Os
milhões e as mortes
Por
Alessandra Leles Rocha
É, ou pelo menos deveria ser,
algo extremamente impactante pensar em MEIO
MILHÃO DE MORTES, causadas por uma doença que já é passível de prevenção
por meio de vacinas; a COVID-19. Choca, escandaliza, horroriza, ... pensar
sobre um acontecimento tão nefasto como esse.
No entanto, quem disse que a
morte, no Brasil, está restrita a esse viés? Meio milhão só por uma causa
específica, sem contar outras doenças, ou fome, ou miséria, ou violências diversas,
ou alguma manifestação das profundezas da subjetividade humana.
Afinal de contas, morrer não é só
parar de respirar, o coração de pulsar, o cérebro de funcionar. Tem muita gente
morta circulando por aí. Isso acontece quando há uma ruptura total com os
valores fundamentais que sustentam o sentido da vida humana; sobretudo, na sua
concepção mais bonita da convivência e da coexistência coletiva.
A indiferença e o escárnio com
que muitos têm se manifestado em relação as mortes de seus semelhantes, ao
contrário do que compreendem, só faz demonstrar o quão mortos, já estão. Fenecendo
em seus casulos de individualismo asfixiante. Dependentes da satisfação de
desejos insaciáveis, oriundos de valores e princípios deturpados, para poderem
continuar vagando, como almas penadas, inconscientes de sua condição
existencial.
Por isso, creditar a
responsabilidade desse MEIO MILHÃO DE
MORTES às narrativas e comportamentos de determinados indivíduos,
geralmente aqueles com maior influência ou visibilidade, não traduz a
realidade. O papel destes foi legitimar a abertura de uma zona de conforto,
onde outros tantos, puderam se permitir exacerbar o mesmo individualismo. Estamos
diante de uma fronteira bem definida, ou seja, quem é contra ou a favor da morte.
Sim, porque essa é uma questão pacificada por si só.
Talvez seja isso, o que produz
tamanho desconforto e instabilidade social. Seria mais fácil se fosse esse ou
aquele a defender algo tão absurdamente mórbido; mas, de repente, se percebe
que são muitos fazendo eco para uma mesma narrativa; muitos mortos vivos, por
aí. Gente que saiu do seu obscurantismo cotidiano para brilhar no “lado negro da força”, com uma
disposição de defesa convicta e arraigada, que chega a espantar.
Como se a dissimulação encenada
por muito tempo tivesse chegado ao fim. O individualismo tomou as rédeas da
situação e resolveu imperar. Portanto, não há o “nós”. Não há o senso coletivo.
Não há a defesa das demandas sociais; somente, as individuais. Cada um
sobrevive na sua bolha de interesses, a qual não inclui, nem mesmo, uma
eventual preocupação com a própria sobrevivência, porque está totalmente
centrada no TER ao invés do SER.
Razão pela qual os milhões distribuídos
em verbas no Congresso Nacional, ou que rolaram debaixo dos panos dos universos
paralelos que têm se descortinado a partir de investigações diversas, ou
aqueles gastos com medicamentos sem eficiência alguma para combater a Pandemia,
também, passam indiferentes para determinados indivíduos dentro da sociedade.
Do mesmo modo a escalada do
desemprego, da miséria e de tantas outras mazelas crônicas do país, estimadas
estatisticamente pela escala dos milhões de seres humanos, também, parecem invisíveis
para essas pessoas.
Portanto, por pior que seja
admitir, já ultrapassamos os MILHÕES DE
MORTOS a lamentar. E essa verdade cruel e indigesta dimensiona o grau de
esfacelamento que a sociedade brasileira conseguiu atingir. Porque a morte no
seu sentido concreto, já sabemos ser irrecuperável; mas, essa morte subjetiva,
tende a construir outras mortes dentro do ambiente coletivo humano. Mortes instrumentalizadas
pelos piores sentimentos e emoções que um ser humano pode armazenar dentro de
si.
Estamos diante de uma cova sem
fundo. Assistindo, lenta e gradualmente, ao morticínio de um país, através da degradação
e deturpação da sua identidade nacional, que sintetiza as suas condições
sociais e afetivas de pertencimento a uma determinada cultura.
Cada dia respiramos menos. Cada dia
o fôlego diminui. O que vem exigindo das pessoas um esforço sobrehumano para
resistir às investidas mortais. Todos os dias temos razões para sentir falta,
para carecer de alguma coisa ou de alguém. Todos dias diminuímos um pouco mais.
Então, antes que seja tarde
demais, que a morte já tenha nos consumido até o mísero vestígio da alma,
convido a pensar sobre a seguinte citação de Rachel de Queiroz. Bons
entendedores, entenderão!
“O
homem feliz é o que não tem passado. O maior dos castigos, para o qual só há
pior no inferno, é a gente recordar. Lembrança que vem de repente e ataca como
uma pontada debaixo das costelas, ali onde se diz que fica o coração. Alguém pode
ter tudo, mocidade, dinheiro no bolso, um bom cavalo debaixo das pernas, o
mundo todo ao seu dispor. Mas não pode usufruir nada disso por quê? Porque tem
as lembranças perturbando. O passado te persegue, como um cão perverso nos teus
calcanhares. Não há dia claro, nem céu azul, nem esperança de futuro, que
resista ao assalto das lembranças” (Memorial de Maria Moura, 1992).