segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

Sobre nós e nossos Infernos


Sobre nós e nossos Infernos

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Parece que o mundo entrou mesmo em “inferno astral”! Instalada uma pandemia decorrente de um vírus, até então, desconhecido, eis que uma guerra, sem razão de ser, foi deflagrada no leste europeu. Sem contar todas as catástrofes climáticas recentes ocorridas em diferentes partes do planeta.

De modo que esse “inferno”, então, vem transformando os cenários, fechando ciclos, desconstruindo paradigmas, para um novo alinhamento da humanidade sob diferentes aspectos.

Mas, até que tudo se acomode, muita água vai rolar por debaixo da ponte da história. E nenhuma dessas circunstâncias chegou encontrando um terreno organizado e preparado para os solavancos que elas inevitavelmente promoveriam. Afinal, o inesperado não manda recado de que está chegando, simplesmente, ele chega.

Aos habituados a fazer o dever de casa bem feito, de cumprirem as obrigações regiamente, de planejarem com antecedência e previdência, os desafios são sempre menos amargos.

Porém, para aqueles que são o contraponto disso, os tempos tendem a ser, de fato, infernais, no sentido mais horroroso e diabólico da palavra. Infelizmente, o Brasil faz parte desse grupo.

Quando fomos surpreendidos pela pandemia, o desmantelamento das estruturas institucionais e seus serviços já estava em curso, por conta da proposta de política pública e de economia delineado pelo atual governo federal.

Acontece que não houve tempo hábil, nem mesmo, para acomodar mudanças tão radicais e impactantes, antes que a pandemia e seus sucessivos desdobramentos apresentassem suas credenciais. O tsunami dos acontecimentos varreu tudo de uma vez e deslocou quaisquer possibilidades de reorganização, deixando o cotidiano transitar sobre escombros dessa imensa confusão.

O resultado desse processo, as estatísticas informam sem deixar dúvidas. O país que já não crescia, apresentou estagnação em diversos setores, puxando o Produto Interno Bruto (PIB) para abaixo das expectativas. A inflação ressurgiu das cinzas com toda a sua voracidade. A política de juros teve que entrar em cena, elevando os seus patamares.

Assim, enquanto centenas de milhares de pessoas morreram (e centenas, ainda, morrem diariamente) pela COVID-19, em consequência da má gestão da pandemia pelo governo, que ficou registrada devidamente nos anais da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), instaurada pelo Senado da República, outros milhões vêm sendo expostos gradativamente aos infortúnios e mazelas decorrentes dos vieses da má gestão da economia pelo governo. 

Acontece que, no meio dessa situação, eventos extremos do clima trouxeram calamidade e destruição para diversos municípios, em diferentes estados brasileiros, enovelando ainda mais os problemas socioeconômicos, os quais já vinham sendo experimentados.

Não, não foi apenas a situação de desalento e de perdas materiais e humanas. Tais eventos não apenas destruíram vias importantes de transporte e escoamento de mercadorias, tendo em vista que a malha rodoviária nacional é que garante quase a totalidade desse fluxo; mas, também, e de maneira total ou parcial, áreas de produção e armazenamento agrícola, estações de tratamento de água e esgoto, pontes, barragens,...

Promovendo, assim, impactos de ordem econômica bastante significativos, por demandarem longos prazos de recuperação e reestabelecimento do equilíbrio. De modo que as estatísticas dos cenários nacionais ganharam contornos ainda mais sérios e preocupantes.

Mas, ninguém cogitava que uma guerra internacional estaria por se efetivar e sacudir a poeira, como mostram os veículos de informação e comunicação, nos últimos cinco dias. As investidas russas sobre o território da Ucrânia elevaram as tensões a tal ponto que as respostas diplomáticas internacionais tiveram que ser proporcionais à gravidade da situação.

O que significa que os mercados, em breve, terão a dimensão dos desdobramentos sobre a economia do mundo. Especialmente, no que diz respeito ao que rege os interesses econômicos russos no contexto global, tais como petróleo, combustíveis, commodities e relações cambiais.

No caso do Brasil, então, as sanções impostas à Rússia pela diplomacia internacional representarão impactos aos combustíveis, fertilizantes (o que eleva o preço do trigo e seus derivados) e ao sistema financeiro que poderá resultar em uma disparada, ainda maior, da inflação.

Em suma, o que estava ruim, agora, vai ficar péssimo. E quem mais sofre nesse cenário são as populações mais vulneráveis e desassistidas. De modo que se há um aprendizado extremamente relevante nesse momento é o fato de as conjunturas nos chamarem a atenção para a impossibilidade de levar a vida com displicência, sem planejamentos, sem responsabilidade, sem previdência.

O mundo contemporâneo não cabe amadores. Para viver nele é preciso ser expert, ou seja, profissional altamente qualificado e capacitado para lidar com tantas adversidades simultâneas. A realidade de curto prazo que se vislumbra para o Brasil, então, não é ruim apenas pelo fato da guerra em si; mas, por este possibilitar o aprofundamento do buraco socioeconômico em que o país já se encontra.

Afinal, o contexto globalizante, analisado tanto em relação à pandemia quanto à guerra, demanda uma recuperação coletiva que seja suficientemente capaz de se refletir nos atores envolvidos de maneira individual.

Ou seja, não adianta que alguns se recuperem mais rápido do que outros, considerando as teias sociais e comerciais estabelecidas. As economias precisar estar minimamente equilibradas para o processo fluir.

O Brasil está, portanto, sendo confrontado direta e objetivamente pelo modo como vem construindo suas perspectivas governamentais e políticas. Descobrindo como é jogar um jogo que acontece simultaneamente em dois tabuleiros distintos, um nacional e outro global, os quais precisam se compatibilizar a fim de gerar um resultado minimamente positivo. Um jogo em que prevalece a razão e não, a emoção.

Afinal, segundo Anthony Giddens, “A consciência humana está condicionada em uma interação dialética entre sujeito e objeto, na qual o homem molda ativamente o mundo em que vive ao mesmo tempo em que é moldado por ele” (Capitalismo e Teoria Social Moderna, 1971, p.21).

Tudo porque a contemporaneidade vem exigindo cada vez mais da participação humana uma consciência factual do que meramente uma encenação ficcional.

Portanto, estamos diante de uma situação conjuntural em que se torna necessário o protagonismo estadista. Saber o que quer, porque quer e como fazer para alcançar tal objetivo. Algo que demanda preparo, conhecimento, capacidade dialógica e de articulação; mas, que a poucos pertence.

Daí, voltamos ao marco zero das nossas escolhas e percebemos o quão delicado é não levá-las a sério, pois nunca se sabe o dia de amanhã.  Talvez, por isso, é que os textos judaicos nos alertem para o fato de que “Os homens são criadores do seu próprio inferno”.