Só
faltou combinar com os russos!
Por
Alessandra Leles Rocha
Muita gente por aí cheia de
certeza, de convicção, sobre os rumos de 2022. Só faltou combinar com os
russos! E dessa vez não é só mera expressão, os garotos valentões de Moscou
decidiram fazer guerra e demonstrar força para o mundo. A partir daí tudo pode
acontecer e o imprevisível se agigantar de uma maneira ainda mais avassaladora.
Afinal, conflitos como dessa
magnitude, que estão se desenhando no horizonte, não tem prazo de duração. Podem
se arrastar dias, meses, e até anos, dado o potencial de seus desdobramentos em
se retroalimentarem. Não é uma guerra de nervos. É uma guerra com todos os
componentes teóricos e práticos que o mundo contemporâneo dispõe.
Acontece que, por experiências pregressas,
o mundo já sabe que o ponto de deflagração extrapola eventuais fronteiras
estabelecidas. Direta ou indiretamente as ondas de propagação dos eventos
alcançam o planeta como um todo e desestabilizam os arranjos preestabelecidos,
criando novas perspectivas conjunturais.
A grande questão é que tais
conjunturas terão que se acomodar sobre terrenos já minados por problemas novos
e antigos, desafios que ainda não foram efetivamente debelados ou, pelo menos,
mitigados, como é o caso da própria pandemia. Não dá para lidar com as
situações de maneira individualizada, compartimentalizada, uma de cada vez. Não,
é tudo junto e misturado.
E uma guerra, nessas alturas do
campeonato, não poderia ser pior. Ora, nem chegamos ainda ao ponto de nos colocarmos
no contexto de uma Pós-Pandemia, por exemplo. A instabilidade é total diante da
possibilidade de novas variantes, de novos picos de contaminação e letalidade,
de novo recrudescimento de medidas preventivas, enfim...
De modo que, as relações socioeconômicas
encontram-se em um movimento de desaceleração bastante cautelosa. O que
significa que o mundo não está em um momento de franca realização e prosperidade;
muito pelo contrário. E em meio a todos os efeitos da pandemia, nesses quase três
anos, cidades em diferentes pontos do planeta foram arrasadas, devastadas pelos
efeitos dos eventos extremos do clima.
Portanto, já temos uma legião de
pessoas doentes, de desempregados, de miseráveis, de desalentados, de
refugiados, ... que não só tende a ganhar maiores proporções a partir da guerra;
bem como, acirrar as tensões ideológicas que orbitam o universo dessas
situações. Motivadas pelos discursos e narrativas dos grupos político-partidários
extremistas, que tentam se reafirmar no mundo contemporâneo, elas criariam uma
guerra dentro da guerra, exacerbando as diversas manifestações da violência.
Afinal, em tempos de guerra tudo
se transforma em pretexto. Racismo. Misoginia. Sexismo. Homofobia. Intolerância
religiosa. Aporofobia. De modo que recai sobre determinados indivíduos,
especialmente as minorias sociais, a responsabilidade dos infortúnios, dos
problemas, das dificuldades, dos insucessos. Como se as conjunturas se
abstivessem da análise processual dos acontecimentos para simplesmente
estabelecer a necessidade de culpar alguém, tomando por base apenas recortes
desconexos e desalinhavados, sequencialmente, da realidade.
Não percebem que esse movimento
agrava, ainda mais, a paralisia imposta pela guerra. Quando a vida passa a ser
atravessada pelos conflitos dessa grandeza, o improdutivo se estabelece e a
morte ganha destaque pelas violências. Entretanto, a morte anda em círculos. Ela
é a representação máxima da desordem, do retrocesso, da involução, no que diz
respeito à potencialidade que é intrínseca ao ser humano e ao planeta. A morte
nega o que somos, o que podemos. Não é à toa que guerras não fazem vitoriosos;
pois, todos perdem.
Olhando para os recentes
acontecimentos, então, começo a entender que, de fato, a raça humana não aprendeu
nada com a Segunda Guerra Mundial, haja vista a Guerra Fria. Ela só foi uma
guerra de caráter ideológico, porque o mundo havia sido arrasado, empobrecido, destruído
pelos horrores deflagrados entre 1939 e 1945. No entanto, ela prova que o mundo
não se consternou, não se indignou, não se redimiu frente ao disparate da
loucura em nome do poder.
A Guerra Fria permaneceu
fomentando os mesmos equívocos, os mesmos delírios, as mesmas insanidades. Todos
tinham medo das ogivas nucleares norte-americanas e soviéticas, porque o mundo
estava na mira deles e na expectativa de quem poderia, de repente, acioná-los,
mediante a fúria intransigente dos seus interesses geopolíticos. Algo que, no
fundo, não distava em nada daquilo que levou a Segunda Guerra a ser o que foi.
E o fato de ela ter se exaurido
em 1989, não significou necessariamente a extinção da ideologia de profunda rivalidade
entre norte-americanos e russos. Foi só o peso das conjunturas de uma guerra incapaz
de se arrastar por um tempo maior que a sua capacidade natural permitiria. Portanto,
a chama da sua essência nunca se apagou e a prova se mostra, agora, em pleno
século XXI, com a investida dos Russos sobre as antigas repúblicas que
compunham o grande bloco da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS),
nos áureos tempos da Guerra Fria.
No entanto,
vale ressaltar que a nostalgia dos russos é inútil. Por mais que seu ideário
permaneça ativo, ele não é capaz de segurar os arroubos e avanços do tempo. O mundo
mudou e, por consequência, os protagonistas globais, os interesses
geopolíticos, o modo de guerrear e disputar espaços. As potências não são mais
medidas pelo tamanho de seus territórios. Hoje, elas querem mostrar quem são, a
força de suas identidades no campo das inovações científico-tecnológicas, o seu
poder de persuasão e influência nos comportamentos e consumos da sociedade.
Simplesmente,
porque é aí que está a chave da prosperidade e da hegemonia. Guerras convencionais
custam caro, muito caro, e não geram o retorno econômico esperado, na medida em
que elas demandam tempo de reconstrução e de reorganização das áreas destruídas.
Já as guerras contemporâneas, são atemporais, fluidas. É um processo de
desconstrução e ressignificação contínuo e de alta velocidade. Porque elas buscam
novidades que promovam modismos e remodelem os interesses sociais, gerando
lucros extraordinários.
Como
escreveu Eduardo Galeano, “A história é
um profeta com o olhar voltado para trás: pelo que foi, e contra o que foi,
anuncia o que será”. Assim, o conflito atual nos permite pensar, nos
permite entender e olhar com mais discernimento e isenção das paixões. O mundo
repete velhos erros por conta de uma resistência estúpida e arraigada do ser
humano, porque se o bom senso e a objetividade prevalecessem, a obviedade de
que o mundo gira e se transforma não permitiria esse erro crasso. Não permitia morticínios
gratuitos. Não permitiria tanto dinheiro
jogado fora. Não permitiria tanta inutilidade raivosa.
No fim
das contas, o cenário que se tem, agora, só faz ensinar que “A chuva que irriga os centros do poder
imperialista afoga os vastos subúrbios do sistema. Do mesmo modo, e
simetricamente, o bem-estar de nossas classes dominantes – dominantes para
dentro, dominadas para fora – é a maldição de nossas multidões, condenadas a
uma vida de bestas de carga” (Eduardo Galeano – As veias abertas da América
Latina). O que em linhas gerais significa que “Na luta do bem contra o mal,
é sempre o povo que morre”, porque “Nossa
derrota esteve sempre implícita na vitória dos outros. Nossa riqueza sempre
gerou nossa pobreza por nutrir a prosperidade alheia: os impérios e seus
beleguins nativos” (Eduardo Galeano).