Será
esse o Auto da Santa Inquisição contemporânea?
Por Alessandra
Leles Rocha
O título da matéria é “Lula larga na contramão do que levou ao
sucesso de seus governos no combate à pobreza” 1.
Então, me parece oportuno refletir a partir da própria incongruência presente
na referida fala. Me parece evidente a construção de uma Santa Inquisição, sob
moldes contemporâneos, para condenar e punir o Presidente da República eleito,
desde que ele anunciou o seu retorno ao cenário político-partidário.
Pois é, há quem queira sim,
lançar sobre seus ombros uma avalanche de culpas em relação ao que se mostrou
ruim e problemático em termos de governança, especialmente no período exercido
pela sua sucessora e companheira de partido. Como se não coubesse uma
dissociação lógica e distinta entre os respectivos governos. Afinal, a
responsabilidade que lhe cabe se refere somente ao período de 2003 a 2010.
Mas, observem com atenção, o que diz
a própria imprensa: “sucesso de seus governos
no combate à pobreza”. Bem, só tem
sucesso quem se dispõe a fazer, quem encontra meios adequados para fazer, quem
acredita na importância do que faz. Como afirmou Michael Jordan, “eu perdi mais de 9 mil tiros livres em
minha carreira. Eu perdi quase 300 jogos. Em 26 vezes eu tive a bola do jogo e
perdi. Eu falhei uma e outra vez em minha vida. E é por isso que eu consegui”.
Portanto, se houve sucesso é
porque a economia foi pensada e estruturada de maneira equilibrada, as
políticas econômicas estavam bem alinhavadas, havendo previsibilidade,
segurança e responsabilidade. O que significa que os atores envolvidos não se
mostraram doidivanas ensandecidos. Tinham foco, tinham planejamento, tinham
compromisso com a estabilidade.
Acontece que lá se foram 12 anos e
muita água rolou por debaixo da ponte, dentro e fora da geografia brasileira. De
modo que houve sim, uma desconstrução inevitável da realidade socioeconômica,
fazendo o Brasil descer a ladeira desgovernado, computando perdas graves nos
mais diferentes setores e interesses da população. E muito desse movimento se
deu, nos últimos quatro anos; mas, não por obra e graça da Pandemia da
COVID-19, como tornou-se praxe afirmar.
A guinada de rumos que tomou o
Brasil, a partir da ascensão da ultradireita, promoveu um terremoto nas
estruturas institucionais e nunca se gastou tanto e mal como nesse momento recente
da história nacional. O desmantelamento dos órgãos e autarquias gerou o mau uso
do dinheiro público e os investimentos se perderam no profundo desconhecimento
das prioridades, das urgências; mas, sobretudo, da manutenção da própria funcionalidade
governamental.
Acontece que o Legislativo
Federal, infelizmente, se omitiu no seu papel fundamental de fiscalizador das
ações realizadas pelo governo. A tal ponto, que se permitiu aprovar orçamentos
absurdos, desenhados de maneira afrontosa à chamada Lei de Responsabilidade
Fiscal e que acabaram implodindo o teto de gastos públicos, sem que gerassem
resultados positivos para o país e sua população.
Pois é, eles se permitiram
avalizar uma gestão econômica sem pé e nem cabeça! Foram aprovando gastos sem o
menor pudor, mesmo tendo total consciência dos desdobramentos que isso
resultaria em termos de insuficiência de recursos para a manutenção das
engrenagens públicas. Se permitiram, por exemplo, receber uma Lei de Diretrizes
Orçamentárias para 2023 totalmente estapafúrdia, formulada de maneira tão irresponsável
e equivocada que deixou de fora questões de ordem constitucional para
contemplar supérfluos de natureza pouco conhecida. Mas, sobre isso os
inquisidores contemporâneos se abstêm de falar!
Então, eu pergunto, será mesmo
que o Presidente eleito está disposto a arriscar o seu case de sucesso, com uma administração extravagante e imprudente? Ele
teve tempo mais que suficiente para acompanhar o curso da realidade brasileira
nesses 12 anos e saber que, dessa vez, as condições são extremamente piores e
mais desafiadoras. Portanto, suas manifestações até aqui, sobre o projeto econômico
para o país, não são fruto de desrespeito ou de leviandade; mas, de estabelecer
um limite as especulações e cobranças demasiadas.
Afinal, fazem como ele o que não
fizeram nos últimos quatro anos. Cobram dele o que não cobraram da gestão ainda
vigente, e por quê não? Perdoem-me se estiver equivocada na minha análise, mas
o movimento que tenho assistido tem uma pegada colonial histórica bem visível.
Enquanto o teto de gastos veio
sendo usurpado e destruído para atender aos interesses escusos e mal-intencionados
do governo ainda vigente, não se via sobressaltos, maus humores, falatórios. Ora,
eram movimentos da classe dominante, dos donos do poder, de modo que ficava o
dito pelo não dito.
Mas, agora, quando a ideia é
enfrentar as prioridades sociais, resgatar milhões de pessoas lançadas à margem
da cidadania brasileira, o mal-estar se enfurece sob diferentes formas e conteúdos.
Afinal, as desigualdades socioeconômicas não podem ser questionadas, não podem
ser discutidas, não podem ser resolvidas. Tudo tem que permanecer como sempre
foi, como no velho esquema da casa grande e da senzala.
No entanto, diante desse
contexto, será mesmo que se houvesse quaisquer riscos de tensão, ou de desestabilidade,
ou de imprudência, ou de irresponsabilidade, rondando a política econômica brasileira
do governo recém-eleito, o mundo estaria tão afável e eufórico em relação ao
Brasil?
Ainda que, uns e outros
argumentem que as discussões da COP-27 giram em torno de questões ambientais,
de antemão eu esclareço que desenvolvimento sustentável, mudanças climáticas,
produção de alimentos, bem-estar e sobrevivência dos povos originários, tudo
isso representa as tramas que tecem a economia do século XXI, a economia do Terceiro
Milênio. Portanto, essas são as bases da economia do futuro. É a partir delas
que a dinâmica do equilíbrio socioeconômico vai acontecer.
Se lá fora as negociações já
acenam com investimentos por aqui, considerando que as atuais conjunturas globais
não favorecem hábitos perdulários e imprevidentes, é sinal de que eles confiam
e acreditam no governo que venceu democraticamente a recente eleição. Então,
por que tanto disse me disse aqui dentro, hein? Por que a desconfiança?
Segundo um provérbio chinês, “A melhor época para plantar uma árvore foi
há 20 anos. A segunda melhor é agora”. Lembre-se de que “nossas vidas começam a terminar no dia em
que nos calamos sobre as coisas que importam” (Martin Luther King Jr.); por
isso, “o sucesso é uma consequência e não
um objetivo” (Gustave Flaubert). Portanto, ele não está na contramão de
nada que possa levá-lo ao sucesso de um terceiro governo no combate à pobreza.