Sob os véus
da verdade
Por Alessandra
Leles Rocha
Não importa o assunto, o
problema, a questão. Fato é que o Brasil vem se abstendo de aceitar que a vida
é um curso processual, para transitar em altíssima rotação em busca de uma resolução.
Veja, por exemplo, que a classe político-partidária mal elege seus
representantes e já inicia campanha para um próximo pleito. A necessidade de
esticar o tempo e favorecer a postergação da efetiva realização das obrigações
e deveres, para os quais foram eleitos, é a principal explicação para os
caminhos que têm levado esses indivíduos rumo à perpetuação de seus projetos de
poder.
Infelizmente, o Brasil não vive
mais o agora, na perspectiva da sua dinâmica cotidiana. O agora foi definitivamente
superficializado, liquefeito. As medidas tomadas a respeito das situações não
são para resolver. As decisões concretas ficam sempre para depois. Depois pensa.
Depois faz. Depois resolve. Depois ... Depois ... Depois... Como se estivessem dominados
por uma eterna e contínua procura do momento ideal. Só que isso não é possível.
O ideal não existe.
Não é à toa que o país dá clara
impressão de ter desaprendido o significado da prioridade. A perspectiva que
baliza a construção de uma escala de importâncias se enviesou a tal ponto que
se desprendeu dos fatos para se atrelar aos interesses pessoais, de uns e
outros, por aí. De modo que o Brasil pode arder em chamas ou ser submergido por
um tsunami, por exemplo, e as autoridades institucionais sempre tomarão medidas
aquém da urgência manifesta pelo episódio.
Assim, buscando uma reflexão
pautada pela verdade, a qual teima em se esconder debaixo de tantos véus, fica
evidente como o cidadão brasileiro é um crédulo. Em parte por culpa do próprio ranço
colonial histórico. Em parte por vontade própria estimulada pela indisposição
de questionar, de assumir responsabilidades, de exercer seu papel social. Algo que
se traduz numa ameaça iminente à sua própria existência.
Pois é, o falatório contemporâneo
em torno da liberdade é cada vez mais ruidoso. Muita gente batendo no peito,
dizendo que faz e acontece, que tem direitos, blá blá blá blá blá blá blá blá
blá. Lamento, mas isso só vale até a página dois. Quando se vive coletivamente,
o ser humano está sempre na dependência de outros, direta ou indiretamente. Querendo
ou não, você é levado a confiar, a acreditar, que não será traído ou
prejudicado por algum de seus semelhantes.
Quem diria?! Não importa se você pertence
a classe A, B, C, D ou E. Quando menos
se espera você descobre que o status socioeconômico não blinda ninguém. Quer um
exemplo? Em 1998, um prédio de classe média alta, com 44 apartamentos, desabou,
no Rio de Janeiro, e vitimou, no incidente, 8 pessoas. Nenhum dos proprietários
poderia imaginar que o seu investimento imobiliário de alto custo corria algum
risco. Eles depositaram a sua confiança, a sua credulidade, nos outros.
Bom, situações comuns ao
cotidiano que, de uma hora para outra, transformam-se em tragédias monstruosas,
de ampla repercussão nacional e internacional. Pois, querendo ou não, a todo instante, as
pessoas estão se fiando uns nos outros, como parte natural das relações
sociais. Afinal de contas, ninguém é capaz de jogar nas onze, o tempo todo. No entanto,
esse é o ponto chave que nos torna demasiadamente frágeis e vulneráveis, na
medida em que o senso ético e moral, do mundo contemporâneo, foi profundamente
relativizado e corrompido por sentimentos individualistas narcísicos.
Embora, isso acabe expondo, de
alguma forma, esses indivíduos aos mesmos perigos e ameaças, a verdade é que
eles não se importam. Continuam fazendo da vida um jogo perigoso, brincando com
a existência de terceiros, que nem sequer têm a dimensão dos riscos, inclusive,
letais, que estão correndo.
Daí a necessidade de olhar para o
país com mais seriedade, por uma consciência de sobrevivência individual e
coletiva. Não, não há nada de natural, de trivial, de normal, nesse turbilhão de
imediatismos que esgarça a ética, o senso de liberdade e a cidadania. Quando se
acredita que a vida pode fluir dentro da pressa, da superficialização, da insuficiência
e da ineficiência, a vida em si corre perigo. A assimetria entre os direitos e
os poderes, que configura exatamente as bases das desigualdades sociais, exige
atenção e vem nos cobrando um preço alto pelo contínuo comportamento de enxugar
gelo.
É preciso entender que esse
comportamento não é despido de responsabilidade. O ser humano sabe muito bem
que a vida é um processo. Cada passo, cada escolha, cada decisão, tem suas consequências
e desdobramentos. O indivíduo sabe que planejar, prevenir, é muito mais útil e melhor
para o coletivo social do que remediar. Remédios nem sempre dão conta das
doenças! Muitas vezes se tornam medidas desesperadas, de última hora; mas,
sabidamente inócuas.
Contudo, é dentro dessas práxis que
tem se estabelecido a nossa credulidade. Outorgando, de olhos fechados, a quem
possa interessar, muitas das responsabilidades que deveríamos exercer cotidianamente.
Nos permitindo abster da vigilância, da observação, do cuidado. Lembre-se, nem tudo
pode ser colocado na conta do insólito! A imensa maioria dos nossos flagelos, desventuras,
fatalidades ou tribulações, é obra do próprio ser humano. Do uso deturpado e
abjeto da sua capacidade cognitiva e intelectual para fins desumanos.
Sendo assim, entendo que muitos
podem pensar que a desconfiança é uma demonstração de fracasso civilizatório. Mas,
diante da contemporaneidade, desconfiar me parece, ao contrário, um ato de prudência
extremamente importante. Como dizem, por aí, “Confia desconfiando”! Afinal,
esses são tempos em que além dos humanos, o mundo convive e coexiste com altas
tecnologias, como a Inteligência Artificial (I.A.) 1,
de modo que a credulidade precisa ser colocada sob o crivo de uma profunda
análise e reflexão. Acima dos discursos, das informações, é preciso checar a
vida na perspectiva factual, aquilo que realmente é, para depurar a essência da
verdade e nos proteger de perigos e infortúnios.