quarta-feira, 30 de novembro de 2022

O espelho do ódio


O espelho do ódio

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

O ódio como refúgio para esconder a frustração. Há tempos que ouço falar sobre a dificuldade contemporânea de lidar com as negativas, as impossibilidades, os limites, sejam crianças, jovens ou adultos. Algo que tem uma correlação direta com o desenvolvimento tecnológico experimentado pela humanidade, o qual lhe tem permitido manipular, com muito mais facilidade, quaisquer desagrados, bastando para tal um simples deletar, bloquear, cancelar.

Dessa forma, “Perde-se a profundidade das relações; perde-se a conversa que possibilita a harmonia e também o destoar. Nas relações virtuais não existem discussões que terminem em abraços vivos, as discussões são mudas, distantes. As relações começam e terminam sem contato algum. Analisamos o outro por suas fotos e frases de efeito. Não existe a troca vivida. Ao mesmo tempo em que experimentamos um isolamento protetor, vivenciamos uma absoluta exposição. Não há o privado, tudo é desvendado: o que se come, o que se compra; o que nos atormenta e o que nos alegra” (Zygmunt Bauman).

O que significa que a humanidade se colocou diante de um gigantesco desafio social, o qual ela não consegue administrar. Daí a exacerbação da fúria, do ódio, da violência. Porque a realidade não cabe nos protocolos das idealizações individuais, como tantos gostariam. E a contínua persistência na idealização não muda o curso da história. Assim, esse desajuste é profundamente incomodativo e desconfortante, na medida em que ele afronta de maneira direta e inquestionável o senso contemporâneo de liberdade, de escolha, de inexistência de limites.

Daqui e dali as pessoas são, desse modo, confrontadas com essa impossibilidade. No entanto, ao invés de exercitarem a sua capacidade de compreensão a respeito, passam a buscar discursos e narrativas que possam legitimar o seu próprio pensamento e fortalecer o seu arraigamento diante de certos pontos de vista e opiniões. Sim, porque não se trata somente da liberdade ou da escolha, tudo isso implica também na prevalência impositiva e absoluta das suas convicções, das suas perspectivas 1. Algo que, segundo essas pessoas, não pode ser negociado ou flexibilizado. Elas não se permitem, em hipótese alguma, admitir ou barganhar com o contraditório.

Isso aponta para um real distanciamento humano da sua capacidade dialógica e argumentativa. Infelizmente, muitos seres humanos têm se colocado na posição “ou está comigo ou está contra mim”, o que estabelece uma linha muito tênue com a beligerância social. Ora, a construção dessa bipolaridade, além de totalmente antiproducente, é irreal. Nenhum ser humano se mantém fiel às mesmas crenças, valores e princípios, o tempo todo, a vida inteira. A força das circunstâncias, das conjunturas, nos obriga a ter momentos de análise, de reflexão, de criticidade, para nos reajustar e sobreviver.

Aliás, foi graças a esse movimento que o mundo chegou ao Terceiro Milênio com a configuração atual. Certamente, muitas vezes, repaginada e reestruturada pelos deslocamentos e mudanças impostas pela evolução psicossocial. Se ainda somos bárbaros, cruéis e perversos, não somos da mesma maneira que nossos ancestrais das cavernas! Demos passos adiante, sim. E ainda que não tenha sido genuinamente voluntário, consciente, planejado, aconteceu porque era uma demanda do mundo, da vida, e que não tinha razão para pedir permissão a ninguém para se operacionalizar. Portanto, esse ódio destilado, gratuitamente, é inútil. Consome-se uma energia descomunal, por nada. Agridem e ameaçam pessoas, por nada. Perdem um tempo preciosíssimo, por nada.       

Carl Gustav Jung dizia, “Que eu faça um mendigo sentar-se à minha mesa, que eu perdoe aquele que me ofende e me esforce por amar, inclusive o meu inimigo, em nome de Cristo, tudo isso, naturalmente, não deixa de ser uma grande virtude. O que faço ao menor dos meus irmãos é ao próprio Cristo que faço. Mas, o que acontecerá, se descubro, porventura, que o menor, o mais miserável de todos, o mais pobre dos mendigos, o mais insolente dos meus caluniadores, o meu inimigo, reside dentro de mim, sou eu mesmo, e precisa da esmola da minha bondade, e que eu mesmo sou o inimigo que é necessário amar? ”.

E esse é o ponto, caro (a) leitor (a), quando observamos a disseminação em massa e o recrudescimento do ódio na contemporaneidade. O que parece uma questão coletiva, na verdade, está incrustada no individualismo, em todas as suas camadas de egoísmo, de egocentrismo, de narcisismo. Por isso, para enfrentá-lo é fundamental o entendimento de que “Tudo o que nos irrita nos outros pode nos levar a uma melhor compreensão de nós mesmos”; afinal, “Sua visão se tornará clara apenas quando você puder olhar dentro de seu coração. Quem olha para fora sonha, quem olha para dentro acorda” (Carl Gustav Jung). Façamos essa reflexão!