quinta-feira, 17 de novembro de 2022

Será esse o Auto da Santa Inquisição contemporânea?


Será esse o Auto da Santa Inquisição contemporânea?

 

 Por Alessandra Leles Rocha

 

O título da matéria é “Lula larga na contramão do que levou ao sucesso de seus governos no combate à pobreza” 1. Então, me parece oportuno refletir a partir da própria incongruência presente na referida fala. Me parece evidente a construção de uma Santa Inquisição, sob moldes contemporâneos, para condenar e punir o Presidente da República eleito, desde que ele anunciou o seu retorno ao cenário político-partidário.

Pois é, há quem queira sim, lançar sobre seus ombros uma avalanche de culpas em relação ao que se mostrou ruim e problemático em termos de governança, especialmente no período exercido pela sua sucessora e companheira de partido. Como se não coubesse uma dissociação lógica e distinta entre os respectivos governos. Afinal, a responsabilidade que lhe cabe se refere somente ao período de 2003 a 2010.

Mas, observem com atenção, o que diz a própria imprensa: “sucesso de seus governos no combate à pobreza”. Bem, só tem sucesso quem se dispõe a fazer, quem encontra meios adequados para fazer, quem acredita na importância do que faz. Como afirmou Michael Jordan, “eu perdi mais de 9 mil tiros livres em minha carreira. Eu perdi quase 300 jogos. Em 26 vezes eu tive a bola do jogo e perdi. Eu falhei uma e outra vez em minha vida. E é por isso que eu consegui”.

Portanto, se houve sucesso é porque a economia foi pensada e estruturada de maneira equilibrada, as políticas econômicas estavam bem alinhavadas, havendo previsibilidade, segurança e responsabilidade. O que significa que os atores envolvidos não se mostraram doidivanas ensandecidos. Tinham foco, tinham planejamento, tinham compromisso com a estabilidade.

Acontece que lá se foram 12 anos e muita água rolou por debaixo da ponte, dentro e fora da geografia brasileira. De modo que houve sim, uma desconstrução inevitável da realidade socioeconômica, fazendo o Brasil descer a ladeira desgovernado, computando perdas graves nos mais diferentes setores e interesses da população. E muito desse movimento se deu, nos últimos quatro anos; mas, não por obra e graça da Pandemia da COVID-19, como tornou-se praxe afirmar.

A guinada de rumos que tomou o Brasil, a partir da ascensão da ultradireita, promoveu um terremoto nas estruturas institucionais e nunca se gastou tanto e mal como nesse momento recente da história nacional. O desmantelamento dos órgãos e autarquias gerou o mau uso do dinheiro público e os investimentos se perderam no profundo desconhecimento das prioridades, das urgências; mas, sobretudo, da manutenção da própria funcionalidade governamental.

Acontece que o Legislativo Federal, infelizmente, se omitiu no seu papel fundamental de fiscalizador das ações realizadas pelo governo. A tal ponto, que se permitiu aprovar orçamentos absurdos, desenhados de maneira afrontosa à chamada Lei de Responsabilidade Fiscal e que acabaram implodindo o teto de gastos públicos, sem que gerassem resultados positivos para o país e sua população.

Pois é, eles se permitiram avalizar uma gestão econômica sem pé e nem cabeça! Foram aprovando gastos sem o menor pudor, mesmo tendo total consciência dos desdobramentos que isso resultaria em termos de insuficiência de recursos para a manutenção das engrenagens públicas. Se permitiram, por exemplo, receber uma Lei de Diretrizes Orçamentárias para 2023 totalmente estapafúrdia, formulada de maneira tão irresponsável e equivocada que deixou de fora questões de ordem constitucional para contemplar supérfluos de natureza pouco conhecida. Mas, sobre isso os inquisidores contemporâneos se abstêm de falar!

Então, eu pergunto, será mesmo que o Presidente eleito está disposto a arriscar o seu case de sucesso, com uma administração extravagante e imprudente? Ele teve tempo mais que suficiente para acompanhar o curso da realidade brasileira nesses 12 anos e saber que, dessa vez, as condições são extremamente piores e mais desafiadoras. Portanto, suas manifestações até aqui, sobre o projeto econômico para o país, não são fruto de desrespeito ou de leviandade; mas, de estabelecer um limite as especulações e cobranças demasiadas.

Afinal, fazem como ele o que não fizeram nos últimos quatro anos. Cobram dele o que não cobraram da gestão ainda vigente, e por quê não? Perdoem-me se estiver equivocada na minha análise, mas o movimento que tenho assistido tem uma pegada colonial histórica bem visível.

Enquanto o teto de gastos veio sendo usurpado e destruído para atender aos interesses escusos e mal-intencionados do governo ainda vigente, não se via sobressaltos, maus humores, falatórios. Ora, eram movimentos da classe dominante, dos donos do poder, de modo que ficava o dito pelo não dito.

Mas, agora, quando a ideia é enfrentar as prioridades sociais, resgatar milhões de pessoas lançadas à margem da cidadania brasileira, o mal-estar se enfurece sob diferentes formas e conteúdos. Afinal, as desigualdades socioeconômicas não podem ser questionadas, não podem ser discutidas, não podem ser resolvidas. Tudo tem que permanecer como sempre foi, como no velho esquema da casa grande e da senzala.

No entanto, diante desse contexto, será mesmo que se houvesse quaisquer riscos de tensão, ou de desestabilidade, ou de imprudência, ou de irresponsabilidade, rondando a política econômica brasileira do governo recém-eleito, o mundo estaria tão afável e eufórico em relação ao Brasil?

Ainda que, uns e outros argumentem que as discussões da COP-27 giram em torno de questões ambientais, de antemão eu esclareço que desenvolvimento sustentável, mudanças climáticas, produção de alimentos, bem-estar e sobrevivência dos povos originários, tudo isso representa as tramas que tecem a economia do século XXI, a economia do Terceiro Milênio. Portanto, essas são as bases da economia do futuro. É a partir delas que a dinâmica do equilíbrio socioeconômico vai acontecer.

Se lá fora as negociações já acenam com investimentos por aqui, considerando que as atuais conjunturas globais não favorecem hábitos perdulários e imprevidentes, é sinal de que eles confiam e acreditam no governo que venceu democraticamente a recente eleição. Então, por que tanto disse me disse aqui dentro, hein? Por que a desconfiança?

Segundo um provérbio chinês, “A melhor época para plantar uma árvore foi há 20 anos. A segunda melhor é agora”. Lembre-se de que “nossas vidas começam a terminar no dia em que nos calamos sobre as coisas que importam” (Martin Luther King Jr.); por isso, “o sucesso é uma consequência e não um objetivo” (Gustave Flaubert). Portanto, ele não está na contramão de nada que possa levá-lo ao sucesso de um terceiro governo no combate à pobreza.