SOS
Por
Alessandra Leles Rocha
Lamento, mas não dá para passar
pano para o comportamento humano contemporâneo! Ah! Isso, é claro, inclui os
brasileiros e brasileiras! Cada vez mais absortos no seu individualismo abjeto,
repugnante, eles não percebem que sua digital cruel e perversa está sobre o
cotidiano, revelando exatamente o que habita além da sua imagem. O pior da vida
tem isso de bom, ele é sempre revelador! Ele desnuda as verdades que se
escondem nas entrelinhas de supostos bons modos, de protocolos e etiquetas de
meia pataca.
Então, observando a chegada de
mais um ciclo de chuvas associadas ao verão nacional, os episódios de
deslizamentos, desmoronamentos, rodovias destruídas pela erosão, inundações
devastadoras em áreas urbanas, fica o gosto amargo da prova irrefutável que a
vida humana não tem mesmo, nenhuma importância para a classe política nacional 1. O cidadão comum não é prioridade e não
desperta, naqueles que detém o poder nas mãos, semelhante apreço dedicado aos impostos
pago por eles.
Há, portanto, uma banalização,
uma trivialização despudorada das catástrofes, das tragédias, das calamidades
socioambientais no país. E só para agravar, um bocadinho mais, esse descaso,
país afora há pessoas lideradas e manipuladas por agentes político-partidários
se dedicando a atos golpistas, de caráter totalmente ilegal, inconstitucional 2.
Queria ver o seu patriotismo,
longe do oportunismo de conveniência, mas colocado a serviço de trabalhar
arduamente pela resolução dos problemas reais do país. Arregaçando as mangas,
literalmente, para operacionalizar soluções em curto, médio e longo prazo que
possam evitar situações como as que vêm ocorrendo nos últimos dias, em razão
das intempéries climáticas.
Mas, já sabemos que dessas
pessoas não se pode esperar nada diferente do que costumam apresentar. Esse é o ponto! É isso que desalenta, que míngua
com as esperanças em relação a um país mais humano, mais fraterno, mais
empático. A dinâmica contemporânea conseguiu contaminar as pessoas com a trinca
de vírus mais letal do planeta, ou seja, o individualismo, o egoísmo e o
narcisismo. Para esse tipo de doença comportamental não há vacina, não há
tratamento, muito menos, cura.
O pior é que esses vírus se
disseminam sorrateiramente, na surdina. Por meio de discursos e narrativas,
muitas vezes, sem grandes repercussões. Como todo vírus, nem todos os
infectados desenvolvem a doença. Mas, para muitos, essas palavras repetidas amiúde
vão sendo impregnadas no seu inconsciente e reproduzidas de gerações em
gerações. Daí romper com esse ciclo vicioso ser tão difícil e complexo, porque
depende da atitude de cada indivíduo. E não se pode esquecer de que os vírus têm
na sua natureza um componente de resistência que visa garantir-lhes a sobrevivência,
mantendo-os em circulação o mais tempo possível.
Diante dos vírus do individualismo,
do egoísmo e do narcisismo, o conceito de coletividade, de sociedade, se desconstrói.
E assim se formam os muros, as fronteiras, as linhas divisórias que apartam os seres
humanos da sua própria espécie, por níveis de gradação de importância e de
desimportância social. O que significa que se perde a capacidade de se colocar
no lugar do outro, de perceber o outro como uma pessoa singular e subjetiva, de
reconhecer e respeitar as diferenças, as necessidades, os desejos, os
sofrimentos humanos.
Essa deve ser uma reflexão
diária; mas, aproveitando que hoje é celebrado o Dia Mundial de Luta contra a
AIDS 3, ela se torna ainda mais significativa.
Há quase meio século que a humanidade descobriu os primeiros casos do Vírus da Imunodeficiência
(HIV) e iniciou o seu empenho científico em estudá-lo, tratá-lo e curá-lo. Mas,
o que não se poderia imaginar é que justamente o estigma e a exclusão, que
acompanharam inúmeras doenças ao longo da história, seriam na contemporaneidade
os grandes vilões para essa epidemia.
Não, não são somente as catástrofes,
as tragédias, as calamidades socioambientais que padecem da vilania dos vírus
do individualismo, do egoísmo e do narcisismo. Surtos, epidemias, pandemias são
historicamente acometidas pelas arbitrariedades sociais emergidas da ignorância
e/ou das pseudoautoridades ideológicas de certos indivíduos. Então, ao invés de
se solidarizar com as vítimas, de se valer de todo o arcabouço científico e
tecnológico disponível para o enfrentamento da situação, de empregar todos os esforços
humanos e materiais para debelar o problema, elas agem na contramão,
invisibilizando, negando, estigmatizando e segregando.
Contudo, o silêncio não muda o
curso dos fatos, não desaparece com aquilo que perturba ou desconforta. Pelo
contrário, ele agrava e compromete toda a sociedade. No mundo do imponderável,
qualquer um pode ser a bola da vez. Absolutamente ninguém está a salvo ou
blindado das circunstâncias que a vida coloca pelo caminho. Clarice Lispector
já dizia que “Quem caminha sozinho pode até
chegar mais rápido, mas aquele que vai acompanhado, com certeza vai mais longe”.
Essa é a compreensão que se faz
fundamental nesse momento. De tanto olhar para si, pensar em si, decidir por
si, acreditar que ele (a) própria (a) se basta, o ser humano subtraiu da mente
a verdade inconteste de que “A força da
alienação vem dessa fragilidade dos indivíduos, quando apenas conseguem
identificar o que os separa e não o que os une” (Milton Santos). Não é à
toa que, daqui e dali, pipocam os exemplos que apontam a pseudoautoridade dos
vírus do individualismo, do egoísmo e do narcisismo, sobre os seres humanos.
Somos todos falíveis, mortais,
perecíveis. Nada do que temos, ou amealhamos, ou guardamos em cofres e baús fará
diferença na hora da partida final. O que importa, o que vale mesmo, no fim das
contas, é o que fazemos uns pelos outros. É o quanto nos dedicamos em favor de
crenças, valores e convicções humanitárias, altruístas, fraternas. Não por ser
uma questão associada a Céu ou ao Inferno; mas, simplesmente, porque é isso que
faz bem para alma, que nos torna leves, que nos coloca um sorriso verdadeiro no
rosto. Se cada um começar a pensar a respeito, a se permitir transformar e
romper seus casulos virulentos, antes do que se imagina, tudo aquilo que desalenta,
que míngua com as esperanças, que entristece, terá se esvaído como fumaça.
1 https://g1.globo.com/meio-ambiente/noticia/2022/02/15/temporal-em-petropolis-entenda-o-que-provocou-as-chuvas-intensas-que-causaram-destruicao-na-cidade.ghtml