domingo, 27 de junho de 2021

Na mais perfeita desarmonia desumana


Na mais perfeita desarmonia desumana

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Infelizmente, o brasileiro se acostumou tanto a trivializar o cotidiano, que essa prática se tornou a razão de sustentação das desigualdades e, particularmente, das desumanidades sociais. Atitudes, comportamentos, discursos e narrativas que, em algum momento desses 500 anos de história, encontravam respaldo institucional, e às vezes, até legal, para existirem, em pleno século XXI não cabem mais.

Uma pena, que certos indivíduos não tenham se dado conta dos processos de transformação do mundo e suas repercussões no campo das análises crítico-reflexivas.

Porque são as investidas desesperadas e inoportunas de tentar reafirmar tais pensamentos, o que mais contamina e deteriora as relações humanas, na contemporaneidade, sob a forma de violências verbais, físicas, psicológicas e morais.

Algo que ultrapassa as fronteiras do desconforto ou da intolerância, para se firmarem como garantias de uma prerrogativa de eventuais direitos, regalias e privilégios, legitimados em tempos que não existem mais.

Paira, então, sobre a sociedade brasileira o fantasma do “vale quanto pesa”, ou seja, o poder capital dos indivíduos, o qual se traduz tanto no espaço ocupado na hierarquia social quanto no fato de ter ou não um lugar de fala e representatividade. Como se uns vivessem para servir e outros para serem servidos.

Acontece que essa percepção ou compreensão da dinâmica social promove uma verdadeira catástrofe na construção da consciência cidadã, porque há uma fragmentação da população; na medida em que alguns têm importância e outros não. O país não se vê coeso, inteiro, pleno; portanto, os interesses e as demandas são defendidos de maneira enviesada e tendenciosa. Porque o senso coletivo foi suprimido das prioridades, como se isso não tivesse implicações graves e maiores.

Isso é tão sério que, em abril deste ano, o Instituto Locomotiva apresentou dados de uma pesquisa em que a classe média brasileira, durante a Pandemia, havia se nivelado ao mesmo tamanho da classe baixa 1. Mas, apesar de alguns “ais” e “uis”, no frigir dos ovos, o assunto acabou esquecido no inconsciente coletivo.

E a razão disso é simples, a população chegou a um nível de desagregação que não consegue estabelecer as conexões mentais capazes de traduzir as repercussões negativas desse fato para o país. É como se seguissem à risca o provérbio, “Cada um por si e Deus por todos”.  

Pois é, seria fantástico se a vida transcorresse assim! Mas, a verdade é bem outra. O fato de a sociedade vestir sua máscara blasé e fazer cara de paisagem, para não se envolver no cotidiano, é inútil.

Os problemas explodem e respingam em todos ao redor. Ninguém sai ileso. Ninguém é poupado. De um jeito ou de outro, o pior para alguns não significa, necessariamente, o melhor para outros, pois a vida é profundamente complexa.

Daí o fortalecimento mundial da compreensão de que as desigualdades representam atraso para qualquer sociedade. Quanto mais comprometidas com o bem-estar coletivo, mais os seus cidadãos encontram razões para viver a plenitude de suas habilidades e competências. De modo que as engrenagens do desenvolvimento trabalham a pleno vapor e os resultados são sentidos de maneira holística.  

Quando o brasileiro coloca alguém à margem, ou no fim da fila, ou em algum ponto de esquecimento ou indiferença, o que ele demonstra explicitamente é a dimensão do equívoco de sua compreensão entre autonomia e autossuficiência.

Primeiro, porque ninguém é autossuficiente nessa vida. Todos dependem de todos; ninguém joga nas onze. Segundo, porque o brasileiro não tem por hábito o exercício pleno da sua autonomia. O brasileiro gosta de ser servido, de ter quem realize por ele, decida por ele, pense por ele ...

E como esse modo de ser e pensar está tão arraigado e naturalizado nas suas práxis, ele não vê que “O progresso roda constantemente sobre duas engrenagens. Faz andar uma coisa esmagando sempre alguém” (Victor Hugo – romancista francês).

Até que um dia, tudo para; porque, “A propriedade privada introduz a desigualdade entre os homens, a diferença entre o rico e o pobre, o poderoso e o fraco, o senhor e o escravo, até a predominância do mais forte”, ou seja, “O homem é corrompido pelo poder e esmagado pela violência” (Jean-Jacques Rousseau – filósofo genebrino).

Por isso, “O Brasil, último país a acabar com a escravidão tem uma perversidade intrínseca na sua herança, que torna a nossa classe dominante enferma de desigualdade, de descaso” (Darcy Ribeiro – antropólogo, historiador, sociólogo e político brasileiro).

A questão é que essa enfermidade, com o tempo, se alastrou, repercutindo entre toda a população em um movimento de hipervalorização dos pequenos poderes. Basta pensar que dispõe de algum mínimo poder, para que o indivíduo faça uso dele de maneira imperativa sobre os demais, sem se preocupar com as consequências e desdobramentos. E nessa toada, o país em pedaços vaga dividido entre os privilegiados e os despossuídos, na mais perfeita desarmonia desumana.