Quem
sabe com “jeitinho”???
Por
Alessandra Leles Rocha
Quem diria que o brasileiro,
algum dia, iria se rebelar contra o “jeitinho”!
Esse comportamento nacional instituído e quase “folclórico”, de repente passou
a ser percebido com um desvio de caráter importante e merecedor de repreensão a
altura do agravo. Essa história de ter gente “furando fila” para se vacinar não caiu nada bem, nesses tempos pandêmicos.
Depois de tanta controvérsia,
desinformação e mentiras, a grave situação que se encontra o país fez grande
parte da população “cair na real” e
passar a defender a vacinação. Mas, como não poderia deixar de ser, alguns
aproveitaram a deixa para não perder o hábito do “jeitinho”. E de ponta a ponta do território notícias do mal feito
vieram à tona para a vergonha de alguns e indignação de muitos outros.
O importante dessa mudança de
perspectiva é que a tolerância social parece ter mesmo chegado ao fim. As
pessoas estão entendendo a dimensão dos prejuízos que esses supostos “deslizes” desencadeiam em termos
coletivos. A velha “carteirada”
acentua um tipo de prerrogativa que só faz legitimar uma contradição; afinal de
contas, somos ou não “todos iguais
perante a lei, sem distinção de qualquer natureza” 1?
E esse movimento que distingue
uns em detrimento de outros mascara e invisibiliza outras tantas más condutas
sociais, tais como o racismo, os preconceitos, as intolerâncias e as violências.
Porque se estabelece um consentimento social, ainda que velado, para fazer. Há
uma conivência que se mantém até que alguém decida manifestar-se em oposição. O
fato dessas práticas existirem há tempos não significa que sua essência antiética
e imoral foi suprimida. De modo que sua existência parece mais relacionada a
uma posição de simples afronta deliberada.
Assim, ao contrário da sociedade
querer demonstrar o melhor de si na aplicação da excelência de suas virtudes,
ela faz apologia do escracho. Age na contramão dos valores humanos, do
balizamento das leis. E quando pega em flagrante desconversa, responde de
maneira vaga e inconsistente, na espera de que tudo caia rapidamente no poço
profundo do esquecimento. O que já deixa clara uma intenção subliminar de em
uma próxima oportunidade repetir o feito.
A indignação que parece brotar
nesse momento é, então, importante porque agora dá sinais mais consistentes do
estabelecimento de uma correlação entre o “jeitinho” e a “corrupção”, por parte
da sociedade. De repente encontrou-se o fio da meada que liga esses dois pontos
obscuros da história nacional, os quais tanto maculam a identidade do país.
Afinal, desde os primórdios, há mais de 500 anos, registra-se o movimento dessas
práxis na resultante de uma expressão bem conhecida, o “toma lá dá cá”.
A sociedade tem tido a
oportunidade de ver materializados os prejuízos de diversas ordens por conta
dos veios de corrupção instituídos nas diversas esferas de poder e, finalmente,
entendeu que é ela quem paga a conta no final. Os erros alheios lhe caem
pesados sobre os ombros, em uma dinâmica que parece sem fim. De modo que todos
os sacrifícios realizados pelos cidadãos não se convertem em benefícios;
sobretudo, quando eles mais precisam.
Tudo isso possibilitou desconstruir
a narrativa das pequenas e das grandes corrupções para a compreensão de que não
há gradação nesse caso. Uma torneira de reservatório gotejando horas a fio vai
desperdiçar o mesmo tanto que poderia despejar se aberta de uma única vez. Nem
tampouco, de que há explicações capazes de justificar um ato de corrupção seja
ele qual for.
Cansada de dar “murros em ponta de faca” a sociedade, talvez
não em sua totalidade, mas em grande parte, decidiu se posicionar a respeito. Sair
da teoria para a prática, no que diz respeito a exercitar a sua cidadania. Uma transformação
que não se mede pela amplitude do passo, mas pela sua significância. Porque romper
com aquilo que está incrustado no inconsciente coletivo não é nada fácil. Talvez
não extirparemos a corrupção e o “jeitinho”
do país; mas, só de não aceitarmos mais, de nenhuma forma, a sua impunidade,
isso já será algo extraordinário.