quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

SOS


SOS

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Lamento, mas não dá para passar pano para o comportamento humano contemporâneo! Ah! Isso, é claro, inclui os brasileiros e brasileiras! Cada vez mais absortos no seu individualismo abjeto, repugnante, eles não percebem que sua digital cruel e perversa está sobre o cotidiano, revelando exatamente o que habita além da sua imagem. O pior da vida tem isso de bom, ele é sempre revelador! Ele desnuda as verdades que se escondem nas entrelinhas de supostos bons modos, de protocolos e etiquetas de meia pataca.

Então, observando a chegada de mais um ciclo de chuvas associadas ao verão nacional, os episódios de deslizamentos, desmoronamentos, rodovias destruídas pela erosão, inundações devastadoras em áreas urbanas, fica o gosto amargo da prova irrefutável que a vida humana não tem mesmo, nenhuma importância para a classe política nacional 1. O cidadão comum não é prioridade e não desperta, naqueles que detém o poder nas mãos, semelhante apreço dedicado aos impostos pago por eles.

Há, portanto, uma banalização, uma trivialização despudorada das catástrofes, das tragédias, das calamidades socioambientais no país. E só para agravar, um bocadinho mais, esse descaso, país afora há pessoas lideradas e manipuladas por agentes político-partidários se dedicando a atos golpistas, de caráter totalmente ilegal, inconstitucional 2.

Queria ver o seu patriotismo, longe do oportunismo de conveniência, mas colocado a serviço de trabalhar arduamente pela resolução dos problemas reais do país. Arregaçando as mangas, literalmente, para operacionalizar soluções em curto, médio e longo prazo que possam evitar situações como as que vêm ocorrendo nos últimos dias, em razão das intempéries climáticas.

Mas, já sabemos que dessas pessoas não se pode esperar nada diferente do que costumam apresentar.  Esse é o ponto! É isso que desalenta, que míngua com as esperanças em relação a um país mais humano, mais fraterno, mais empático. A dinâmica contemporânea conseguiu contaminar as pessoas com a trinca de vírus mais letal do planeta, ou seja, o individualismo, o egoísmo e o narcisismo. Para esse tipo de doença comportamental não há vacina, não há tratamento, muito menos, cura.

O pior é que esses vírus se disseminam sorrateiramente, na surdina. Por meio de discursos e narrativas, muitas vezes, sem grandes repercussões. Como todo vírus, nem todos os infectados desenvolvem a doença. Mas, para muitos, essas palavras repetidas amiúde vão sendo impregnadas no seu inconsciente e reproduzidas de gerações em gerações. Daí romper com esse ciclo vicioso ser tão difícil e complexo, porque depende da atitude de cada indivíduo. E não se pode esquecer de que os vírus têm na sua natureza um componente de resistência que visa garantir-lhes a sobrevivência, mantendo-os em circulação o mais tempo possível.

Diante dos vírus do individualismo, do egoísmo e do narcisismo, o conceito de coletividade, de sociedade, se desconstrói. E assim se formam os muros, as fronteiras, as linhas divisórias que apartam os seres humanos da sua própria espécie, por níveis de gradação de importância e de desimportância social. O que significa que se perde a capacidade de se colocar no lugar do outro, de perceber o outro como uma pessoa singular e subjetiva, de reconhecer e respeitar as diferenças, as necessidades, os desejos, os sofrimentos humanos.

Essa deve ser uma reflexão diária; mas, aproveitando que hoje é celebrado o Dia Mundial de Luta contra a AIDS 3, ela se torna ainda mais significativa. Há quase meio século que a humanidade descobriu os primeiros casos do Vírus da Imunodeficiência (HIV) e iniciou o seu empenho científico em estudá-lo, tratá-lo e curá-lo. Mas, o que não se poderia imaginar é que justamente o estigma e a exclusão, que acompanharam inúmeras doenças ao longo da história, seriam na contemporaneidade os grandes vilões para essa epidemia.

Não, não são somente as catástrofes, as tragédias, as calamidades socioambientais que padecem da vilania dos vírus do individualismo, do egoísmo e do narcisismo. Surtos, epidemias, pandemias são historicamente acometidas pelas arbitrariedades sociais emergidas da ignorância e/ou das pseudoautoridades ideológicas de certos indivíduos. Então, ao invés de se solidarizar com as vítimas, de se valer de todo o arcabouço científico e tecnológico disponível para o enfrentamento da situação, de empregar todos os esforços humanos e materiais para debelar o problema, elas agem na contramão, invisibilizando, negando, estigmatizando e segregando.  

Contudo, o silêncio não muda o curso dos fatos, não desaparece com aquilo que perturba ou desconforta. Pelo contrário, ele agrava e compromete toda a sociedade. No mundo do imponderável, qualquer um pode ser a bola da vez. Absolutamente ninguém está a salvo ou blindado das circunstâncias que a vida coloca pelo caminho. Clarice Lispector já dizia que “Quem caminha sozinho pode até chegar mais rápido, mas aquele que vai acompanhado, com certeza vai mais longe”.

Essa é a compreensão que se faz fundamental nesse momento. De tanto olhar para si, pensar em si, decidir por si, acreditar que ele (a) própria (a) se basta, o ser humano subtraiu da mente a verdade inconteste de que “A força da alienação vem dessa fragilidade dos indivíduos, quando apenas conseguem identificar o que os separa e não o que os une” (Milton Santos). Não é à toa que, daqui e dali, pipocam os exemplos que apontam a pseudoautoridade dos vírus do individualismo, do egoísmo e do narcisismo, sobre os seres humanos.

Somos todos falíveis, mortais, perecíveis. Nada do que temos, ou amealhamos, ou guardamos em cofres e baús fará diferença na hora da partida final. O que importa, o que vale mesmo, no fim das contas, é o que fazemos uns pelos outros. É o quanto nos dedicamos em favor de crenças, valores e convicções humanitárias, altruístas, fraternas. Não por ser uma questão associada a Céu ou ao Inferno; mas, simplesmente, porque é isso que faz bem para alma, que nos torna leves, que nos coloca um sorriso verdadeiro no rosto. Se cada um começar a pensar a respeito, a se permitir transformar e romper seus casulos virulentos, antes do que se imagina, tudo aquilo que desalenta, que míngua com as esperanças, que entristece, terá se esvaído como fumaça.