sábado, 26 de fevereiro de 2022

Pretextos desbotados...


Pretextos desbotados...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Sabemos que uma guerra acontece no mundo. Que os estilhaços da discórdia e da turbulência internacional irão nos atingir, inevitavelmente. No entanto, não podemos permitir sermos absorvidos completamente por esse assunto, porque o Brasil é dado a se esconder debaixo de determinadas circunstâncias para urdir suas tramas sob medida e depois lançá-las com impacto, na primeira oportunidade, sobre a vida dos cidadãos.

Aliás, se não fosse a pandemia, o país estaria expressando suas tradições carnavalescas nos próximos quatro dias. Mas, em sinal de bom senso, de prudência, de responsabilidade, os apaixonados pela folia de Momo foram convencidos a conter a alegria e a descontração. E diante da melancolia que se estabeleceu, puderam até se recordar dos tempos em que a quarta-feira de cinzas se transformava na quarta-feira das revelações bombásticas da política nacional.

Pois é, pretextos sempre foram usados para ofuscar a atenção dos cidadãos e pegá-los de surpresa, no contrapé das situações. A guerra e o carnaval são apenas exemplos, dentre tantos outros já utilizados. A questão é que eles não alteram em si o curso dos fatos. Aquilo que acontece na calada da noite nos corredores palacianos, nas conversas cifradas, nos conchavos ao pé do ouvido, nas decisões assinadas intempestivamente, nas manobras das alianças políticas, esse é o ponto. Aquilo que só se fica sabendo depois, quando o resultado desastroso retumba sobre o país como um todo.

É preciso entender que a guerra do mundo não é, portanto, maior que a nossa própria guerra cotidiana. Quando se estabelece essa perspectiva de amplificação do destaque e da importância, nos veículos de informação e comunicação, sobre os conflitos internacionais, é como se retrocedêssemos à nossa desimportância colonial. Sim, nos tempos coloniais, quem era o Brasil na fila do pão? Quem importava, quem tinha destaque, quem era notícia, eram as Metrópoles.

E o fato de ser assim, não era porque aqui não existiam problemas ou acontecimentos relevantes. Era, simplesmente, pelo fato de sermos colônia, ou seja, um território ocupado e administrado por uma Metrópole Europeia, no caso Portugal, entre os séculos XVI e XIX, com vistas ao enriquecimento e empoderamento metropolitano. Não tínhamos vez, nem voz, nem identidade, nem nada. Éramos a expressão plena do que se determinava como colônia de exploração.  

Então, quando nos colocamos, em pleno século XXI, na condição de não priorizar, de não visibilizar adequadamente aquilo que urge no Brasil contemporâneo, não só expomos nossos ranços coloniais, como abrimos precedentes para as correntes de desserviço, de dilapidação e de deterioração do país, as quais estão vorazes e inquietas por isso. O silêncio que se estabelece nesse tipo de movimento, ainda que momentâneo, é profundamente danoso e perigoso.

Porque, enquanto os olhos estão voltados para outras direções e sentidos, a atenção deixa a desejar aqui dentro, baixando-se por completo a guarda. Assim, a vulnerabilidade se instala e o imponderável na forma de más intenções, muito bem arquitetadas, pode se instalar e agir. Afinal, a capacidade de reação nunca é instantânea. Sempre leva um tempo para entender o que está acontecendo, para processar os fatos e dar uma resposta à altura.

Aliás, dentro desse cenário, ontem, eu me deparei com a notícia de que a Secretaria de Cultura, do Governo Federal, “começou a lançar uma série de produtos alusivos ao bicentenário da independência do Brasil” 1. Não haveria problema, não fosse o fato desse material estar sendo produzido com o propósito de recontar a história, segundo os interesses do atual governo.

Trata-se de um instrumento que pretende construir uma narrativa própria e tendenciosa sobre a história, o qual não tende a ter nenhum compromisso com a historicidade e a identidade nacional. Sairemos da história para uma ficção que pode contemplar ou excluir personagens e fatos, sem a menor cerimônia. Sem contar, eventuais acréscimos relacionados a modos, comportamentos e costumes de caráter conservador, que a atual gestão tenta reintroduzir de qualquer maneira.

E isso é só um exemplo, de tantas outras coisas que permanecem acontecendo bem debaixo do nosso nariz, apesar de quaisquer pretextos que se use para desviar o foco a respeito. Garimpos Ilegais. Contaminação por mercúrio e agrotóxicos. Desmatamentos. A lentidão nos desdobramentos da CPI da COVID-19, inclusive em relação aos gastos públicos com drogas sem eficácia. A paralisia da economia nacional. O desemprego, a miséria e a vulnerabilização social. Os eventos extremos do clima. Os prejuízos e retrocessos no desenvolvimento educacional brasileiro. As violências e discriminações. ...

Já dizia o poeta e filósofo italiano, Giacomo Leopardi, que “Do hábito da resignação nasce sempre a falta de interesse, a negligência, a indolência, a inatividade e quase a imobilidade”. Vamos e convenhamos que a resignação do brasileiro, seu eterno conformismo consolidado pela trivialização e normalização da vida e dos problemas, também, se faz oportunista pelos pretextos das circunstâncias.

Mas, o que adianta? Esconder-se sob pretextos não faz o mundo parar de girar. O Brasil parar de girar. De modo que as urgências estão aí, clamando atenção, clamando solução, clamando... Então, antes que você seja surpreendentemente absorvido por elas, se posicione a respeito.  

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