COP27,
empobrecimento, fome, demissões em massa ... O planeta de 8 bilhões de pessoas
Por
Alessandra Leles Rocha
Uma infância registrada pela
montagem de inúmeros quebra-cabeças me fez entender que a vida se faz no
mosaico contínuo de peças que se conectam. De modo que, de um jeito ou de
outro, é impossível romper com a sua lógica indissociável. Os fatos, os acontecimentos,
tudo se encontra ligado por uma ponte de significância, de complementariedade
de sentido, ainda que à revelia das nossas compreensões ou capacidades de
percepção imediata.
Enquanto a 27ª Conferência das
Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP27) chega ao seu fim, no Egito, ao
contrário do que muitos acreditam, o grande protagonista das discussões
continua sendo o ser humano. Nenhuma mesa de negociação, nacional ou
internacional, deveria acontecer sem que a presença humana fosse considerada o
substrato da argumentação, independentemente do assunto que seja objeto de
tratativa.
Depende da raça humana todos os
rumos do planeta Terra; afinal, já são 8 bilhões de indivíduos ocupando 1/3 do
seu espaço geográfico. Portanto, pessoas que precisam que a sua dignidade seja
mantida através do acesso à educação, à saúde, à alimentação, ao trabalho, à moradia,
ao transporte, ao lazer, à segurança, a um meio ambiente sustentável e
equilibrado, em todas as suas etapas de vida. O que implica necessariamente em
um movimento permanente de acomodação dessas demandas com todas as políticas socioeconômicas
empenhadas por cada país.
Acontece que não é necessário ser
nenhum gênio para saber que nem tudo são flores nesse processo! Há aproximadamente
um ano, o Relatório sobre as Desigualdades Mundiais, elaborado pelo Laboratório
das Desigualdades Mundiais que integra a Escola de Economia de Paris, mostrou,
por exemplo, o “Brasil como ‘um dos
países mais desiguais do mundo’”, considerando que “os 10% mais ricos no Brasil ganham quase 59% da renda nacional total,
os 50% mais pobres ganham 29 vezes menos do que os 10% mais ricos, a metade brasileira
mais pobre menos de 1% da riqueza do país e o 1% mais rico possui quase a
metade da fortuna patrimonial brasileira” 1.
De modo que esse panorama nos dá
uma perspectiva importante acerca de como o fenômeno das Revoluções Industriais,
ocorridas a partir da segunda metade do século XVIII, criou um mundo de ilusão
fincado sobre as desigualdades reais. Todas as promessas e esperanças sociais
projetadas nesse movimento, que veio cunhando ao longo dos séculos uma nova
ordem para as relações socioeconômicas, na verdade nunca esteve acessível à
grande massa que impulsiona as suas engrenagens.
Enquanto a industrialização
promoveu a usurpação e a dilapidação dos recursos naturais para conseguir
ampliar e satisfazer as demandas produtivas, ela fez o mesmo com os contingentes
de mão de obra, expondo-os à precarização de seus trabalhos, à insalubridade física
e mental e à disparidade entre o salário pago e o valor daquilo que é
produzido. Isso significa que embora participem ativamente da construção e da
consolidação da sociedade de consumo, essa gigantesca fatia da pirâmide social
não consegue o acesso para ser parte dela.
Essas pessoas correm desesperadamente
em busca da sua sobrevivência cotidiana. O sistema produtivo que as absorve, ou
renega, trabalha com extrema crueldade e perversidade para que elas não tenham
tempo ou condições de desfrutar dos resultados do seu próprio trabalho. Elas estão
sempre muitos passos atrás da própria tecnologia e ciência que verte do seu
esforço. Seja no campo dos bens, produtos e serviços, seja nos avanços médicos,
seja na satisfação da sua segurança alimentar, enfim... E quando os eventos
extremos do clima decidem arrasar o planeta, em resposta a tudo o que o sistema
produtivo lhe impôs, é a vida delas que está linha de frente, submetidas aos piores
impactos e tragédias, pela fragilidade imposta à sua condição habitacional.
Mas, mergulhando um pouco mais
fundo nessa realidade, eis que, infelizmente, nos deparamos com a persistente
manifestação do trabalho análogo à escravidão. De maneira sutil ou direta, fato
é que, para manter as regalias, os privilégios e os lucros do sistema produtivo
global, uma parcela da humanidade não se constrange em submeter pessoas a tais
condições. O trabalho análogo à escravidão vem sendo recorrente nas mais
diversas áreas de trabalho, ao redor do planeta, enquanto a opulência e o poder
desfilam sob aplausos sem que se questione as bases que os sustentam. Na verdade,
como sempre aconteceu no curso da história humana sobre a Terra.
Por isso, a notícia de que
grandes empresas, lideradas por multimilionários, têm feito demissões em massa
e proposto aos funcionários remanescentes a vergonhosa proposta de trabalhar exaustivas
jornadas para compensar a insuficiência numérica dos colegas 2, merece ser discutida com atenção. Paira
no ar um risco iminente de que essas práxis se tornem exemplos a serem
seguidos, especialmente, em países onde a legislação trabalhista seja frágil e
inconsistente para amparar os trabalhadores.
Está claro que o que está sendo
colocado em discussão é que o lucro não pode ser compatibilizado com o ser
humano, e que este pode ser submetido aos extremos da sua insalubridade física e
mental, em nome do desenvolvimento e do progresso. É possível perceber, então,
que estamos à beira de um verdadeiro caos, muito antes do que se imagina. O recrudescimento
da precarização do trabalho e da insuficiência dos salários para uma gigantesca
parcela da população mundial, induz as pessoas a se submeterem a tais condições
em nome da sobrevivência, sem dimensionarem à sua própria capacidade de
resistir aos efeitos da indignidade humana.
Embora tenha dito no início dessa reflexão que o ser humano é protagonista das discussões nacionais e internacionais, não necessariamente isso aponta para a direção correta das suas demandas, dos seus interesses, da sua humanidade. Entre falas, relatórios, debates, fóruns, aos que ainda insistem em não entender, no frigir dos ovos o que temos diante dos olhos é a mais absoluta desimportância do ser humano, na sua essência, na sua condição existencial. Em uma linha de prioridades, ele está sendo alocado, cada vez mais, no final de todas as filas para que não represente prejuízo ao poder capital. Assim, ele vaga sem destino, sem grandes expectativas, na torcida para que alguém se condoa com os seus sofrimentos, que alguém se comova com a sua realidade.