segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

A morte como denominador comum


A morte como denominador comum

 

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

 

Não, não é a eloquência do silêncio que incomoda. Aliás, façamos dele o benefício para uma reflexão profunda frente ao cenário configurado, o qual vem sendo construído a pouco mais de um ano. Porque observando com bastante atenção as linhas que se traçam no horizonte, elas encontram um ponto comum; a morte.

A falta de oxigênio em Manaus, talvez, seja a manifestação mais explicita do desdém dispensado a vida do cidadão brasileiro. Mas, quem disse que o ar já não se consumia e asfixiava, quando labaredas flamejavam pelos principais biomas nacionais, hein? Toneladas e mais toneladas de gás carbônico lançadas na atmosfera em meio as fuligens de uma flora e fauna destruídas. Ali, também, não se conseguia respirar.

Mas, como a morte é hábil em encontrar maneiras de exercer seu ofício, nem só de ausência de ar pode morrer o ser humano. Mudanças que flexibilizaram as leis de trânsito tornaram a direção de veículos potencialmente mais perigosa. O apreço a um sistema que invocava a direção defensiva se desconstruiu, enquanto acidentes de graves proporções têm vitimado milhares de pessoas e deixado sequelas em outras tantas, impossibilitando-as de retomarem sua vida normal e sua autossuficiência.

Cada acidente amplia o rol de dependência do INSS (Instituto Nacional do Seguro Social), tornando-o cada vez mais sobrecarregado e insuficiente para atendimento de suas obrigações. Situação que faz do cidadão um verdadeiro indigente, na medida da negligência e do desrespeito dispensado, tantas vezes, na manifestação desse serviço; obrigando-o a uma sina de peregrinações e desinformações que se arrastam acima do tempo necessário e condizente à dignidade humana.

No entanto, não é só o INSS. É importante destacar a importância do SUS (Sistema Único de Saúde) nesse processo; visto que, ele tem recebido um número cada vez maior de pacientes também. No caso de acidentes de veículos, quase sempre o acidentado dá entrada primeiramente no serviço público de saúde e, caso tenha convênio privado, posteriormente pode ser reencaminhado. Mas, o fato é que o sistema em si convive com a saturação por várias razões, as quais variam desde ausência de suprimentos até de corpo clínico para atendimento; o que favorece a piora do adoecimento dos pacientes e eventuais óbitos que poderiam ser evitados se as condições fossem outras.

A somar nessa situação de desalento preocupante, a legislação referente ao uso e porte de armas também amplia as possibilidades no campo da assistência médica e social. O abrandamento das leis é, inevitavelmente, um estímulo poderoso as manifestações da violência. De modo que se ela não mata pode ferir com gravidade e, até mesmo, interromper a dinâmica natural da vida de um ser humano, tornando-o dependente do Estado, conforme garantido pela Constituição Federal de 1988.   

É importante ressaltar que os impactos sociais gerados pela violência extrapolam a perspectiva da vítima e do agente causador. Eles se desdobram dentro da sociedade, agravando não só a insuficiência de recursos financeiros, mas as fronteiras de desigualdade humana que acentuam a precarização e desestruturação social; o que não deixa de ser um caminho aberto para a morte. Afinal, as violências se retroalimentam, particularmente, no universo das drogas lícitas e ilícitas.  

Um problema que culmina por alcançar o mercado de trabalho. Já penalizado por um ciclo nada virtuoso de acumulação de baixa oferta de oportunidades e de elevada oferta de mão de obra, é certo que o contingente oriundo da tal precarização e desestruturação social compete em franca desvantagem. Essas pessoas chegam fadadas a manterem-se no imobilismo do cenário social, ou seja, a sobreviverem resistindo a todo infortúnio de flertes com a morte.

Cada vez que o mercado sinaliza com o fechamento de vagas, mais pessoas são levadas a compor esse contingente. Ainda que muitos tentem um espaço na informalidade, este não responde a uma garantia de sobrevivência em longo prazo. Chega um momento em que as perspectivas se esvaem e aprofundam as dificuldades; o que desloca essas pessoas para as teias da vulnerabilidade social. Isso é comum de se perceber, principalmente em capitais, quando famílias passam a viver em áreas invadidas, coletando resíduos e sucatas, porque não têm mais condições de arcar com as despesas mínimas de sobrevivência.

Portanto, a morte é o denominador comum da sociedade brasileira na conjuntura atual. Seja ela direta ou indireta, o fato é que tudo se encaminha para esse fim. Isso representa uma permissividade em relação ao esfacelamento da sociedade da maneira mais brutal que se possa imaginar. E ela só existe porque há quem se permita silenciar diante da realidade, anestesiado por doses generosas de indiferença e de escárnio.

É lastimável que, em pleno século XXI, ainda, existam pessoas capazes de enxergar o ser humano sob o prisma de “peças de reposição”, como durante a Revolução Industrial. Como se cada um que morresse pudesse ser rapidamente substituído e retomar as atividades sem prejuízo. Mas, como diz a canção, “[...] gado a gente marca / Tange, ferra, engorda e mata / mas com gente é diferente” 1. Gente tem família. Gente tem amigos. Gente tem amores. Gente tem sentimento. Gente tem sonhos. ... E pode o mundo girar, o progresso se instalar; mas, só gente é que faz a vida pulsar em todas as suas vertentes.