A
morte como denominador comum
Por
Alessandra Leles Rocha
Não, não é a eloquência do silêncio
que incomoda. Aliás, façamos dele o benefício para uma reflexão profunda frente
ao cenário configurado, o qual vem sendo construído a pouco mais de um ano. Porque
observando com bastante atenção as linhas que se traçam no horizonte, elas
encontram um ponto comum; a morte.
A falta de oxigênio em Manaus,
talvez, seja a manifestação mais explicita do desdém dispensado a vida do
cidadão brasileiro. Mas, quem disse que o ar já não se consumia e asfixiava,
quando labaredas flamejavam pelos principais biomas nacionais, hein? Toneladas e
mais toneladas de gás carbônico lançadas na atmosfera em meio as fuligens de
uma flora e fauna destruídas. Ali, também, não se conseguia respirar.
Mas, como a morte é hábil em
encontrar maneiras de exercer seu ofício, nem só de ausência de ar pode morrer o
ser humano. Mudanças que flexibilizaram as leis de trânsito tornaram a direção
de veículos potencialmente mais perigosa. O apreço a um sistema que invocava a
direção defensiva se desconstruiu, enquanto acidentes de graves proporções têm
vitimado milhares de pessoas e deixado sequelas em outras tantas,
impossibilitando-as de retomarem sua vida normal e sua autossuficiência.
Cada acidente amplia o rol de dependência
do INSS (Instituto Nacional do Seguro Social), tornando-o cada vez mais
sobrecarregado e insuficiente para atendimento de suas obrigações. Situação que
faz do cidadão um verdadeiro indigente, na medida da negligência e do
desrespeito dispensado, tantas vezes, na manifestação desse serviço;
obrigando-o a uma sina de peregrinações e desinformações que se arrastam acima
do tempo necessário e condizente à dignidade humana.
No entanto, não é só o INSS. É importante
destacar a importância do SUS (Sistema Único de Saúde) nesse processo; visto
que, ele tem recebido um número cada vez maior de pacientes também. No caso de
acidentes de veículos, quase sempre o acidentado dá entrada primeiramente no
serviço público de saúde e, caso tenha convênio privado, posteriormente pode
ser reencaminhado. Mas, o fato é que o sistema em si convive com a saturação
por várias razões, as quais variam desde ausência de suprimentos até de corpo
clínico para atendimento; o que favorece a piora do adoecimento dos pacientes e
eventuais óbitos que poderiam ser evitados se as condições fossem outras.
A somar nessa situação de
desalento preocupante, a legislação referente ao uso e porte de armas também amplia
as possibilidades no campo da assistência médica e social. O abrandamento das
leis é, inevitavelmente, um estímulo poderoso as manifestações da violência. De
modo que se ela não mata pode ferir com gravidade e, até mesmo, interromper a dinâmica
natural da vida de um ser humano, tornando-o dependente do Estado, conforme
garantido pela Constituição Federal de 1988.
É importante ressaltar que os
impactos sociais gerados pela violência extrapolam a perspectiva da vítima e do
agente causador. Eles se desdobram dentro da sociedade, agravando não só a insuficiência
de recursos financeiros, mas as fronteiras de desigualdade humana que acentuam
a precarização e desestruturação social; o que não deixa de ser um caminho
aberto para a morte. Afinal, as violências se retroalimentam, particularmente,
no universo das drogas lícitas e ilícitas.
Um problema que culmina por
alcançar o mercado de trabalho. Já penalizado por um ciclo nada virtuoso de
acumulação de baixa oferta de oportunidades e de elevada oferta de mão de obra,
é certo que o contingente oriundo da tal precarização e desestruturação social compete
em franca desvantagem. Essas pessoas chegam fadadas a manterem-se no imobilismo
do cenário social, ou seja, a sobreviverem resistindo a todo infortúnio de
flertes com a morte.
Cada vez que o mercado sinaliza
com o fechamento de vagas, mais pessoas são levadas a compor esse contingente. Ainda
que muitos tentem um espaço na informalidade, este não responde a uma garantia
de sobrevivência em longo prazo. Chega um momento em que as perspectivas se
esvaem e aprofundam as dificuldades; o que desloca essas pessoas para as teias
da vulnerabilidade social. Isso é comum de se perceber, principalmente em
capitais, quando famílias passam a viver em áreas invadidas, coletando resíduos
e sucatas, porque não têm mais condições de arcar com as despesas mínimas de sobrevivência.
Portanto, a morte é o denominador
comum da sociedade brasileira na conjuntura atual. Seja ela direta ou indireta,
o fato é que tudo se encaminha para esse fim. Isso representa uma
permissividade em relação ao esfacelamento da sociedade da maneira mais brutal
que se possa imaginar. E ela só existe porque há quem se permita silenciar
diante da realidade, anestesiado por doses generosas de indiferença e de
escárnio.
É lastimável que, em pleno século
XXI, ainda, existam pessoas capazes de enxergar o ser humano sob o prisma de “peças
de reposição”, como durante a Revolução Industrial. Como se cada um que
morresse pudesse ser rapidamente substituído e retomar as atividades sem prejuízo.
Mas, como diz a canção, “[...] gado a
gente marca / Tange, ferra, engorda e mata / mas com gente é diferente” 1. Gente tem família. Gente tem amigos.
Gente tem amores. Gente tem sentimento. Gente tem sonhos. ... E pode o mundo
girar, o progresso se instalar; mas, só gente é que faz a vida pulsar em todas
as suas vertentes.