sexta-feira, 25 de fevereiro de 2022

Só faltou combinar com os russos!


Só faltou combinar com os russos!

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Muita gente por aí cheia de certeza, de convicção, sobre os rumos de 2022. Só faltou combinar com os russos! E dessa vez não é só mera expressão, os garotos valentões de Moscou decidiram fazer guerra e demonstrar força para o mundo. A partir daí tudo pode acontecer e o imprevisível se agigantar de uma maneira ainda mais avassaladora.

Afinal, conflitos como dessa magnitude, que estão se desenhando no horizonte, não tem prazo de duração. Podem se arrastar dias, meses, e até anos, dado o potencial de seus desdobramentos em se retroalimentarem. Não é uma guerra de nervos. É uma guerra com todos os componentes teóricos e práticos que o mundo contemporâneo dispõe.

Acontece que, por experiências pregressas, o mundo já sabe que o ponto de deflagração extrapola eventuais fronteiras estabelecidas. Direta ou indiretamente as ondas de propagação dos eventos alcançam o planeta como um todo e desestabilizam os arranjos preestabelecidos, criando novas perspectivas conjunturais.

A grande questão é que tais conjunturas terão que se acomodar sobre terrenos já minados por problemas novos e antigos, desafios que ainda não foram efetivamente debelados ou, pelo menos, mitigados, como é o caso da própria pandemia. Não dá para lidar com as situações de maneira individualizada, compartimentalizada, uma de cada vez. Não, é tudo junto e misturado.

E uma guerra, nessas alturas do campeonato, não poderia ser pior. Ora, nem chegamos ainda ao ponto de nos colocarmos no contexto de uma Pós-Pandemia, por exemplo. A instabilidade é total diante da possibilidade de novas variantes, de novos picos de contaminação e letalidade, de novo recrudescimento de medidas preventivas, enfim...

De modo que, as relações socioeconômicas encontram-se em um movimento de desaceleração bastante cautelosa. O que significa que o mundo não está em um momento de franca realização e prosperidade; muito pelo contrário. E em meio a todos os efeitos da pandemia, nesses quase três anos, cidades em diferentes pontos do planeta foram arrasadas, devastadas pelos efeitos dos eventos extremos do clima.

Portanto, já temos uma legião de pessoas doentes, de desempregados, de miseráveis, de desalentados, de refugiados, ... que não só tende a ganhar maiores proporções a partir da guerra; bem como, acirrar as tensões ideológicas que orbitam o universo dessas situações. Motivadas pelos discursos e narrativas dos grupos político-partidários extremistas, que tentam se reafirmar no mundo contemporâneo, elas criariam uma guerra dentro da guerra, exacerbando as diversas manifestações da violência.

Afinal, em tempos de guerra tudo se transforma em pretexto. Racismo. Misoginia. Sexismo. Homofobia. Intolerância religiosa. Aporofobia. De modo que recai sobre determinados indivíduos, especialmente as minorias sociais, a responsabilidade dos infortúnios, dos problemas, das dificuldades, dos insucessos. Como se as conjunturas se abstivessem da análise processual dos acontecimentos para simplesmente estabelecer a necessidade de culpar alguém, tomando por base apenas recortes desconexos e desalinhavados, sequencialmente, da realidade.  

Não percebem que esse movimento agrava, ainda mais, a paralisia imposta pela guerra. Quando a vida passa a ser atravessada pelos conflitos dessa grandeza, o improdutivo se estabelece e a morte ganha destaque pelas violências. Entretanto, a morte anda em círculos. Ela é a representação máxima da desordem, do retrocesso, da involução, no que diz respeito à potencialidade que é intrínseca ao ser humano e ao planeta. A morte nega o que somos, o que podemos. Não é à toa que guerras não fazem vitoriosos; pois, todos perdem.  

Olhando para os recentes acontecimentos, então, começo a entender que, de fato, a raça humana não aprendeu nada com a Segunda Guerra Mundial, haja vista a Guerra Fria. Ela só foi uma guerra de caráter ideológico, porque o mundo havia sido arrasado, empobrecido, destruído pelos horrores deflagrados entre 1939 e 1945. No entanto, ela prova que o mundo não se consternou, não se indignou, não se redimiu frente ao disparate da loucura em nome do poder.

A Guerra Fria permaneceu fomentando os mesmos equívocos, os mesmos delírios, as mesmas insanidades. Todos tinham medo das ogivas nucleares norte-americanas e soviéticas, porque o mundo estava na mira deles e na expectativa de quem poderia, de repente, acioná-los, mediante a fúria intransigente dos seus interesses geopolíticos. Algo que, no fundo, não distava em nada daquilo que levou a Segunda Guerra a ser o que foi.

E o fato de ela ter se exaurido em 1989, não significou necessariamente a extinção da ideologia de profunda rivalidade entre norte-americanos e russos. Foi só o peso das conjunturas de uma guerra incapaz de se arrastar por um tempo maior que a sua capacidade natural permitiria. Portanto, a chama da sua essência nunca se apagou e a prova se mostra, agora, em pleno século XXI, com a investida dos Russos sobre as antigas repúblicas que compunham o grande bloco da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), nos áureos tempos da Guerra Fria.

No entanto, vale ressaltar que a nostalgia dos russos é inútil. Por mais que seu ideário permaneça ativo, ele não é capaz de segurar os arroubos e avanços do tempo. O mundo mudou e, por consequência, os protagonistas globais, os interesses geopolíticos, o modo de guerrear e disputar espaços. As potências não são mais medidas pelo tamanho de seus territórios. Hoje, elas querem mostrar quem são, a força de suas identidades no campo das inovações científico-tecnológicas, o seu poder de persuasão e influência nos comportamentos e consumos da sociedade.   

Simplesmente, porque é aí que está a chave da prosperidade e da hegemonia. Guerras convencionais custam caro, muito caro, e não geram o retorno econômico esperado, na medida em que elas demandam tempo de reconstrução e de reorganização das áreas destruídas. Já as guerras contemporâneas, são atemporais, fluidas. É um processo de desconstrução e ressignificação contínuo e de alta velocidade. Porque elas buscam novidades que promovam modismos e remodelem os interesses sociais, gerando lucros extraordinários.

Como escreveu Eduardo Galeano, “A história é um profeta com o olhar voltado para trás: pelo que foi, e contra o que foi, anuncia o que será”. Assim, o conflito atual nos permite pensar, nos permite entender e olhar com mais discernimento e isenção das paixões. O mundo repete velhos erros por conta de uma resistência estúpida e arraigada do ser humano, porque se o bom senso e a objetividade prevalecessem, a obviedade de que o mundo gira e se transforma não permitiria esse erro crasso. Não permitia morticínios gratuitos.  Não permitiria tanto dinheiro jogado fora. Não permitiria tanta inutilidade raivosa.

No fim das contas, o cenário que se tem, agora, só faz ensinar que “A chuva que irriga os centros do poder imperialista afoga os vastos subúrbios do sistema. Do mesmo modo, e simetricamente, o bem-estar de nossas classes dominantes – dominantes para dentro, dominadas para fora – é a maldição de nossas multidões, condenadas a uma vida de bestas de carga” (Eduardo Galeano – As veias abertas da América Latina). O que em linhas gerais significa que “Na luta do bem contra o mal, é sempre o povo que morre”, porque “Nossa derrota esteve sempre implícita na vitória dos outros. Nossa riqueza sempre gerou nossa pobreza por nutrir a prosperidade alheia: os impérios e seus beleguins nativos” (Eduardo Galeano).