terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

O alto custo da alienação


O alto custo da alienação

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Cada dia mais me convenço de que a contemporaneidade nos tirou a capacidade de olhar além do visível, de ler as entrelinhas, de lidar com a realidade de maneira mais franca e objetivamente. E isso em todos os planos, de todas as formas. Como se tivéssemos sido enovelados por uma trama de alienações. Algo que não só é danoso; mas, extremamente, perigoso.  Aliás, um dos exemplos clássicos desse fenômeno diz respeito à nossa própria saúde.

Entre tantas discussões sobre agrotóxicos 1 e contaminações por garimpos 2 a estampar as manchetes dos veículos de informação e comunicação, nacionais e estrangeiros, o fato que chama atenção permanece ainda pouco visibilizado. Discute-se os riscos desses produtos químicos em franca utilização. Discute-se os prejuízos ambientais por eles desencadeados. Discute-se o adoecimento de diversas populações.

No entanto, ninguém puxou o fio da história, apesar dessas considerações, para dizer que temos enviesado o olhar diante da saúde pública. Ora, pessoas adoecem. Isso é parte integrante e integrada da condição biológica. Portanto, independentemente da idade, gênero, status social, religião, escolaridade, enfim. E as causas são as mais diversas. Genéticas. Fisiológicas. Anatômicas. Por agentes infectocontagiosos. Por excesso ou intolerância a alimentos e fármacos. Por plantas ou animais. ...

Mas, de repente, apesar de todos os avanços nas Ciências Médicas e nas Biotecnologias, um olhar raso e, até certo ponto, negligente, não tem permitido que os diagnósticos alcancem as raízes do problema. Como se uma chave de identificação não fosse levada a termo, da maneira que seria o ideal ou o esperado. Paramos em certo ponto da investigação, dando como suficiente, quando na verdade não é.

De modo que, se por um instante começássemos a pensar sobre a quantidade de doenças raras, de alergias, de intolerâncias, de distúrbios, que vêm emergindo nas populações sem maiores explicações e precisão diagnóstica e de tratamento, milhares de pulgas se alojariam nas nossas orelhas. Afinal, temos estado cada vez mais expostos não apenas aos agentes contaminantes e poluidores convencionais; mas, a uma infinidade de outras novas substâncias.

Acontece que o corpo humano foi criado para realizar a degradação e metabolização de um conjunto de substâncias que ele reconhece imediatamente ao entrar em contato. Quando surgem novidades no radar, ele passa a desdobrar um esforço fisiológico e bioquímico descomunal, o qual não vai resultar em sucesso.

Portanto, essas moléculas desconhecidas ficam circulando pelo organismo, se agregando por efeito cumulativo em diferentes órgãos e tecidos – quando da intensidade e da periodicidade da exposição a elas –, até que comecem a produzir efeitos patológicos importantes e, muitas vezes, irreversíveis e letais.

Então, uma vez ciente desse processo, o ser humano precisa ficar atento ao seu cotidiano. Infelizmente, a água, o ar, o solo e os alimentos que são produzidos, natural e artificialmente, estão sob ataque direto de agentes químicos importantes, os quais estão por aí, graças aos interesses político-econômicos que vigoram no Brasil e no mundo.

Divulgado com frequência pelos veículos de informação e comunicação, há lobbies em todos os setores da política, defendendo ideias e produtos que vão exatamente na contramão dos interesses da população, inclusive, no campo da saúde. Há lobby do agronegócio, da indústria de armas, dos planos de saúde, e por aí vai.

Todos querendo exercer influência e participação no processo legislativo, a fim de interferir diretamente na elaboração de políticas públicas que afetam toda a população. A questão é que não se sabe exatamente a extensão do trabalho lobista.

Desse modo, o que se tem como ponto de partida para analisar, subtraindo-se qualquer acaso ou coincidência, é o fato de que as doenças têm sido colocadas, na maioria das vezes, no campo de sintomas genéricos e passíveis de serem encontrados em diversas delas.

A verdade é que não se vê ninguém estabelecendo uma conexão com situações de risco ambiental, tais como agrotóxicos e contaminações por garimpos. É como se no ato da anamnese, por exemplo, que é a construção do histórico clínico do paciente pelo profissional de saúde, esse tipo de questionamento fosse, de algum modo, desconsiderado.

Aliás, foi o que se tentou fazer no Japão, no caso de Minamata. Durante décadas, uma importante corporação química despejou centenas de toneladas de metilmercúrio, na baía de Minamata, afetando a população local que consumia peixes e moluscos provenientes dali. Tendo em vista que os sintomas inicialmente eram sutis – dor de cabeça, irritabilidade, fadiga, falta de sensibilidade nos braços e pernas, e dificuldade de deglutição – e poderiam ser ligados a diversas doenças, demorou-se mais de uma década para que se compreendesse o que realmente acontecia.  

Mas, através do efeito cumulativo do metilmercúrio, ao longo de uma década, quando os sintomas evoluíram para distúrbios sensoriais, danos à visão e audição, paralisia e morte, é que os médicos conseguiram estabelecer a relação entre a contaminação e o adoecimento daquelas pessoas e elas puderam reivindicar, por via judicial, os seus direitos. Trata-se de um caso tão emblemático que, em agosto de 2017, entrou em vigor a Convenção de Minamata, pela Organização das Nações Unidas (ONU).   

Ela visa proteger a saúde humana e o meio ambiente dos efeitos adversos do mercúrio, provocados pelas “liberações antropogênicas em todo o seu ciclo de vida: mineração, importação e exportação, produtos e processos, emissões para a atmosfera, liberações para o solo e a água, locais contaminados, gerenciamento de resíduos e muitos outros. [...]Desde então, 132 partes de todo o mundo têm trabalhado em conjunto para interromper o comércio, aumentar a sensibilização pública, desenvolver capacidades institucionais e criar e produtos sem mercúrio” 3.

Isso significa que a humanidade já dispõe de fato concreto, para expandir seu olhar e lançar seus esforços para combater tais absurdos. Além de Minamata, outros episódios já levaram os culpados aos tribunais e indenizações vultosas foram pagas as vítimas ou seus descendentes.

Porque não é só o mercúrio, ou o cádmio, ou o chumbo, ou o amianto, ou os diversos elementos radioativos, ... há milhares de agrotóxicos, de poluentes industriais, de resíduos de hidrocarboneto, sendo utilizados e lançados inadvertidamente, adoecendo e matando milhares de pessoas, sem que elas saibam as verdadeiras razões que levaram a esse processo.

Assim, além de subestimadas, as estatísticas de óbito divulgadas podem estar impregnadas por equívocos, ou vieses, em razão do desconhecimento quanto à verdadeira causa mortis.    

É preciso entender, de uma vez por todas, que o silêncio proposital em torno da verdade é letal. Na medida em que ele não permite a interrupção da exposição a esses contaminantes pela população e uma condução apropriada em relação ao tratamento das doenças por eles desencadeadas.

Isso significa que, no caso brasileiro, estamos diante de um flagrante atentado à nossa legislação no que tange ao artigo 196 4, da Constituição Federal de 1988, e ao artigo 132 5, do Código Penal; bem como, aos tratados e acordos internacionais que o país é signatário, inclusive a Convenção de Minamata.  

Abraham Lincoln já dizia que “Pecar pelo silêncio, quando se deveria protestar, transforma homens em covardes”.  Parece que urge, então, um posicionamento humanitário em relação a esse morticínio, o qual vem passando despercebido com a ajuda consciente (e inconsciente) de uma expressiva parcela da população; sobretudo, aqueles que têm o poder de influenciar, de decidir, de agir.

Porque o que está em jogo, não são apenas as perdas humanas; mas, todo um lastro de sofrimento, de dor, de incompreensão, de desestruturação social e de outros problemas, que esse silêncio covarde ajuda a consolidar. Talvez, por isso, Maomé tenha deixado a seguinte e oportuna reflexão, “A pior forma de covardia é testar o poder na fraqueza do outro”. Sendo assim...



4 Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. (CF, 1988).

5 Art. 132. Expor a vida ou a saúde de outrem a perigo direto e iminente. (Código Penal – Decreto-lei 2848/40)