sexta-feira, 31 de maio de 2024

Qual o peso da liberdade? Qual a capacidade de resistência da Democracia?


Qual o peso da liberdade?  Qual a capacidade de resistência da Democracia?

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Observando as análises que foram tecidas a respeito da condenação do ex-Presidente do EUA, muitos dos comentários jornalísticos demonstram a nítida intenção de considerar os fatos apenas na perspectiva da figura pública e não, daquele país.  

Na verdade, nesse momento em que a temperatura dos acontecimentos está elevadíssima, quaisquer conjecturas sobre os desdobramentos e reverberações soam como meras especulações. Mas, uma coisa é fato, não é sobre o ex-Presidente, e pretenso candidato às eleições de 2024, que se estabelece o fiel da balança.

Os números das pesquisas eleitorais, o ânimo enfurecido dos seus apoiadores e simpatizantes, a expressão do pensamento político nos EUA, nada disso é capaz de responder a certas questões basilares da identidade nacional estadunidense. De modo que o decantar dos dias e a imprevisibilidade que rodeia o mundo, irão trazer à tona o essencial.

A ideia de ser a nação mais forte, mais poderosa, a maior potência global, cobra um ônus diário. E diante das conjunturas atuais, a vida não está fácil para ninguém, nem mesmo para eles. O descontentamento interno provocado pelas decisões em relação às guerras na Ucrânia e na Palestina são um bom exemplo de como existem fissuras na estrutura social do país.

Sem contar, os desafios impostos pela disputa na influência econômica global com os chineses ou na disputa de poderio bélico com os russos, os quais não representam algo banal. Muito pelo contrário. São dois aspectos extremamente sensíveis à manutenção prática e discursiva da imagem de grande potência mundial, que os EUA sempre difundiram.

E é nesse ponto que reside o fiel da balança. Se o peso dessas situações, acrescido ou não de outros elementos insólitos possíveis de surgir no caminho, transbordar consequências desagradáveis, a população tende a não lidar de maneira pacífica ou equilibrada com os acontecimentos. Afinal, isso mexe com algo profundo na identidade nacional estadunidense, em termos de crenças, valores, princípios e convicções.

Ora, eles não lidam bem com fracassos, insucessos, derrotas, porque seu inconsciente coletivo foi historicamente forjado pela ideia da predestinação divina à gloria, à liderança, à supremacia. Eles se sentem os melhores, os mais aptos, os mais, em todos os sentidos.

Acontece que, agora, eles foram expostos ao ineditismo de ter um ex-Presidente, e pretenso candidato às eleições de 2024, considerado culpado, por 34 acusações, em julgamento criminal. O cerne dessas acusações diz respeito a pagamentos de campanha ilegais a fim de manter o silêncio de uma ex-atriz pornô para não prejudicar a eleição presidencial a que ele concorria.

E diante dos muitos aspectos antiéticos que envolvem o caso, não é difícil perceber que o orgulho estadunidense foi atingido, em cheio. Ainda que muitos cidadãos permaneçam acreditando na vocação predestinada do ex-Presidente para liderar o país, o conservadorismo é sim, uma questão extremamente sensível, por lá. Traições extraconjugais já afetaram as carreiras políticas de muitos outros candidatos, tanto no campo Democrata quanto Republicano. De modo que esse ponto não pode ser desconsiderado.

Depois, há o fato imutável de que o restante do planeta está a par do veredito, de ontem. Portanto, a imagem do ex-Presidente está, no mínimo, arranhada e, eventualmente, comprometida, caso ele venha a receber uma pena de prisão. Ora, basta imaginá-lo reeleito nesse cenário constrangedor, a figura tida como a mais poderosa do mundo, sendo apontada como criminoso.

Queiram ou não admitir, embora a contemporaneidade pareça ter subvertido vários aspectos na sociedade, há sim, uma flagrante perda de credibilidade funcional ao ex-Presidente, em razão do abalo ético promovido por essa condenação. A inexistência de precedentes históricos a respeito, em relação aos EUA, afeta a percepção do restante do mundo.

Considerando que a nação, tida como a mais poderosa do planeta, confirme a reeleição do Ex-Presidente, isso abre espaços para emergirem sucessivos questionamentos à sua liderança. Afinal de contas, ele assumiria o cargo político mais importante, na condição de criminoso, julgado unanimemente por um corpo de doze jurados. O que abre um flanco para eventuais disputas, por parte das nações que rivalizam espaços geopolíticos com os EUA.

Ora, trata-se de um prato cheio para tensões, dentro e fora do território estadunidense. Na medida em que as conjunturas negativas se acirram, há uma tendência natural de desagregação de apoio ao Presidente. A popularidade derrete, especialmente, entre os cidadãos, ao falar mais alto os valores, crenças e princípios que sustentam a sua identidade nacional.

Depois de tantas instabilidades geopolíticas fomentadas por governos dos EUA, há algum tempo, uma parcela significativa da população não parece mais afeita a compactuar com situações que comprometam a sua importância no mundo. Não, não basta mais dizer “EUA primeiro”. É preciso consolidar a materialidade dessa ideia. Caso contrário, eles vão para as ruas protestar e manifestar publicamente o seu descontentamento.  

Ainda que os acontecimentos de 6 de janeiro de 2021, quando o Capitólio foi invadido por uma turba enfurecida de cidadãos, possam sugerir a resistência de uma base de apoio significativa ao ex-Presidente, e pretenso candidato às eleições de 2024, o cenário atual, para ele, é outro.

Como escreveu Steven Levitsky, “Sempre há incerteza sobre como um político vai se comportar no cargo, mas, como foi observado antes, líderes antidemocráticos são muitas vezes identificáveis antes de chegarem ao poder” 1. E se isso não foi observado antes, agora, é.  Como qualquer outro cidadão, ele foi punido pelas leis do seu próprio país. Ele caiu do Olimpo onde parecia intocável.

Um contexto que torna ainda mais frágil a Democracia estadunidense, do que o próprio ataque ao Capitólio. O declínio da sua sociedade está sob uma ameaça real. Assim, o modo como eles administrarem essa questão é o que vai determinar o curso da sua história. Esse é o tempo de descobrir qual o peso da liberdade e qual a capacidade de resistência da Democracia.



1 LEVITSKY, S.; ZIBLATT, D. Como as democracias morrem. Rio de Janeiro: Zahar, 2018. 272p.   

quinta-feira, 30 de maio de 2024

Os segredos dos jabutis


Os segredos dos jabutis

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Ah, o Brasil! Nem tudo o que parece é! Como milhares de outros brasileiros e brasileiras, me coloquei a acompanhar os debates em torno do imposto sobre compras on-line. No entanto, quando a discussão chegou ao Senado foi possível perceber a realidade de um grande imbróglio. Afinal, como sempre acontece, jabutis - assuntos sem relação com o tema inicial da proposta parlamentar -, surgiram na tramitação do Legislativo Federal.

Bom, o que era para ser, então, um projeto de lei voltado para instituir um Programa de Mobilidade Verde e Inovação (Programa Mover), teve em seu texto a agregação da emenda relativa ao imposto sobre compras on-line. Contudo, de última hora, eis que um outro jabuti, estabelecendo exigências de maior conteúdo local para equipamentos da indústria petrolífera e fornecedores ao setor de petróleo e gás do Brasil, emergiu cheio de segredos.

E esse foi o ponto da discórdia entre Câmara dos Deputados e Senado Federal. Sem o devido debate necessário ao tema, o impacto que tal emenda pode ter sobre os interesses da Petrobrás não pode ser desconsiderado.

Contrários à ideia, inclusive, expuseram que ela já tem acesso a tais equipamentos a custos mais baixos no exterior. O que significa que esse tipo de proposta pode impactar severamente o equilíbrio financeiro da empresa e repercutir em ônus para o consumidor nacional.

Então, um velho fantasma emergiu nas minhas reflexões. Começando pela taxação sobre compras on-line, como sempre, os argumentos apresentados, por aqueles a favor, tendem a soar legítimos. No entanto, tenho cá as minhas dúvidas se a discussão a respeito tomaria o mesmo caminho se as empresas fossem norte-americanas. Aliás, não faz muito tempo que o Brasil esteve, por exemplo, sob fogo cruzado entre EUA e China na guerra dos chips 1.

Ora, não sejamos ingênuos! Como importante potência global, os EUA sempre colocam a frente os seus interesses. O progresso e o desenvolvimento de seus aliados e simpatizantes sempre acontece sob rédeas curtas do governo estadunidense. Ao menor sinal de ameaça ou de empecilho aos seus objetivos, eles trabalham sutilmente a fim de interromper o processo.

De modo que, entre idas e vindas do tempo, a sensação que se tem é de que o Brasil não consegue se desvencilhar da ingerência norte-americana, a qual esteve presente em momento críticos e importantes da nossa história nacional 2. Algo que vai além das relações comerciais e diplomáticas internacionais, para abarcar um tipo de controle e vigilância ao crescimento do protagonismo brasileiro. Afinal, o Brasil sempre se destacou no cenário das Américas do Sul e Central.

Assim, tendo em vista as inúmeras disputas geopolíticas e econômicas entre EUA e China, não seria de se espantar que houvesse um interesse de restringir as relações comerciais entre Brasil e a referida potência asiática.

Sabendo que a direita brasileira e seus matizes, mais ou menos radicais e extremistas, sempre foram simpatizantes aos EUA, e fazem questão de manter e estreitar laços, a pretexto do bom e velho protecionismo econômico defendido pela política neoliberal, a questão se colocou como ideal.

A princípio, em decisão da Câmara dos Deputados, foi aprovada a taxação de 20% para compras internacionais de até US$50, ou seja, aproximadamente R$260.

Mas, não para por aí. Tem-se visto, recentemente, a Petrobrás ocupar espaço importante na mídia nacional e internacional, inclusive, com mudança na Presidência da empresa. E, apesar de serem tempos de um debate acirrado sobre matrizes energéticas sustentáveis, o petróleo ainda permanece ocupando relevância no contexto produtivo e econômico global.

Por isso, deliberações na calada da noite, no apagar das luzes, sem a devida transparência, como foi o caso do tal jabuti agregado ao projeto de lei do Programa Mover, causam tanta estranheza. Quem mais poderia se beneficiar com eventuais impactos orçamentários à Petrobrás?

Se a própria emenda implica em uma possível oneração na compra de certos produtos essenciais pela empresa, isso representa uma real possibilidade de instabilidade orçamentária. O que, inevitavelmente, tensiona e fragiliza as suas relações comerciais internas e externas; bem como, abre espaço para as suas concorrentes no mercado.

Em linhas gerais, esse movimento retira quaisquer possibilidades de uma eventual reafirmação de protagonismo da empresa, no cenário internacional, por conta de desgastes de gestão. Sem contar que, analisando pela perspectiva de duas guerras em curso, o petróleo tem um papel fundamental na geopolítica global, sob diferentes aspectos.

É por essas e por outras, que sempre discuto o ranço histórico colonial que nos assombra. Porque isso significa que o Brasil tem sido duramente marcado, ao longo dos seus pouco mais de 500 anos, por diversas expressões de domínio político, econômico, cultural e religioso.

Algo que, em síntese, traduz como “Ideologia são as maneiras como o sentido serve para estabelecer e sustentar relações de dominação” (John B. Thompson) 3. E isso, caro (a) leitor (a), olhando para o histórico colonial brasileiro, torna fácil compreender as razões que fazem a Democracia nacional tão frágil e vulnerável, merecendo extrema e contínua atenção e reflexão.

quarta-feira, 29 de maio de 2024

Nós e nossas gradações ...


Nós e nossas gradações ...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Parece que chegamos ao ápice da desconexão com a realidade. De repente, uns e outros começam a defender, no Brasil, a ideia de extremismo moderado! O que dizer, não é mesmo?! A tendenciosa criatividade humana é sempre espantosa!

Isso é que dá estabelecer estereótipos e mais estereótipos, por aí. O extremismo não está somente na ignorância, na brutalidade, na incivilidade, na crueldade, das manifestações alheias. O extremismo quase sempre chega de maneira sutil na sociedade, pela força retórica de ideias que encontram consonância nas insatisfações populares.

Acontece que, passado algum tempo, o extremismo se reafirma através do fundamentalismo que cerceia o pensamento, exigindo uma obediência irrestrita a interpretação dada a um conjunto de princípios fundamentais. Algo tão forte que, segundo Umberto Eco, “Fundamentalistas dão um toque de arrogante intolerância e rígida indiferença para com aqueles que não compartilham suas visões de mundo”.

Fácil perceber, então, diante de um mundo tão consumido pelo fanatismo ideológico! O que no caso do Brasil, carrega o peso da herança histórica colonial, no que diz respeito, principalmente, à construção do próprio modelo social. A fragmentação desencadeada pelas camadas de desigualdade, presentes no país, é o que sustenta esse fanatismo.

O topo da pirâmide social nunca esteve disposto a negociar seus espaços de poder, suas regalias e seus privilégios, em nenhum momento da história. Por isso esses indivíduos exercem, de maneira extremista, o seu papel social de controlar, vigiar e punir, aqueles que ousam transgredir e ultrapassar as fronteiras predeterminadas.

E a forma de exercer esse extremismo se dá pelo fato de possuírem uma representatividade estrategicamente alocada nas instituições, nos poderes, nos meios de produção e comércio, nos templos religiosos, enfim. De modo que o fundamentalismo das suas ideias possa ser continuamente reverberado e reafirmado no inconsciente coletivo nacional.

A grande questão é que o extremismo, como é possível constatar nas páginas da história, costuma se perder em si mesmo. A ânsia que reside nesse comportamento é, muitas vezes, indomável e faz perder o foco nos seus próprios objetivos. O extremismo é afoito, intempestivo, a tal ponto que negligencia a prudência e o planejamento, em suas atitudes.

Moldando-se a partir de seus interesses imediatos, ele se esquece do amanhã, do depois. Ora, pensando na perspectiva contemporânea, o cotidiano nunca esteve tão submetido à efemeridade quanto agora. Da noite para o dia, as conjunturas cotidianas se realinham e se organizam totalmente diferentes das projeções iniciais.

Haja vista o exemplo de duas guerras em curso. Cada vez mais, controlar, vigiar e punir ultrapassam as possibilidades internas e externas de qualquer país. A dinâmica dos acontecimentos é, simplesmente, frenética. Além das beligerâncias, inúmeros componentes socioambientais também contribuem para fortalecer os níveis de tensão no planeta.

Epidemias. Fome. Empobrecimento. Eventos extremos do clima. ... De modo que é importante ressaltar que esses aspectos têm uma participação direta dos agentes do extremismo global. Afinal de contas, suas escolhas, decisões, opiniões, historicamente, sempre passaram à margem de quaisquer preocupações com o ser humano; sobretudo, aqueles oriundos das camadas mais frágeis e vulneráveis da população.

Daí, quando se tem colocado sobre a mesa a pseudoideia de extremismo moderado, deve-se ter em mente um conjunto de expectativas nefastas sobre o que isso representa. Basicamente, será um contínuo efeito bumerangue, ou seja, o conjunto de responsabilidades e obrigações inerentes ao extremismo, tende a recair exatamente sobre os extremistas, dada a sua imprevidência negligente e imediatismo individualista.  

Sem medir as consequências de suas escolhas, decisões e/ou opiniões, alicerçados exclusivamente em suas crenças, valores e princípios absolutos, a realidade contemporânea, então, impõe o gosto amargo do revés, ao extremismo. Os resultados insatisfatórios começam a ser contabilizados muito rapidamente. O seu fundamentalismo começa a se esfacelar diante da inconsistência e do enviesamento das suas ideias.

Aí, quanto mais tentam fanatizar o fundamentalismo a fim de assegurar o extremismo, mais o gelo se quebra sob seus pés.  A realidade dos fatos é sempre mais contundente do que as mentiras, as idealizações, os delírios. E ela nem precisa, de discursos ou palavras, para responder, para reagir. Gostem ou não, a realidade está sempre no controle da vida.

Portanto, é prudente arrefecer quaisquer ímpetos de entusiasmo envolvendo essa recente pseudoideia de extremismo moderado. Extremismo é como qualquer outro rótulo, não tem gradação para atenuar-lhe os efeitos. O que significa que não há extremismo maior, menor ou moderado.

E nesse sentido, lembremo-nos das palavras de Eric Hobsbawm quando disse que “Mito e invenção são essenciais à política de identidade pela qual grupos de pessoas, ao se definirem hoje por etnia, religião ou fronteiras nacionais passadas ou presentes, tentam encontrar alguma certeza em um mundo incerto e instável, dizendo: ‘Somos diferentes e melhores do que os Outros’”. Afinal de contas, já sabemos, ou pelo menos deveríamos, o que isso significa.  

A arte de lançar as sujeiras debaixo do tapete


A arte de lançar as sujeiras debaixo do tapete

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Ao contrário do que muitos pensam, os radicais e extremistas contemporâneos, que adoram apostar na política do medo e da insegurança, quanto mais expostos às incertezas da vida mais se exasperam e deixam evidentes as suas fragilidades e vulnerabilidades.

É simples, basta observar como as situações críticas amplificam, por exemplo, o derrame de Fake News nas mídias sociais. Sem saber como lidar com a gravidade e urgência dos fatos, esses indivíduos apelam para práxis disruptivas da estabilidade social. Foi assim durante a pandemia. É assim na catástrofe antrópico-climática do Rio Grande do Sul. ...

Quaisquer assuntos ou acontecimentos que afetem, direta ou indiretamente, os seus interesses é motivo, mais do que suficiente, para lançarem mão das estratégias nefastas e irresponsáveis disponíveis na contemporaneidade. Como se criar uma realidade paralela, idealizada, pudesse, de algum modo, atenuar ou interromper definitivamente o curso da história.

Só que não. Não são as suas vontades e quereres que determinam os eventos do mundo. No máximo, o que essas pessoas têm conseguido fazer é catalisar efeitos exatamente contrários às suas expectativas. Dentro desse contexto, muito tem sido falado a respeito do negacionismo. Pois é, cada vez mais, certos elementos da sociedade querem que a realidade seja validada segundo as suas próprias perspectivas.

Bem, isso é uma escolha que não gira, necessariamente, em torno de conhecimento ou de ignorância; mas, de pura vaidade e excessivo ímpeto de liberdade, tão comuns em tempos contemporâneos. Seja porque motivo for, o que importa é que a realidade permanece com suas verdades desconfortáveis batendo à nossa porta.

Vejam, o não vacinar não impede que o vírus Sars-COV-2 ou quaisquer outros vírus, para os quais já existem imunizantes disponíveis, continuem circulando livremente, por aí. Portanto, a negação não interrompe o ciclo de adoecimento, de mortes e de eventuais sequelas, entre os seres humanos.

A desconstrução das legislações e protocolos ambientais não impede que os episódios de emergências climáticas assolem o planeta, de diferentes maneiras. Portanto, a negação não interrompe o recrudescimento e a intensificação das enchentes, dos desmoronamentos, da elevação das águas oceânicas, do desmatamento, ... que têm consequências devastadoras para a humanidade.

A criminalização das drogas não impede que os usuários busquem caminhos alternativos para satisfazer o seu vício, como sempre aconteceu na história da humanidade. Portanto, a negação não interrompe os gatilhos que impulsionam a deterioração da saúde mental das pessoas, fazendo-as utilizar drogas, lícitas e ilícitas.

Enfim. Tudo isso só faz, ou deveria fazer, perceber que a verdade é bem mais potente e resistente do que a mentira, a ilusão. O mundo não deixa de ser o que é por isso ou por aquilo. O fluxo da vida não deixa de seguir seus caminhos porque uns e outros não querem que seja assim. Tentar represar a dinâmica do planeta é desconsiderar o poder da sua fúria incontrolável.

Decisões, escolhas, opiniões, ... só resistem até a página dois. As conjunturas da vida têm uma capacidade de se impor e de fazer acontecer, inimaginável. Não há dinheiro, no mundo, que consiga domar esse fato. É como dizia o célebre colunista Ibrahim Sued, “os cães ladram e a caravana passa” (Ditado Árabe).

O fato de vociferarem, de derramarem o seu fel odioso pelos veios das mídias sociais e pelas esquinas da vida, não significa que serão satisfeitas as suas aberrações delirantes. Não. O mundo segue o baile. Se inventa, se reinventa, se descobre, se transforma. Sempre dentro do que melhor lhe convém, do que lhe é pertinente.

E, talvez, esse seja o ponto de reflexão. Porque significa que o mundo não se curva para satisfazer as vontades de ninguém. Então, todas as expectativas, sonhos, idealizações, do ser humano acabam se esvaindo pelo ralo. Por mais que façam e aconteçam, o resultado acaba distante, anos luz, das projeções. 

A cada volta completa que os ponteiros do relógio realizam, muitas águas correm por debaixo das pontes, muitas ondas se formam e desaparecem no oceano, ... De modo que nada na vida é taxativo. Há muito mais incertezas do que certezas nos rodeando. Sem contar que as respostas, sobre tudo o que é mais importante, não chegam necessariamente por palavras.

Bem, há quem esteja apostando todas as fichas na sua própria ilusão. Não se permitindo ver a realidade como ela é, ou perceber os sinais que evitam os tropeços, os fracassos. E essa tormenta de inquietude tende a ser o caminho mais curto para que essas pessoas alcancem a sua própria ruína.

Sim, porque “O que não enfrentamos em nós mesmos encontramos como destino”, ou seja, “O homem que não atravessa o inferno de suas paixões também não as supera. Elas se mudam para a casa vizinha e poderão atear o fogo que atingirá sua casa sem que ele perceba. Se abandonarmos, deixarmos de lado, e de algum modo esquecermo-nos excessivamente de algo, corremos o risco de vê-lo reaparecer com a violência redobrada” (Carl Gustav Jung). Pensemos a respeito!   

terça-feira, 28 de maio de 2024

O Bruxo do Cosme Velho ...


O Bruxo do Cosme Velho ...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

É claro que o Bruxo do Cosme Velho, como era conhecido o escritor Joaquim Maria Machado de Assis, mereça todas as reverências internacionais 1 em pleno século XXI! De fato, a atemporalidade e a complexidade de suas obras despertam o interesse e o encantamento de qualquer leitor.

O surpreendente é descobrir que o “Livro de Machado de Assis (Memórias Póstumas de Brás Cubas) lidera vendas nos EUA após o elogio de escritora viralizar” 2, considerando que ele já esteve sob crivo de censura em 2020, pela Secretaria de Educação de Rondônia 3.  

Sim, observando o recorte temporal entre 2019 e 2022 4, quando o Brasil foi governado pela direita e seus matizes, mais ou menos radicais e extremistas, uma guerra cultural se estabeleceu, causando o banimento de obras clássicas e contemporâneas da literatura, por parte de algumas secretarias estaduais de Educação.

Mas, lançando o olhar em uma outra perspectiva, mais centrada no próprio Machado de Assis, percebi um viés, talvez, pouco levantado a respeito. Bem, a guerra cultural aqui estabelecida teve um caráter ideológico conservador, muito claro. Entretanto, isso não significa limitar as expressões artísticas à sua temática em si.

Embebida no caldo de um tradicionalismo de costumes, herdado dos tempos coloniais, estava uma extensa lista de preconceitos socioeconômicos, que se exacerbaram pelo país inteiro. Racismo. Misoginia. Xenofobia. LGBTQIA+fobia. Aporofobia. Enfim... Preconceitos esses que se personificavam na figura de muitos autores, cujas obras foram sumariamente desqualificadas e tornadas, um tanto quanto, inacessíveis ao grande público.  

E aí, pensando em Machado de Assis, é inevitável não perguntar quem foi esse gênio brasileiro? Primeiro filho mulato de um pintor e decorador de paredes e uma imigrante portuguesa, ele nasceu no Morro do Livramento, na cidade do Rio de Janeiro. Teve sua formação em escola pública. Começou a trabalhar desde cedo. Assim, é possível destilar, a partir dessas informações, muito sobre os preconceitos que pairam sobre o país, desde sempre.

Contudo, ninguém segura as ironias do destino e Machado de Assis, aos 15 anos, foi trabalhar em uma tipografia e acabou emergindo como escritor. De modo que o brilhantismo das suas palavras o tornou conhecido pela intectualidade carioca da época. Em apenas cinco anos ele já frequentava os círculos literários e jornalísticos da capital do Império.

Daí em diante, Machado de Assis só fez se agigantar na escrita e fundou, ao lado de outros intelectuais, a Academia Brasileira de Letras (ABL) 5, onde ocupou a cadeira de n.º 23 e foi o primeiro presidente. Pois é, apesar das desigualdades socioeconômicas marcadas pelo histórico colonial brasileiro, o Bruxo do Cosme Velho ascendeu e se apropriou do seu protagonismo.

Contrariando as expectativas, ele transitou livremente, e de cabeça erguida, pelo espaço das artes e da literatura nacional, munido de sua invejável capacidade intelectual e alto refinamento linguístico. O que em síntese pode ser considerada uma transgressão, de proporções inimaginadas, pelos representantes da direita e seus matizes; sobretudo, os mais radicais e extremistas.

Daí a minha dificuldade em estabelecer exatamente as razões que levaram a proibição de algumas de suas obras, durante o período entre 2019 e 2022. Porque não me parece ter sido apenas uma questão das obras em si, quanto algum aspecto da sua temática. Inclusive, considerando que no ambiente escolar, a literatura é conduzida por um professor, conhecedor da obra, dentro de um projeto contextualizado e ajustado aos interesses culturais e pedagógicos para uma determinada faixa etária.

Portanto, me parece que uma pitada generosa de preconceito foi o verdadeiro motivo. É difícil, para certos setores da sociedade brasileira contemporânea, aceitar que alguém, cuja biografia não exala o elitismo das grandes nações europeias, tenha atingido um patamar de importância e de relevância tamanho que extrapolou as fronteiras da literatura, alcançando outros campos do conhecimento como a Sociologia, por exemplo.

Eis que, agora, somos pegos de surpresa pelo aplauso estrangeiro à obra de Machado de Assis. Um olhar externo, não contaminado pelas impressões nacionais, isento de quaisquer senões, vem exaltar a genialidade e o talento brasileiro. Algo que, de certa forma, nos constrange, ou pelo menos deveria, por perceber que, dentro do próprio país, não conseguimos manifestar com tanta propriedade esse reconhecimento.

Aliás, o renomado crítico literário Harold Bloom, há alguns anos, durante entrevista, manifestou: “Na ficção, adoro Eça de Queiroz e Machado de Assis. Considero Machado o maior gênio da literatura brasileira do século XIX. Ele reúne os pré-requisitos da genialidade: exuberância, concisão e uma visão irônica ímpar do mundo” (Revista Época edição 246 – 03/02/2003).

Portanto, que essa mais nova explosão de reverências à literatura de Machado de Assis seja o estímulo perfeito para nos debruçarmos sobre a vasta riqueza que ele produziu, bem como, em relação a outros grandes nomes da literatura nacional. Temos muito a aprender e a refletir através da percepção dos nossos escritores, a fim de descortinar camada por camada da nossa própria identidade histórica nacional.  

Afinal, segundo Franz Kafka, “A literatura é sempre uma expedição à verdade”; pois, “Este é o prodígio da literatura, poder ser capaz de chegar mais fundo na consciência dos leitores, mesmo falando sobre uma outra coisa” (José Saramago). Por isso, ela faz muita gente se inquietar, mesmo não querendo transparecer as emoções e os sentimentos.   

segunda-feira, 27 de maio de 2024

E se...


E se...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Interessante ver como certos setores da mídia tradicional, rasgaram a fantasia e aderiram definitivamente à euforia da direita nacional e seus matizes; sobretudo, os mais radicais e extremistas, quando o assunto é a eleição presidencial em 2026. Mas, nada de novo! Isso já era totalmente previsível!

Me desculpem, uns e outros; mas, olhando para o histórico colonial brasileiro, é fundamental admitir que os anos de governança emoldurados pela ascensão da esquerda e seus matizes, incluindo os mais radicais e extremistas, foi um ponto fora da curva para as certezas e convicções da direita.

Herdeiros da elite colonial brasileira, eles jamais cogitaram que em plena Terra Brasilis uma versão tupiniquim da Revolução Francesa, na ótica da tomada do poder pelas massas populares, pudesse se concretizar bem debaixo do seu nariz. Só que aconteceu. De modo que, desde então, essa gente não faz outra coisa senão arrumar pelo em ovo e traçar seus planos infalíveis para aliviar a própria alma quanto a tamanho desconforto.  

Aliás, antes de prosseguir, quero fazer uma ressalva importante em relação a essa aversão à esquerda. É claro que ela se iniciou nos tempos coloniais, com a falta de mobilidade social e com a construção das fronteiras de desigualdade. Porém, depois de idas e vindas do tempo e das ingerências de outras metrópoles sobre o Brasil, o papel dos EUA na incorporação do medo comunista, ao inconsciente coletivo nacional, foi decisivo.

Aí, quando surge no país uma representação político-partidária de origem popular e trabalhadora, foi a gota d’água para o enfurecimento da direita nacional e seus matizes; sobretudo, os mais radicais e extremistas. Havia, então, se consolidado uma ameaça aos interesses direitistas. Eles estavam organizados. Eles dispunham de liderança. Eles empunhavam seus manifestos e reivindicações.

Não que outras representações já não existissem e causassem irritação aos apoiadores e simpatizantes da direita; mas, o Partido dos Trabalhadores (PT) era diferente. Eles tinham abrangência e influência sobre o corpo trabalhador e operário. Ele era o canal de diálogo direto com a imensa base da pirâmide social brasileira. Portanto, uma ameaça real e imediata, aos interesses e zonas de conforto das elites burguesas nacionais.

Assim, o que muitos chamam de antilulismo não é um fenômeno recente. Houve uma transferência da hostilidade ao partido para a sua liderança mais representativa; mas, a verdade é que a tensão histórica ultrapassa o limite das figuras humanas para alcançar as arenas ideológicas.

A direita teme as ideias progressistas porque elas abalam o seu sistema de poder, de controle, de manipulação, social. Elas questionam o papel da direita dentro das mais diversas formas e conteúdos.  Elas calam o progressismo, em nome de um conservadorismo histórico, como se o lado certo da história estivesse no passado.

Por isso, tantas tentativas de minar, boicotar, desqualificar, as pautas progressistas em curso. A direita jamais vai admitir que a esquerda seja bem-sucedida na sua jornada. Se ela não cometer erros sozinha, o que inevitavelmente tende a acontecer; posto que, nada e nem ninguém é perfeito, são favas contadas que a direita contribuirá com muitas pedras e obstáculos no caminho.

A direita não sabe o que é perder. Ela surge em condições ideais na sociedade mundial. Ela tem os poderes sociais nas mãos. Ela cria e descria as leis, dentro da perspectiva dos seus interesses. Ela escreve a história, segundo a sua própria ótica. O que significa que ela está com seu orgulho profundamente ferido. Gente que ela sempre invisibilizou, negou, rechaçou, desqualificou, novamente ocupa um espaço que historicamente lhe parecia pertencer.

Assim, chegamos ao ponto nevrálgico dessa reflexão, o seu início.  A direita se desdobra em artifícios mil para fragilizar a esquerda em diferentes frontes, e daí? Infernizar a esquerda, daqui e dali, não significa absolutamente nada. Sério! Vivemos tempos em que a esquerda pode ser considerada o menor dos problemas para a direita, quando ela precisa enfrentar o insólito, o atípico, o inusitado, o extraordinário, da vida.

Pois é, as incertezas solapam o ideário da direita de maneira avassaladora.  Da noite para o dia, o mundo gira e surpreende! Não fica, sequer, uma das suas propostas de pé! Porque, na maioria das situações o que acontece é o feitiço se voltando contra o feiticeiro, sem a menor dó ou piedade. Deixando apoiadores e simpatizantes direitistas com seus discursos retóricos nas mãos, sem saber o que fazer, ou como agir.

Ora, o mundo idealizado da direita não existe! Ele pode até caber nas mídias sociais; mas, na realidade nossa de cada dia, não. Vontades e quereres não dominam as incertezas contemporâneas. Elas são muitas. São intensas. São radicais. Basta um piscar de olhos e, de repente... a vida é subvertida pela insustentável leveza das asas de uma borboleta.

Talvez, por isso, Mahatma Gandhi tenha dito “O futuro dependerá daquilo que fazemos no presente”. Pensar em 2026 é totalmente surreal! Pensar no amanhã é surreal! E ainda não perceberam, o mundo está em franca ebulição. As velhas práxis estão cada vez mais distantes de caber na solução das atuais demandas. Portanto, só cabe dizer que muita água há de passar por debaixo de nossas pontes. Porque de certo só temos as incertezas. Há sempre um “E se...”, pelo caminho.   

sábado, 25 de maio de 2024

À revelia das opiniões ...


À revelia das opiniões ...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Olhando para o mundo contemporâneo é inevitável não ter a impressão de que muitas pessoas perderam o juízo ou a capacidade de sentir. São tantos absurdos, daqui e dali, que esse pseudossenso acaba se fortalecendo. No entanto, não creio que seja exatamente assim.

Por trás dessa aura, de alienação ensimesmada, ainda existe um ser humano. Que vive. Que sente. Que se ressente. Que se perturba. ... A grande questão é saber qual o limite de tolerabilidade das pessoas quanto a demonstrarem a sua percepção do mundo, do cotidiano.

Afinal de contas, certas verdades são doídas demais, impalatáveis, indigeríveis. De modo que é preciso, um certo jogo de cintura, para lidar com elas. O que na maioria das vezes, acaba sendo através do seu armazenamento no secretíssimo esconderijo do inconsciente, longe e inacessível ao alcance de estranhos.

Fato é que isso acontece por força da própria identidade humana. Ser, no mundo atual, é cada vez mais desafiador. Defender a própria identidade, com unhas e dentes, é somente para os bravos e destemidos, que não se acanham ou se amedrontam diante dos ataques, dos cancelamentos, das invisibilizações, das marginalizações.

Por incrível que pareça, o movimento blasé que se arrasta pela contemporaneidade, não passa de um subterfugio para dar proteção para muita gente, por aí. De alguma maneira, blindá-las da incompreensão, da não aceitação, do não pertencimento, imposto pela sociedade.

Tornar-se indiferente aos contínuos e demasiados estímulos sensoriais, afetivos, intelectuais, ... ou dos prazeres e dores do mundo, reduz o surgimento de indisposições, ruídos, atritos e beligerâncias sociais. Trata-se de um modo peculiar de “agradar a gregos e a troianos”, o qual muitos acabam definindo como uma maestria diplomática.   

Mas, eu me pergunto: será? Abafar a identidade humana, a esse ponto, me parece um preço alto demais a se pagar. Ao contrário do que muitos pensam, a psique humana é uma força causal, irredutível e indomável às ordens de causas lógicas conhecidas, portanto, ela não é inerte, isenta de impulso vital.

O que faz com que os silêncios humanos, as abstenções, as indiferenças, as negações, sejam apenas pura casca de aparência. No fundo, o cotidiano da vida continua as afetando, as alfinetando, as instigando a pensar, a sentir, a inquietar. Até que em algum momento isso extravasa, mesmo que sutilmente. Ora, a subjetividade humana também tem limites!

Pode ser que essa manifestação não se dê publicamente. Mas, o que diriam os travesseiros e as almofadas se pudessem falar, hein?! Porque essa rigidez de protocolos, esse excesso de autocontrole, para se manter à margem dos acontecimentos, não é salutar. Aliás, não só adoece como retira das pessoas o brilho fascinante da sua humanidade.

Talvez, por esse entendimento é que eu adoro essa reflexão de Martha Medeiros: “Sempre desprezei as coisas mornas, as coisas que não provocam ódio e nem paixão, as coisas definidas como mais ou menos. Um filme mais ou menos, um livro mais ou menos. Tudo perda de tempo. Viver tem que ser perturbador, é preciso que nossos anjos e demônios sejam despertados, e com eles sua raiva, seu orgulho, seu acaso, sua adoração ou seu desprezo. O que não faz você mover um músculo, o que não faz você estremecer, suar, desatinar, não merece fazer parte da sua biografia” (Divã, 2002).  

Afinal, para ser alguém com esse grau de consciência, é sinal de que essa pessoa está verdadeiramente disposta a defender sua identidade e a viver no mundo à revelia das opiniões, das imposições, dos desconfortos, alheios. São pessoas que têm a plena consciência de que “Viver é a coisa mais rara do mundo. A maioria das pessoas apenas existe” (Oscar Wilde).   

sexta-feira, 24 de maio de 2024

O jogo do jogo ...


O jogo do jogo ...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Faltando 63 dias para o início dos Jogos Olímpicos de Paris, é triste perceber a deterioração do seu lema oficial “Citius, altius, fortius” (mais rápido, mais alto, mais forte), quando paira sobre a realidade contemporânea desportiva uma névoa tóxica de parcialidade, promovida pelas bolsas de aposta.

Por mais que existam mecanismos de controle, de antidoping e/ou de avaliação de imagens, a verdade é que a magia e o encantamento promovido pelas diversas práxis desportivas vêm se tornando maculadas por uma aura de suspeição. Como se fosse inevitável desconfiar sempre dos resultados.

Embora, não seja a primeira e nem última, a notícia de que um renomado jogador de futebol brasileiro foi denunciado por envolvimento com apostas no Reino Unido 1, esse fato revela o desvirtuamento imposto pelo poder capital ao mundo esportivo.

Há tempos, os atletas não são somente atletas. No contexto da realidade contemporânea, eles foram alçados à condição de produtos pela força do marketing.

Alguns possuem suas próprias marcas. Outros associam sua imagem a determinados bens, produtos e serviços. Há os que se dedicam às causas sociais; mas, que é algo não dissociado de repercussão, de visibilidade e de rentabilidade econômica.  E aqueles que se envolvem no submundo que contempla as apostas, manipulações de resultados e subornos.

Como disse, infelizmente, isso não é uma novidade. Já vimos acontecer em outros países 2. Mas, não se restringe somente ao futebol. Outros desportos já foram cooptados por essas práxis. Haja vista o “Escândalo de apostas no tênis: investigação revela que um top 30 vendeu jogos” 3.

O importante é entender que todo esse movimento reflete diretamente na desimportância do atleta em relação ao seu papel desportista, para se deslocar rumo às diversas camadas midiáticas contemporâneas, incluindo a rentabilidade de cifras astronômicas.

A contabilização de milhões de seguidores nas redes sociais, por exemplo, dá bem a dimensão desse processo. O nível de exposição deles se explica pela necessidade de cumprir esse papel de gerar conteúdo, de gerar divisas, de promover publicidade, com elementos que possam nutrir o imaginário do seu público.

Na maioria das vezes, as postagens sequer fazem menção ao esporte. O que significa que os atletas acabam sendo levados a opinar e se manifestar sobre assuntos diversos, os quais nem sempre dispõem de um relativo conhecimento a respeito.  Algo capaz de gerar, inclusive, situações desconfortáveis e polêmicas, sem a menor necessidade.

Infelizmente, o que estamos presenciando é mais um desdobramento nefasto da ingerência do poder capital sobre a sociedade contemporânea. Esse processo bate, em cheio, no ser humano, porque mexe com questões subjetivas, tais como autoestima, vaidade, inclusão social, importância.

De modo que, muitos atletas, por razões diversas, são enredados pelo fascínio que todo esse midiatismo desencadeia. Fazendo com que o esporte se torne apenas um trampolim para uma vida melhor, para o sucesso, para a notoriedade.

Aliás, esse trampolim se sustenta por certos discursos, os quais, apesar de verdadeiros, não deveriam sinalizar um caminho livre e distante da ética, como acontece. Sim, a carreira de atleta é curta. Os desafios são imensos. As oportunidades limitadas.

No entanto, aceitar que os fins possam justificar os meios anula radicalmente os valores esportivos, ou seja, o fair-play, o despertar das lideranças, o respeito às normas e regras, o senso de pertencimento e o espírito de equipe.

Nesse contexto, lembrei-me das seguintes palavras de Immanuel Kant: “A moral, propriamente dita, não é a doutrina que nos ensina como sermos felizes, mas como devemos tornar-nos dignos da felicidade”.

Portanto, que o corpo desportivo, onde quer que se encontre, lembre-se sempre de que “No reino dos fins tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode-se pôr em vez dela qualquer outra como equivalente; mas, quando uma coisa está acima de todo o preço, e portanto não permite equivalente, então ela tem dignidade” (Immanuel Kant 4).



4 KANT, I. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Tradução de Artur Morão. Lisboa: Edições 70. p.77.   

EM BUSCA DO MELHOR DA VIDA - COM PASTOR HENRIQUE VIEIRA - 26/MAIO 20H

quinta-feira, 23 de maio de 2024

Ah, comigo isso não acontece!


Ah, comigo isso não acontece!

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Enquanto o flagelo climático reverbera no Rio Grande do Sul, o resto do país segue a velha história do “Comigo isso não acontece”. Quem disse que não? Enquanto o Brasil estiver fixado no globo terrestre, ele é sim, passível das desventuras emergenciais climáticas, como qualquer um.

Bem, até aqui, o país já tinha experimentado a destruição e o sofrimento em doses, digamos, homeopáticas. Municípios, aqui e ali, distribuídos pelo território nacional haviam sido afetados por eventos extremos do clima; mas, nada tão avassalador, como tem sido experimentado no Rio Grande do Sul.

No entanto, chama a atenção, justamente, o fato de o restante do país se comportar como se estivesse à margem do problema. Acontece que não está. Não basta atender às urgências imediatas do estado gaúcho, através da solidariedade e do trabalho voluntariado. Nem tampouco, fingir que a vida do país pode seguir o fluxo de uma normalidade que não existe.

Em sã consciência, os demais 25 estados e o Distrito Federal deveriam estar debruçados em compor rapidamente um trabalho de gestão de risco. São muitas as razões para nos preocuparmos. O somatório das ações antrópicas no espaço geográfico brasileiro somadas à imprevisibilidade dos eventos extremos do clima, representa um perigo real e imediato aos cidadãos e aos interesses diversos do país. Inclusive, porque eles podem acontecer, simultaneamente, em diferentes partes do estado brasileiro.

Pois é, já diz o provérbio que “Cautela e canja de galinha não fazem mal a ninguém”. Só para citar um exemplo, que fundamenta bem a minha reflexão, segundo informações, de 2022, da Agência Nacional de Mineração (ANM), existiam 63 barragens em situação de alerta ou emergência declarada, no país 1. Sem contar, as informações contidas no Relatório de Segurança de Barragens de 2021 (RSB2021), que na ocasião “foram registradas 22.654 barragens, 701 a mais do que no ano anterior” 2.

Mas, por que falar sobre isso? Quem não se lembra de Mariana e de Brumadinho, em Minas Gerais? Quem não se lembra de uma importante empresa mineradora que afundou e desalojou milhares de cidadãos em Maceió, Alagoas? Quem não se lembra da mineração na Serra do Curral, em Belo Horizonte? Quem não se lembra do garimpo nas terras Yanomamis, na região Amazônica? Quem não se lembra da enchente na região serrana do Rio de Janeiro, em 2011? Quem não se lembra da enchente na região sul da Bahia e do norte de Minas, em 2021? Quem não se lembra das manchas de óleo que chegaram às praias brasileiras e foram recolhidas em 1013 localidades dos nove estados do Nordeste, no Espírito Santo e no Rio de Janeiro, em 2019?

Sim, temos um lastro de registros importantes para não nos deixar esquecer a fragilidade e a vulnerabilidade socioambiental, a qual está exposta o Brasil. Em termos de uma gestão de risco eficaz para enfrentar os desafios que se desenham no horizonte contemporâneo, não dispomos de uma. Entretanto, nossos representantes político-partidários, gestores, instituições e sociedade civil, permanecem fazendo pouco de algo tão grave, tão sério, e que não diz respeito apenas ao Rio Grande do Sul. Estão fazendo ouvidos de mercador para o sábio aviso espanhol, “Quando você vir as barbas do seu vizinho pegarem fogo, coloque as suas de molho”!

Não aprendemos com a Pandemia, não estamos aprendendo com a tragédia gaúcha, quando vamos nos predispor a aprender?  Lamento, mas não dá para olhar para o Brasil sob a perspectiva de que está tudo bem, tudo controlado, tudo as mil maravilhas. Uma correção de rota é fundamental nesse momento, antes que um outro episódio arruíne, de vez, quaisquer projeções. A realidade que nos impõe confronta absolutamente todos os modelos de gestão administrativa e econômica. É o insólito dando as cartas! Não haverá reconstrução se isso não for muito bem entendido por todos.

Só para ilustrar a dimensão dos problemas, a maioria dos estados brasileiros vive um cenário de endividamento seríssimo. E dentre os mais endividados estão São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul, o que significa que eles “respondem por 89,4% do total de dívidas com a União (R$683,9 bilhões de R$764,9 bilhões)” 3. Por motivos óbvios, foi “Aprovada, suspensão de pagamento da dívida do RS por três anos”, com o objetivo de que tal recurso seja “aplicado em ações de enfrentamento da situação de calamidade pública provocada pelas chuvas nas últimas semanas” 4. Mas, será que isso é o suficiente?

Não nos enganemos, esses não são tempos de calmaria! O cenário atual brasileiro foi revirado do avesso; afinal, o Rio Grande do Sul representa o quarto maior Produto Interno Bruto (PIB) do país, cerca de 7,5% de toda a atividade nacional, destacando-se em serviços, agropecuária e indústria, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2021. E agora será preciso empenhar inúmeros esforços para reconstrução; mas, sem perder de vista, a necessidade de repensar o modelo de contenção ou mitigação das potenciais ameaças, a fim de otimizar o planejamento e a utilização dos recursos humanos e materiais.

Portanto, basta de blá blá blá. Basta de discussões inúteis e fúteis, só para lacrar nas redes sociais. O país vive uma encruzilhada fatal para sua sobrevivência. Já deu para perceber que o efeito das emergências climáticas não são uma brincadeira. Que o modo de produzir e planejar as cidades está desalinhado às novas demandas. Que o uso e ocupação do solo não pode acontecer à revelia da dinâmica ambiental e geográfica. Que o modelo capitalista, em curso, não cabe na realidade contemporânea do planeta. Como escreveu Daniel Munduruku, “esse olhar para o futuro aliena as pessoas para a necessidade mais imediata de construirmos nossa existência no presente”. É nessa compreensão que temos que nos concentrar.