Na
mais perfeita desarmonia desumana
Por
Alessandra Leles Rocha
Infelizmente, o brasileiro se
acostumou tanto a trivializar o cotidiano, que essa prática se tornou a razão
de sustentação das desigualdades e, particularmente, das desumanidades sociais.
Atitudes, comportamentos, discursos e narrativas que, em algum momento desses
500 anos de história, encontravam respaldo institucional, e às vezes, até
legal, para existirem, em pleno século XXI não cabem mais.
Uma pena, que certos indivíduos não
tenham se dado conta dos processos de transformação do mundo e suas repercussões
no campo das análises crítico-reflexivas.
Porque são as investidas desesperadas e inoportunas de tentar reafirmar tais pensamentos, o que mais contamina e deteriora as relações humanas, na contemporaneidade, sob a forma de violências verbais, físicas, psicológicas e morais.
Algo que ultrapassa as fronteiras
do desconforto ou da intolerância, para se firmarem como garantias de uma
prerrogativa de eventuais direitos, regalias e privilégios, legitimados em
tempos que não existem mais.
Paira, então, sobre a sociedade
brasileira o fantasma do “vale quanto
pesa”, ou seja, o poder capital dos indivíduos, o qual se traduz tanto no
espaço ocupado na hierarquia social quanto no fato de ter ou não um lugar de
fala e representatividade. Como se uns vivessem para servir e outros para serem
servidos.
Acontece que essa percepção ou
compreensão da dinâmica social promove uma verdadeira catástrofe na construção
da consciência cidadã, porque há uma fragmentação da população; na medida em que
alguns têm importância e outros não. O país não se vê coeso, inteiro, pleno; portanto,
os interesses e as demandas são defendidos de maneira enviesada e tendenciosa. Porque
o senso coletivo foi suprimido das prioridades, como se isso não tivesse
implicações graves e maiores.
Isso é tão sério que, em abril
deste ano, o Instituto Locomotiva apresentou dados de uma pesquisa em que a
classe média brasileira, durante a Pandemia, havia se nivelado ao mesmo tamanho
da classe baixa 1. Mas, apesar de alguns “ais”
e “uis”, no frigir dos ovos, o assunto acabou esquecido no inconsciente
coletivo.
E a razão disso é simples, a
população chegou a um nível de desagregação que não consegue estabelecer as
conexões mentais capazes de traduzir as repercussões negativas desse fato para
o país. É como se seguissem à risca o provérbio, “Cada um por si e Deus por todos”.
Pois é, seria fantástico se a
vida transcorresse assim! Mas, a verdade é bem outra. O fato de a sociedade
vestir sua máscara blasé e fazer cara de paisagem, para não se envolver no
cotidiano, é inútil.
Os problemas explodem e respingam
em todos ao redor. Ninguém sai ileso. Ninguém é poupado. De um jeito ou de
outro, o pior para alguns não significa, necessariamente, o melhor para outros,
pois a vida é profundamente complexa.
Daí o fortalecimento mundial da
compreensão de que as desigualdades representam atraso para qualquer sociedade.
Quanto mais comprometidas com o bem-estar coletivo, mais os seus cidadãos encontram
razões para viver a plenitude de suas habilidades e competências. De modo que
as engrenagens do desenvolvimento trabalham a pleno vapor e os resultados são
sentidos de maneira holística.
Quando o brasileiro coloca alguém
à margem, ou no fim da fila, ou em algum ponto de esquecimento ou indiferença, o
que ele demonstra explicitamente é a dimensão do equívoco de sua compreensão entre
autonomia e autossuficiência.
Primeiro, porque ninguém é autossuficiente
nessa vida. Todos dependem de todos; ninguém joga nas onze. Segundo, porque o
brasileiro não tem por hábito o exercício pleno da sua autonomia. O brasileiro
gosta de ser servido, de ter quem realize por ele, decida por ele, pense por
ele ...
E como esse modo de ser e pensar
está tão arraigado e naturalizado nas suas práxis, ele não vê que “O progresso roda constantemente sobre duas
engrenagens. Faz andar uma coisa esmagando sempre alguém” (Victor Hugo –
romancista francês).
Até que um dia, tudo para; porque,
“A propriedade privada introduz a desigualdade
entre os homens, a diferença entre o rico e o pobre, o poderoso e o fraco, o
senhor e o escravo, até a predominância do mais forte”, ou seja, “O homem é corrompido pelo poder e esmagado
pela violência” (Jean-Jacques Rousseau – filósofo genebrino).
Por isso, “O Brasil, último país a acabar com a escravidão tem uma perversidade intrínseca
na sua herança, que torna a nossa classe dominante enferma de desigualdade, de
descaso” (Darcy Ribeiro – antropólogo, historiador, sociólogo e político
brasileiro).
A questão é que essa enfermidade,
com o tempo, se alastrou, repercutindo entre toda a população em um movimento
de hipervalorização dos pequenos poderes. Basta pensar que dispõe de algum mínimo
poder, para que o indivíduo faça uso dele de maneira imperativa sobre os
demais, sem se preocupar com as consequências e desdobramentos. E nessa toada,
o país em pedaços vaga dividido entre os privilegiados e os despossuídos, na mais
perfeita desarmonia desumana.