quarta-feira, 22 de maio de 2024

Sob os véus da verdade


Sob os véus da verdade

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Não importa o assunto, o problema, a questão. Fato é que o Brasil vem se abstendo de aceitar que a vida é um curso processual, para transitar em altíssima rotação em busca de uma resolução. Veja, por exemplo, que a classe político-partidária mal elege seus representantes e já inicia campanha para um próximo pleito. A necessidade de esticar o tempo e favorecer a postergação da efetiva realização das obrigações e deveres, para os quais foram eleitos, é a principal explicação para os caminhos que têm levado esses indivíduos rumo à perpetuação de seus projetos de poder.

Infelizmente, o Brasil não vive mais o agora, na perspectiva da sua dinâmica cotidiana. O agora foi definitivamente superficializado, liquefeito. As medidas tomadas a respeito das situações não são para resolver. As decisões concretas ficam sempre para depois. Depois pensa. Depois faz. Depois resolve. Depois ... Depois ... Depois... Como se estivessem dominados por uma eterna e contínua procura do momento ideal. Só que isso não é possível. O ideal não existe.

Não é à toa que o país dá clara impressão de ter desaprendido o significado da prioridade. A perspectiva que baliza a construção de uma escala de importâncias se enviesou a tal ponto que se desprendeu dos fatos para se atrelar aos interesses pessoais, de uns e outros, por aí. De modo que o Brasil pode arder em chamas ou ser submergido por um tsunami, por exemplo, e as autoridades institucionais sempre tomarão medidas aquém da urgência manifesta pelo episódio.

Assim, buscando uma reflexão pautada pela verdade, a qual teima em se esconder debaixo de tantos véus, fica evidente como o cidadão brasileiro é um crédulo. Em parte por culpa do próprio ranço colonial histórico. Em parte por vontade própria estimulada pela indisposição de questionar, de assumir responsabilidades, de exercer seu papel social. Algo que se traduz numa ameaça iminente à sua própria existência.

Pois é, o falatório contemporâneo em torno da liberdade é cada vez mais ruidoso. Muita gente batendo no peito, dizendo que faz e acontece, que tem direitos, blá blá blá blá blá blá blá blá blá. Lamento, mas isso só vale até a página dois. Quando se vive coletivamente, o ser humano está sempre na dependência de outros, direta ou indiretamente. Querendo ou não, você é levado a confiar, a acreditar, que não será traído ou prejudicado por algum de seus semelhantes.

Quem diria?! Não importa se você pertence a classe A, B, C, D ou E.  Quando menos se espera você descobre que o status socioeconômico não blinda ninguém. Quer um exemplo? Em 1998, um prédio de classe média alta, com 44 apartamentos, desabou, no Rio de Janeiro, e vitimou, no incidente, 8 pessoas. Nenhum dos proprietários poderia imaginar que o seu investimento imobiliário de alto custo corria algum risco. Eles depositaram a sua confiança, a sua credulidade, nos outros.

Bom, situações comuns ao cotidiano que, de uma hora para outra, transformam-se em tragédias monstruosas, de ampla repercussão nacional e internacional.  Pois, querendo ou não, a todo instante, as pessoas estão se fiando uns nos outros, como parte natural das relações sociais. Afinal de contas, ninguém é capaz de jogar nas onze, o tempo todo. No entanto, esse é o ponto chave que nos torna demasiadamente frágeis e vulneráveis, na medida em que o senso ético e moral, do mundo contemporâneo, foi profundamente relativizado e corrompido por sentimentos individualistas narcísicos.

Embora, isso acabe expondo, de alguma forma, esses indivíduos aos mesmos perigos e ameaças, a verdade é que eles não se importam. Continuam fazendo da vida um jogo perigoso, brincando com a existência de terceiros, que nem sequer têm a dimensão dos riscos, inclusive, letais, que estão correndo.

Daí a necessidade de olhar para o país com mais seriedade, por uma consciência de sobrevivência individual e coletiva. Não, não há nada de natural, de trivial, de normal, nesse turbilhão de imediatismos que esgarça a ética, o senso de liberdade e a cidadania. Quando se acredita que a vida pode fluir dentro da pressa, da superficialização, da insuficiência e da ineficiência, a vida em si corre perigo. A assimetria entre os direitos e os poderes, que configura exatamente as bases das desigualdades sociais, exige atenção e vem nos cobrando um preço alto pelo contínuo comportamento de enxugar gelo.  

É preciso entender que esse comportamento não é despido de responsabilidade. O ser humano sabe muito bem que a vida é um processo. Cada passo, cada escolha, cada decisão, tem suas consequências e desdobramentos. O indivíduo sabe que planejar, prevenir, é muito mais útil e melhor para o coletivo social do que remediar. Remédios nem sempre dão conta das doenças! Muitas vezes se tornam medidas desesperadas, de última hora; mas, sabidamente inócuas.

Contudo, é dentro dessas práxis que tem se estabelecido a nossa credulidade. Outorgando, de olhos fechados, a quem possa interessar, muitas das responsabilidades que deveríamos exercer cotidianamente. Nos permitindo abster da vigilância, da observação, do cuidado. Lembre-se, nem tudo pode ser colocado na conta do insólito! A imensa maioria dos nossos flagelos, desventuras, fatalidades ou tribulações, é obra do próprio ser humano. Do uso deturpado e abjeto da sua capacidade cognitiva e intelectual para fins desumanos.

Sendo assim, entendo que muitos podem pensar que a desconfiança é uma demonstração de fracasso civilizatório. Mas, diante da contemporaneidade, desconfiar me parece, ao contrário, um ato de prudência extremamente importante. Como dizem, por aí, “Confia desconfiando”! Afinal, esses são tempos em que além dos humanos, o mundo convive e coexiste com altas tecnologias, como a Inteligência Artificial (I.A.) 1, de modo que a credulidade precisa ser colocada sob o crivo de uma profunda análise e reflexão. Acima dos discursos, das informações, é preciso checar a vida na perspectiva factual, aquilo que realmente é, para depurar a essência da verdade e nos proteger de perigos e infortúnios.