O
etarismo e a produção das cidades
Por Alessandra
Leles Rocha
Especialmente entre os ocidentais,
o envelhecimento costuma passar à margem do pensamento e da reflexão das
pessoas. Envelhecer parece uma condição distante, inacessível, e por isso, passível
de ser postergada. E isso acontece, majoritariamente, por força das pressões e
das tensões promovidas pela contemporaneidade; sobretudo, no que diz respeito à
sociedade de produção e consumo.
Sim, a predileção por centrar
foco nas parcelas economicamente ativas, ou seja, que possuem idade para
exercer atividade profissional remunerada e que estão inseridas no mercado de
trabalho formal ou informal, ou mesmo, à procura de emprego, abstrai do
pensamento e da preocupação social os idosos.
Algo que é perverso e cruel, se
considerarmos o fato de que a expectativa de vida tem ampliado
significativamente. A longevidade, no mundo, é uma realidade concreta e já faz
frente, estatisticamente, a possibilidade de um rejuvenescimento demográfico, nas
próximas décadas.
Entretanto, apesar de cientes
desse cenário, não se vê de maneira materializada, por parte das autoridades e
gestores responsáveis, planos e ações que fundamentem a independência, a participação,
os cuidados, a autorrealização e a dignidade dos idosos 1.
E dentre as inúmeras camadas que
essa questão possui, motivada pelos recentes acontecimentos de natureza
socioambiental, no Rio Grande do Sul, comecei a pensar em como a produção das
cidades não leva em consideração, na maioria das vezes, o envelhecimento
populacional, sob diferentes aspectos.
Então, como ponto de partida para
a tecitura de uma reflexão a respeito, me deparei com a matéria “O drama dos
idosos nas inundações do Rio Grande do Sul: ‘Parecem deixados de lado’” 2, que traz considerações importantes tanto
pela perspectiva objetiva quanto subjetiva, do assunto. O que é fundamental
para compreendermos as razões que nos impedem de negligenciar e/ou retardar as
discussões sobre o envelhecimento populacional.
Pois é, mais do que uma cidade
arquitetonicamente acessível 3, o idoso
precisa de uma cidade que lhe transmita segurança em residir. A começar pelo fato de que a relação do indivíduo
com o seu local de morada tem um componente afetivo muito forte.
As memórias, as lembranças, as
recordações, naquele lugar, naquele imóvel, são o conforto e o amparo de uma existência.
Registros muito significativos, em relação à família, aos amigos, aos vizinhos,
aos animais de estimação, a dinâmica de um cotidiano marcada por um dado recorte
temporal.
De modo que, seja porque motivo
for, é penoso e complicado para o idoso lidar com qualquer deslocamento;
sobretudo, repentino, urgente. Ora, isso significa romper com a sua zona de
conforto. Com a sua estabilidade socioespacial. Com o seu equilíbrio psicoemocional.
Sobretudo, quando ele pertence às camadas menos favorecidas ou privilegiadas da
sociedade.
Por outro lado, também sei que há
idosos que podem aproveitar essa fase da vida para viajar, passear. Mas é
importante ressaltar que eles só o fazem na certeza da volta, do retorno ao seu
lar, ao seu porto seguro. Se assim não fosse, eles não se atreveriam!
Para qualquer idoso lidar com incertezas,
com imprevistos, com surpresas, com instabilidades, é sempre algo demasiadamente
desconfortante, amedrontador e, em alguns casos, até motivo de adoecimento
repentino.
Depois, é preciso considerar que
a passagem do tempo, para uma imensa maioria de idosos, implica no surgimento
de doenças crônicas, algumas com potencial de resultarem em um quadro de
comorbidade. O que significa que eles não demandam apenas da acessibilidade aos
serviços de saúde; mas, em muitos casos, de residir próximos a esses locais.
Pois é, o envelhecimento é sim,
uma condição que tende a vulnerabilizar e a fragilizar o organismo humano,
demandando mais atenção e cuidados, especialmente, em situações de deslocamento
urgente. Não se pode desconsiderar dentro do rol dos idosos a presença de
portadores de deficiência, de acamados, de indivíduos com baixa mobilidade.
Não é difícil de entender, então,
que é necessária a existência de um planejamento estratégico para resguardar a
integridade física e mental de um idoso nessas condições. O que envolve, por exemplo, transportá-lo para
um local seguro e preparado, antes que a urgência imponha um desequilíbrio psicoemocional,
capaz de acarretar o agravamento do seu quadro clínico.
Desse modo, o censo demográfico é
a ferramenta imprescindível para que se conheça o perfil da população de idosos
em cada município. Só ele é capaz de dizer onde moram, a sua distribuição
etária e por gênero, o seu grau de escolaridade, as suas demandas de saúde,
enfim.
É com base nessas informações, que
se torna possível produzir uma cidade que transmita, portanto, a devida
segurança para o cidadão residir, ou seja, é a partir delas que se consolida a independência,
a participação, os cuidados, a autorrealização e a dignidade dos idosos.
Queiram ou não admitir, o
envelhecimento é so uma etapa da vida. Nenhum ser humano perde a sua essência,
a sua potencialidade, a sua capacidade existencial, só por envelhecer. Tudo isso
se aprimora, se transforma, se ressignifica, dentro de um novo contexto.
O idoso não deixa de ser, de
existir, de pensar, de realizar. Mas, ao que parece, o que falta é o exercício
da alteridade entre os seres humanos para compreender essa verdade inconteste,
e aceitá-la.
Não, não podemos permitir e
aceitar que o etarismo alcance decisões importantíssimas no âmbito coletivo da
humanidade, como é o caso da produção da cidade e do planejamento urbano; bem
como, todos os seus penduricalhos – Plano Diretor, Lei de uso e ocupação do
solo, ...
O idoso é um cidadão, é um ser
que tem o direito de viver e desfrutar do espaço geográfico. Portanto, ele não
é uma carta fora do baralho! Com base nessa compreensão, “Cidades
sustentáveis não excluem ninguém. Sempre que pensamos na construção das
cidades, se excluímos algumas parcelas da população, isso não é uma forma
sustentável. O homem pode ser diferente e a diversidade precisa ser considerada
como um todo” (Silvana Cambiaghi 4).
Essa é a grande lição que
precisamos urgentemente apreender e fazer valer, combater o etarismo na
produção das cidades. Olhar com mais humanidade, com mais respeito, com mais
civilidade, o outro. Do mesmo modo, lançar esse olhar sobre a geografia do mundo,
na figura da própria cidade.
Afinal de contas, como escreveu
Mia Couto, “A cidade não é um lugar. É a moldura de uma vida. A moldura à
procura de retrato, é isso que eu vejo quando revisito o meu lugar de
nascimento. Não são ruas, não são casas. O que revejo é um tempo, o que escuto
é a fala desse tempo. Um dialeto chamado memória, numa nação chamada infância”
(Pensatempos: textos de opinião, 2005).
1A
Convenção Interamericana sobre a Proteção dos Direitos Humanos dos Idosos como
ferramenta para promover a Década do Envelhecimento Saudável - https://iris.paho.org/bitstream/handle/10665.2/57780/9789275726945_por.pdf?sequence=1&isAllowed=y
3 Arquitetura
acessível é aquela que atende simultaneamente os usuários sem a necessidade de
segregar ou criar adaptações específicas. Fonte: https://www.sescsp.org.br/cidades-acessiveis-os-caminhos-da-arquitetura-para-a-inclusao/
4 Mestre em desenho universal pela Faculdade de Arquitetura da Universidade de São Paulo (FAU-USP). Ex-Presidente da Comissão Permanente de Acessibilidade de São Paulo (CPA). Autora do livro “Desenho Universal: Métodos e Técnicas para arquitetos e urbanistas”.