Até
o limite da tolerância
Por
Alessandra Leles Rocha
É sempre assim, só depois que os
calos doem é que o cidadão reclama. Até que chegue nesse limite de tolerância,
tudo vai sendo levado no improviso, na reza e na boa fé “de quem sempre espera um dia alcança”. Só que esse não deveria ser
o roteiro da vida, porque, na verdade, não é mesmo. Não foi de repente que as
mazelas brasileiras apareceram. Foi em um dos “de repente” da vida que, agora,
elas se fizeram visíveis em forma e extensão.
Esse retrato caótico do morticínio
pandêmico não é mais do que o resultado de décadas da trivialização dos
problemas. Um dia o abandono social alcança a última fronteira de resistência.
Infelizmente, a sociedade brasileira acredita que nem tudo faz parte da sua
responsabilidade, que isso ou aquilo não é problema seu, ... No entanto, não é
bem assim.
Ora, o Brasil é um todo. A
começar da cidadania que não distingue ninguém em graus de importância; todos
são brasileiros. Gente que está sob o crivo das mesmas leis, dos mesmos
impostos, das mesmas línguas oficiais – o português e a Língua Brasileira de
Sinais (LIBRAS), das mesmas demandas e desafios, enfim...
A questão é que há séculos a
sociedade brasileira se permite enxergar desigual, com base no tripé status,
poder e dinheiro. Assim, separam-se pessoas e geografias. Uns mais, outros
menos. Em um movimento constante de inacessibilidade que se perpetua para não
comprometer as regalias e os privilégios de uns em detrimento de outros.
Quando varrido por uma
imprevisibilidade qualquer, o país sangra as suas cicatrizes não curadas. Eis que
se percebe, então, a resposta de seu próprio abandono. Não houve quem, de fato,
tivesse o visto com a seriedade e a profundidade necessárias. Ninguém que
tivesse buscado pôr fim aos desmandos, aos obstáculos, os quais sempre desafiaram
o raiar de uma grande e efetiva transformação.
De modo que, em pleno século XXI,
o país se arrasta preso a correntes de séculos passados. Enquanto cede aos
caprichos malfazejos dos interesses individuais espúrios, o país segue
paralisado no contexto de sua coletividade. Não se desenvolve. Não progride. Não
garante, nem mesmo, a dignidade básica de sua gente.
Algo que não é percebido apenas
internamente. A identidade de um país enovelado pelas teias de sua história
colonizadora já ganhou mundo. Ao ponto de se questionar quem seria de fato o
Brasil, dadas as suas enormes incongruências discursivas e comportamentais. Uma
nação que tenta se equilibrar sob o dilema daquilo que foi um dia e o que
gostaria de ser ou ter possibilidade de.
Se não sabe quem é, não sabe exercer
o seu papel no mundo. Situação que não o
deixa, portanto, passar incólume. Vez por outra, mete os pés pelas mãos. Cria constrangimentos.
Passa vergonha gratuitamente. Como na máxima do adulto infantilizado e inconveniente.
Mas, tudo isso tem efeito cumulativo.
É assim que se formam as “bolas
de neve”. A ausência de comportamentos resolutivos apropriados desencadeia
desdobramentos inimaginados em algum momento da história. É; porque a vida não
corre numa linearidade roteirizada. O que pode parecer um pequeno deslize hoje,
alguns amanhãs adiante cobram o preço de se configurarem incidentes
diplomáticos importantes.
Essas reflexões me fazem crer,
cada vez mais, que muito antes de uma liderança, o Brasil necessita de alguém disposto
a interromper com seu ciclo de mazelas crônicas, a enfrentar os problemas na raiz.
O discurso das reformas, até hoje, foi sempre
superficial e inconsistente porque parte da negação de ver holisticamente o
próprio objeto fundamental, o país. Seria o mesmo que reformar um edifício da
década de 30, do ponto de vista estético, e manter sua hidráulica e elétrica inalteradas.
A verdade absoluta é que a permissividade
interesseira conduziu o Brasil à deterioração secular de sua estrutura. Temos déficits
e gargalos mil, necessitando soluções urgentes; a fim de que se possa destravar
as engrenagens do desenvolvimento contemporâneo nacional, antes que atinja o seu colapso total.
Não se tratam apenas de
metamorfoses burocráticas, como defendem alguns, para alçar voos no cenário econômico
mundial. É fundamental que o país demonstre exuberância competitiva, criativa,
inovadora. É isso o que repercute na qualidade, no preço, na facilidade de
entrega, ... na conquista do espaço mercantil e industrial global.
Já temos, portanto, lastro de
história suficiente para admitir que nem colonizadores, nem burocratas, nem “salvadores da pátria”, nem caudilhos
foram capazes de fazer pelo país o que ele realmente precisa. Porque todos esses
foram capazes de enxergar; mas, optaram deliberadamente por não ver. E isso nos
custou, até aqui, voltas ininterruptas sobre um círculo de desalento sem fim. Cabe,
então, “desavestruzar” e pensar sobre os parâmetros que devem balizar nossas
escolhas, no intuito de que a história possa, finalmente, desfrutar de melhores
perspectivas.