O
alto custo da alienação
Por
Alessandra Leles Rocha
Cada dia mais me convenço de que
a contemporaneidade nos tirou a capacidade de olhar além do visível, de ler as
entrelinhas, de lidar com a realidade de maneira mais franca e objetivamente. E
isso em todos os planos, de todas as formas. Como se tivéssemos sido enovelados
por uma trama de alienações. Algo que não só é danoso; mas, extremamente,
perigoso. Aliás, um dos exemplos clássicos
desse fenômeno diz respeito à nossa própria saúde.
Entre tantas discussões sobre
agrotóxicos 1 e contaminações por
garimpos 2 a estampar as manchetes dos veículos de
informação e comunicação, nacionais e estrangeiros, o fato que chama atenção
permanece ainda pouco visibilizado. Discute-se os riscos desses produtos químicos
em franca utilização. Discute-se os prejuízos ambientais por eles desencadeados.
Discute-se o adoecimento de diversas populações.
No entanto, ninguém puxou o fio
da história, apesar dessas considerações, para dizer que temos enviesado o
olhar diante da saúde pública. Ora, pessoas adoecem. Isso é parte integrante e integrada
da condição biológica. Portanto, independentemente da idade, gênero, status
social, religião, escolaridade, enfim. E as causas são as mais diversas. Genéticas.
Fisiológicas. Anatômicas. Por agentes infectocontagiosos. Por excesso ou intolerância
a alimentos e fármacos. Por plantas ou animais. ...
Mas, de repente, apesar de todos
os avanços nas Ciências Médicas e nas Biotecnologias, um olhar raso e, até
certo ponto, negligente, não tem permitido que os diagnósticos alcancem as raízes
do problema. Como se uma chave de identificação não fosse levada a termo, da
maneira que seria o ideal ou o esperado. Paramos em certo ponto da investigação,
dando como suficiente, quando na verdade não é.
De modo que, se por um instante começássemos
a pensar sobre a quantidade de doenças raras, de alergias, de intolerâncias, de
distúrbios, que vêm emergindo nas populações sem maiores explicações e precisão
diagnóstica e de tratamento, milhares de pulgas se alojariam nas nossas
orelhas. Afinal, temos estado cada vez mais expostos não apenas aos agentes contaminantes
e poluidores convencionais; mas, a uma infinidade de outras novas substâncias.
Acontece que o corpo humano foi
criado para realizar a degradação e metabolização de um conjunto de substâncias
que ele reconhece imediatamente ao entrar em contato. Quando surgem novidades
no radar, ele passa a desdobrar um esforço fisiológico e bioquímico descomunal,
o qual não vai resultar em sucesso.
Portanto, essas moléculas desconhecidas
ficam circulando pelo organismo, se agregando por efeito cumulativo em
diferentes órgãos e tecidos – quando da intensidade e da periodicidade da
exposição a elas –, até que comecem a produzir efeitos patológicos importantes
e, muitas vezes, irreversíveis e letais.
Então, uma vez ciente desse
processo, o ser humano precisa ficar atento ao seu cotidiano. Infelizmente, a
água, o ar, o solo e os alimentos que são produzidos, natural e artificialmente,
estão sob ataque direto de agentes químicos importantes, os quais estão por aí,
graças aos interesses político-econômicos que vigoram no Brasil e no mundo.
Divulgado com frequência pelos veículos
de informação e comunicação, há lobbies
em todos os setores da política, defendendo ideias e produtos que vão exatamente
na contramão dos interesses da população, inclusive, no campo da saúde. Há lobby do agronegócio, da indústria de
armas, dos planos de saúde, e por aí vai.
Todos querendo exercer influência
e participação no processo legislativo, a fim de interferir diretamente na
elaboração de políticas públicas que afetam toda a população. A questão é que
não se sabe exatamente a extensão do trabalho lobista.
Desse modo, o que se tem como ponto
de partida para analisar, subtraindo-se qualquer acaso ou coincidência, é o
fato de que as doenças têm sido colocadas, na maioria das vezes, no campo de
sintomas genéricos e passíveis de serem encontrados em diversas delas.
A verdade é que não se vê ninguém
estabelecendo uma conexão com situações de risco ambiental, tais como agrotóxicos
e contaminações por garimpos. É como se no ato da anamnese, por exemplo, que é
a construção do histórico clínico do paciente pelo profissional de saúde, esse
tipo de questionamento fosse, de algum modo, desconsiderado.
Aliás, foi o que se tentou fazer
no Japão, no caso de Minamata. Durante décadas, uma importante corporação
química despejou centenas de toneladas de metilmercúrio, na baía de Minamata, afetando
a população local que consumia peixes e moluscos provenientes dali. Tendo em
vista que os sintomas inicialmente eram sutis – dor de cabeça, irritabilidade,
fadiga, falta de sensibilidade nos braços e pernas, e dificuldade de deglutição
– e poderiam ser ligados a diversas doenças, demorou-se mais de uma década para
que se compreendesse o que realmente acontecia.
Mas, através do efeito cumulativo
do metilmercúrio, ao longo de uma década, quando os sintomas evoluíram para distúrbios
sensoriais, danos à visão e audição, paralisia e morte, é que os médicos conseguiram
estabelecer a relação entre a contaminação e o adoecimento daquelas pessoas e
elas puderam reivindicar, por via judicial, os seus direitos. Trata-se de um
caso tão emblemático que, em agosto de 2017, entrou em vigor a Convenção de
Minamata, pela Organização das Nações Unidas (ONU).
Ela visa proteger a saúde humana
e o meio ambiente dos efeitos adversos do mercúrio, provocados pelas “liberações antropogênicas em todo o seu
ciclo de vida: mineração, importação e exportação, produtos e processos,
emissões para a atmosfera, liberações para o solo e a água, locais
contaminados, gerenciamento de resíduos e muitos outros. [...]Desde então, 132
partes de todo o mundo têm trabalhado em conjunto para interromper o comércio,
aumentar a sensibilização pública, desenvolver capacidades institucionais e
criar e produtos sem mercúrio” 3.
Isso significa que a humanidade
já dispõe de fato concreto, para expandir seu olhar e lançar seus esforços para
combater tais absurdos. Além de Minamata, outros episódios já levaram os
culpados aos tribunais e indenizações vultosas foram pagas as vítimas ou seus
descendentes.
Porque não é só o mercúrio, ou o
cádmio, ou o chumbo, ou o amianto, ou os diversos elementos radioativos, ... há
milhares de agrotóxicos, de poluentes industriais, de resíduos de
hidrocarboneto, sendo utilizados e lançados inadvertidamente, adoecendo e
matando milhares de pessoas, sem que elas saibam as verdadeiras razões que
levaram a esse processo.
Assim, além de subestimadas, as estatísticas
de óbito divulgadas podem estar impregnadas por equívocos, ou vieses, em razão
do desconhecimento quanto à verdadeira causa
mortis.
É preciso entender, de uma vez
por todas, que o silêncio proposital em torno da verdade é letal. Na medida em
que ele não permite a interrupção da exposição a esses contaminantes pela
população e uma condução apropriada em relação ao tratamento das doenças por
eles desencadeadas.
Isso significa que, no caso
brasileiro, estamos diante de um flagrante atentado à nossa legislação no que
tange ao artigo 196 4, da
Constituição Federal de 1988, e ao artigo 132 5,
do Código Penal; bem como, aos tratados e acordos internacionais que o país é
signatário, inclusive a Convenção de Minamata.
Abraham Lincoln já dizia que “Pecar pelo silêncio, quando se deveria
protestar, transforma homens em covardes”. Parece que urge, então, um posicionamento
humanitário em relação a esse morticínio, o qual vem passando despercebido com
a ajuda consciente (e inconsciente) de uma expressiva parcela da população;
sobretudo, aqueles que têm o poder de influenciar, de decidir, de agir.
Porque o que está em jogo, não
são apenas as perdas humanas; mas, todo um lastro de sofrimento, de dor, de
incompreensão, de desestruturação social e de outros problemas, que esse silêncio
covarde ajuda a consolidar. Talvez, por isso, Maomé tenha deixado a seguinte e
oportuna reflexão, “A pior forma de
covardia é testar o poder na fraqueza do outro”. Sendo assim...
1 Algumas
leituras indicadas: https://g1.globo.com/economia/agronegocios/noticia/2021/05/25/agrotoxico-mais-usado-do-brasil-esta-associado-a-503-mortes-infantis-por-ano-revela-estudo.ghtml
2 Algumas
leituras indicadas:
3 https://www.unep.org/pt-br/noticias-e-reportagens/reportagem/aniversario-da-convencao-de-minamata-marca-combate-ao-mercurio#:~:text=A%20Conven%C3%A7%C3%A3o%20de%20Minamata%20ajuda,e%20potencialmente%20milh%C3%B5es%20de%20vidas.
4
Art. 196. A saúde é direito de todos
e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem
à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e
igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. (CF,
1988).
5 Art. 132. Expor a vida ou a saúde de outrem a perigo direto e iminente. (Código Penal – Decreto-lei 2848/40)