Ah, comigo
isso não acontece!
Por Alessandra
Leles Rocha
Enquanto o flagelo climático
reverbera no Rio Grande do Sul, o resto do país segue a velha história do “Comigo
isso não acontece”. Quem disse que não? Enquanto o Brasil estiver fixado no
globo terrestre, ele é sim, passível das desventuras emergenciais climáticas,
como qualquer um.
Bem, até aqui, o país já tinha
experimentado a destruição e o sofrimento em doses, digamos, homeopáticas. Municípios,
aqui e ali, distribuídos pelo território nacional haviam sido afetados por
eventos extremos do clima; mas, nada tão avassalador, como tem sido
experimentado no Rio Grande do Sul.
No entanto, chama a atenção,
justamente, o fato de o restante do país se comportar como se estivesse à
margem do problema. Acontece que não está. Não basta atender às urgências imediatas
do estado gaúcho, através da solidariedade e do trabalho voluntariado. Nem tampouco,
fingir que a vida do país pode seguir o fluxo de uma normalidade que não
existe.
Em sã consciência, os demais 25
estados e o Distrito Federal deveriam estar debruçados em compor rapidamente um
trabalho de gestão de risco. São muitas as razões para nos preocuparmos. O somatório
das ações antrópicas no espaço geográfico brasileiro somadas à
imprevisibilidade dos eventos extremos do clima, representa um perigo real e
imediato aos cidadãos e aos interesses diversos do país. Inclusive, porque eles
podem acontecer, simultaneamente, em diferentes partes do estado brasileiro.
Pois é, já diz o provérbio que “Cautela
e canja de galinha não fazem mal a ninguém”. Só para citar um exemplo, que
fundamenta bem a minha reflexão, segundo informações, de 2022, da Agência
Nacional de Mineração (ANM), existiam 63 barragens em situação de alerta ou emergência
declarada, no país 1. Sem contar, as informações
contidas no Relatório de Segurança de Barragens de 2021 (RSB2021), que na
ocasião “foram registradas 22.654 barragens, 701 a mais do que no ano
anterior” 2.
Mas, por que falar sobre isso? Quem
não se lembra de Mariana e de Brumadinho, em Minas Gerais? Quem não se lembra de
uma importante empresa mineradora que afundou e desalojou milhares de cidadãos
em Maceió, Alagoas? Quem não se lembra da mineração na Serra do Curral, em Belo
Horizonte? Quem não se lembra do garimpo nas terras Yanomamis, na região
Amazônica? Quem não se lembra da enchente na região serrana do Rio de Janeiro,
em 2011? Quem não se lembra da enchente na região sul da Bahia e do norte de
Minas, em 2021? Quem não se lembra das manchas de óleo que chegaram às praias
brasileiras e foram recolhidas em 1013 localidades dos nove estados do
Nordeste, no Espírito Santo e no Rio de Janeiro, em 2019?
Sim, temos um lastro de registros
importantes para não nos deixar esquecer a fragilidade e a vulnerabilidade socioambiental,
a qual está exposta o Brasil. Em termos de uma gestão de risco eficaz para
enfrentar os desafios que se desenham no horizonte contemporâneo, não dispomos
de uma. Entretanto, nossos representantes político-partidários, gestores,
instituições e sociedade civil, permanecem fazendo pouco de algo tão grave, tão
sério, e que não diz respeito apenas ao Rio Grande do Sul. Estão fazendo
ouvidos de mercador para o sábio aviso espanhol, “Quando você vir as barbas
do seu vizinho pegarem fogo, coloque as suas de molho”!
Não aprendemos com a Pandemia,
não estamos aprendendo com a tragédia gaúcha, quando vamos nos predispor a aprender?
Lamento, mas não dá para olhar para o
Brasil sob a perspectiva de que está tudo bem, tudo controlado, tudo as mil
maravilhas. Uma correção de rota é fundamental nesse momento, antes que um
outro episódio arruíne, de vez, quaisquer projeções. A realidade que nos impõe confronta
absolutamente todos os modelos de gestão administrativa e econômica. É o insólito
dando as cartas! Não haverá reconstrução se isso não for muito bem entendido
por todos.
Só para ilustrar a dimensão dos
problemas, a maioria dos estados brasileiros vive um cenário de endividamento seríssimo.
E dentre os mais endividados estão São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e
Rio Grande do Sul, o que significa que eles “respondem por 89,4% do total de
dívidas com a União (R$683,9 bilhões de R$764,9 bilhões)” 3.
Por motivos óbvios, foi “Aprovada, suspensão de pagamento da dívida do RS
por três anos”, com o objetivo de que tal recurso seja “aplicado em
ações de enfrentamento da situação de calamidade pública provocada pelas chuvas
nas últimas semanas” 4. Mas,
será que isso é o suficiente?
Não nos enganemos, esses não são
tempos de calmaria! O cenário atual brasileiro foi revirado do avesso; afinal, o
Rio Grande do Sul representa o quarto maior Produto Interno Bruto (PIB) do
país, cerca de 7,5% de toda a atividade nacional, destacando-se em serviços,
agropecuária e indústria, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE), de 2021. E agora será preciso empenhar inúmeros esforços para
reconstrução; mas, sem perder de vista, a necessidade de repensar o modelo de contenção
ou mitigação das potenciais ameaças, a fim de otimizar o planejamento e a
utilização dos recursos humanos e materiais.
Portanto, basta de blá blá blá. Basta
de discussões inúteis e fúteis, só para lacrar nas redes sociais. O país vive
uma encruzilhada fatal para sua sobrevivência. Já deu para perceber que o
efeito das emergências climáticas não são uma brincadeira. Que o modo de
produzir e planejar as cidades está desalinhado às novas demandas. Que o uso e
ocupação do solo não pode acontecer à revelia da dinâmica ambiental e geográfica.
Que o modelo capitalista, em curso, não cabe na realidade contemporânea do
planeta. Como escreveu Daniel Munduruku, “esse olhar para o futuro aliena as
pessoas para a necessidade mais imediata de construirmos nossa existência no
presente”. É nessa compreensão que temos que nos concentrar.