abrimos precedentes para as correntes de desserviço, de
dilapidação e de deterioração do país, as quais estão vorazes e inquietas por
isso. O silêncio que se estabelece nesse tipo de movimento, ainda que momentâneo,
é profundamente danoso e perigoso.
Porque, enquanto os olhos estão
voltados para outras direções e sentidos, a atenção deixa a desejar aqui dentro,
baixando-se por completo a guarda. Assim, a vulnerabilidade se instala e o imponderável
na forma de más intenções, muito bem arquitetadas, pode se instalar e agir. Afinal,
a capacidade de reação nunca é instantânea. Sempre leva um tempo para entender
o que está acontecendo, para processar os fatos e dar uma resposta à altura.
Aliás, dentro desse cenário,
ontem, eu me deparei com a notícia de que a Secretaria de Cultura, do Governo
Federal, “começou a lançar uma série de
produtos alusivos ao bicentenário da independência
do Brasil” 1. Não haveria
problema, não fosse o fato desse material estar sendo produzido com o propósito
de recontar a história, segundo os interesses do atual governo.
Trata-se de um instrumento que
pretende construir uma narrativa própria e tendenciosa sobre a história, o qual
não tende a ter nenhum compromisso com a historicidade e a identidade nacional.
Sairemos da história para uma ficção que pode contemplar ou excluir personagens
e fatos, sem a menor cerimônia. Sem contar, eventuais acréscimos relacionados a
modos, comportamentos e costumes de caráter conservador, que a atual gestão
tenta reintroduzir de qualquer maneira.
E isso é só um exemplo, de tantas
outras coisas que permanecem acontecendo bem debaixo do nosso nariz, apesar de
quaisquer pretextos que se use para desviar o foco a respeito. Garimpos
Ilegais. Contaminação por mercúrio e agrotóxicos. Desmatamentos. A lentidão nos
desdobramentos da CPI da COVID-19, inclusive em relação aos gastos públicos com
drogas sem eficácia. A paralisia da economia nacional. O desemprego, a miséria e
a vulnerabilização social. Os eventos extremos do clima. Os prejuízos e
retrocessos no desenvolvimento educacional brasileiro. As violências e
discriminações. ...
Já dizia o poeta e filósofo
italiano, Giacomo Leopardi, que “Do
hábito da resignação nasce sempre a falta de interesse, a negligência, a indolência,
a inatividade e quase a imobilidade”. Vamos e convenhamos que a resignação
do brasileiro, seu eterno conformismo consolidado pela trivialização e
normalização da vida e dos problemas, também, se faz oportunista pelos
pretextos das circunstâncias.
Mas, o que adianta? Esconder-se
sob pretextos não faz o mundo parar de girar. O Brasil parar de girar. De modo
que as urgências estão aí, clamando atenção, clamando solução, clamando... Então,
antes que você seja surpreendentemente absorvido por elas, se posicione a
respeito.