sábado, 3 de dezembro de 2022

Busca-se um pretexto para a discórdia


Busca-se um pretexto para a discórdia

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Enquanto milhares de especulações orbitam em torno da transmissão da faixa presidencial pelo atual Presidente da República, tendo em vista a sua total indisposição e recusa em fazê-la, me permito pensar a respeito do que leva certas pessoas a assumirem a incivilidade como estratégia de sobrevivência. Afinal, a questão é bem mais profunda do que um simples se apequenar diante da opinião pública.

Atitudes incivilizadas não são apropriadas para ninguém; mas, para certas posições sociais que se ocupa, elas se tornam totalmente inadmissíveis.  A liturgia imposta por certos cargos desconsidera o ser individual para que apenas a função seja o objeto determinante dos ritos a se cumprir. Isso significa que emoções, sentimentos, convicções, crenças e valores estão relegados a último plano, a fim de que somente o pragmatismo das circunstâncias determine a condução dos atos.

Entretanto, essa não seria a primeira, e nem a última vez, que um Chefe de Estado e/ou Chefe de Governo, no Brasil, transgrediria a civilidade dos protocolos na solenidade de posse do seu substituto 1. Lamentável? Sim. Mas, algo que acaba absorvido no rol das más escolhas. Nada que interfira no processo em si, nem que afronte de maneira contundente o outro. Porém, o simbólico é uma expressão de linguagem e como tal, diz bem mais do que se possa capturar de imediato.

Considerando-se que a transmissão da faixa presidencial é um gesto de governo e não de indivíduos, a recusa subverte a lógica, trazendo-a para um campo totalmente inadequado. Isso significa uma apropriação equivocada do poder, da autoridade. Pessoas vêm e vão, governos ficam. Governos são a representação do Estado, do país, da nação. E no caso da Democracia, a representatividade político-partidária é essencialmente transitória, temporária.

Dessa forma, quem se recusa, quem age na contramão do protocolo, me parece fragilizado, vulnerável, perturbado, não em relação ao ato em si; mas, de um possível julgamento da opinião pública a respeito do seu mandato. Como bem escreveu Glória Kalil, “Nada denuncia mais o grau de civilidade de um país e de um povo do que o modo de tratar a coisa pública”. Desse modo, expor-se publicamente diante de concidadãos e de representações diplomáticas estrangeiras demanda um espírito sereno e pacificado em relação aos deveres cumpridos.  

Nesse sentido, a negativa em o fazer pode ser interpretada como uma confissão subentendida acerca de possíveis erros, descuidos, inadvertências, os quais, na verdade, já seriam de conhecimento de todos. Talvez, por isso, é que o mineiríssimo Fernando Sabino tenha nos deixado a seguinte reflexão, “Democracia é oportunizar a todos o mesmo ponto de partida. Quanto ao ponto de chegada, depende de cada um”. A transmissão da faixa presidencial é, portanto, a reafirmação do escrutínio popular. O que foi, foi. Agora, os olhos do país e do mundo estão voltados para o novo ciclo que se inicia.

Ainda que cada cidadão possa tecer suas próprias análises sobre o período concluído, a história contada por registros jornalísticos, documentos, materiais audiovisuais, será escrita. Dentro e fora das fronteiras nacionais será possível saber o que foram esses tempos, no Brasil. E isso pesa, também, para essa decisão antiprotocolar do ainda Presidente da República. Porque é algo à revelia dos desejos e vontades de quem quer que seja. A história é a história. Com todos os seus altos e baixos, vitórias e derrotas, sucessos e fracassos. Daí não caberem narcisismos, egocentrismos e afins; pois, “Todos têm direito de se enganar nas suas opiniões. Mas ninguém tem o direito de se enganar nos fatos” (Bernard Baruch).

Quanto à faixa presidencial, os últimos acontecimentos não desgastam o seu simbolismo; mas, apontam para a necessidade de uma modernização de costumes. Afinal, a contemporaneidade favorece ao desapego com a rigidez e pensando assim, talvez, seja mais oportuno que se restrinja o seu uso à foto oficial, que estará presente em todos os órgãos e instituições de Estado, e às eventuais recepções diplomáticas. Assim, quaisquer tentativas de manifestar as incivilidades humanas são contidas e o mal-estar da deselegância fica impedido da empreitada de tentar ofuscar o brilho da cidadania democrática.