Ainda
bem que existe o Futebol!
Por
Alessandra Leles Rocha
Depois de quatro anos que
reviraram a história da humanidade de cabeça para baixo, eis que a Copa do
Mundo acontece para atenuar os impactos. Me reservo, então, ao direito de
escrever e olhar para esse grande evento a margem das entrelinhas dos
interesses político-econômicos, dos abusos sociais, dos extremismos culturais, do
estrelismo que ronda certas personalidades dos gramados.
Decidi tentar resgatar no baú das
minhas memórias o sentimento que me embalou na infância, durante a Copa do
Mundo da Espanha, em 1982. Aquele encanto mágico que brotava da plasticidade
dos movimentos, das jogadas que pareciam pura perfeição genial, da alegria que
se espalhava feito rastilho de pólvora pela cidade.
Se alguns torciam o nariz por
considerar aquela seleção brasileira abaixo da fenomenal seleção de 70, eu não
me importava. Ora, em 1970 eu nem era nascida! Eu não tinha referência para
fazer qualquer juízo de valor a respeito. Então, era por Zico, Sócrates,
Falcão, Júnior, Éder Aleixo e companhia que meus olhos ficavam fixos na tela da
TV, enquanto o coração acelerava de euforia.
Em uma época em que meninas se restringiam
a meras torcedoras da Seleção Brasileira Masculina de Futebol, porque esse não
era um esporte para elas, sendo neta única dos meus avós maternos, meu avô,
então, teve que se contentar com a minha companhia durante os jogos e dedicar
sua paciência e atenção para me ensinar as regras do futebol. Foi bom demais! Fui
muita privilegiada por poder aprender com ele e dali adiante podermos rir e comentarmos
juntos muitos jogos.
Certas lições desse tempo eu não
esqueço de jeito algum. Meu avô dizia que futebol, enquanto esporte coletivo, precisava
de uma boa equipe, consistente, coesa, preparada. Afinal, no esporte por equipe,
quase sempre, o emprego da força acaba ocasionando muitas lesões e deixando
muita gente fora de combate. Então, essa história de se fiar nos prodígios da
vida, como foram Pelé e Garrincha, por exemplo, era um erro. O time tinha
sempre que ter cartas na manga, para quaisquer eventualidades.
Daí essa história de reservas ser
uma grande bobagem. Escolhem-se os melhores. Preparam-se os melhores. E aí se
tem uma equipe em ponto de bala. Uma combinação técnica e tática, a partir de
26 jogadores selecionados, para que 11 deem o pontapé inicial em cada partida. Assim,
cada jogo tem a sua história marcada pelo talento individual e coletivo dos que
entraram em campo. Se vai ser vitória ou derrota, cabe somente aos Deuses do
Futebol a resposta! Não é à toa que, de vez em quando, as zebras do futebol
cortam os gramados!
O bacana é que, enquanto nos distraímos
com esse movimento frenético e hipnotizante, nos permitimos curar a alma. É!
Mesmo que ao final dos 90 minutos, o resultado não seja do nosso agrado, a essência
da vida parece repousar segura dentro de nós. Como se, de repente, estivéssemos
mais leves, mais etéreos, por estarmos preenchidos de graça e de diversão. Nada
nos desconforta, nos amedronta, nos aflige, nos consome. A vida entra num
estado mágico de satisfação!
Eu sei que é só uma impressão;
mas, ela é necessária! Na verdade, ela é fundamental para a nossa sanidade
mental. Enquanto nos permitimos viver o futebol dessa maneira, baixamos a
guarda, relaxamos o corpo, apaziguamos a alma, nos colocamos fora dos combates
intensos e cruéis da vida. Por 90 minutos voltamos a ser humanos novamente. Rimos.
Choramos. Gritamos. Suspiramos. Explodimos de entusiasmo emocionado. Falamos sobre
coisas simples, quiçá desimportantes.
Pois é, Nelson Rodrigues tinha
mesmo razão, “Em futebol, o pior cego é o
que só vê a bola”. Ainda que o mundo não tenha parado de rodopiar, nem os
problemas de existir, o futebol nos permite ver a vida de uma outra
perspectiva. Paradoxalmente, o frenesi dos gramados contrasta a desaceleração
involuntária que age sobre nós. Como se tudo pudesse esperar. Como se houvesse
espaço apenas para ser feliz. Como se naquela bola coubesse o mundo com todos
os seus mistérios, suas aventuras e desventuras.
Assim, cada gol é a catarse da nossa humanidade. Cada gol é a explosão do que há de melhor em nós. No verde dos gramados, somos iguais, somos apenas gente, de carne, osso e emoção. Não precisamos de raça, de credo, de gênero, de status, de nada. Apenas daquela aura sublime, que transcende os corpos dos desportistas e penetra em nós sem pedir licença, agigantando o nosso espírito frágil e infantil.