terça-feira, 21 de maio de 2024

O etarismo e a produção das cidades


O etarismo e a produção das cidades

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Especialmente entre os ocidentais, o envelhecimento costuma passar à margem do pensamento e da reflexão das pessoas. Envelhecer parece uma condição distante, inacessível, e por isso, passível de ser postergada. E isso acontece, majoritariamente, por força das pressões e das tensões promovidas pela contemporaneidade; sobretudo, no que diz respeito à sociedade de produção e consumo.

Sim, a predileção por centrar foco nas parcelas economicamente ativas, ou seja, que possuem idade para exercer atividade profissional remunerada e que estão inseridas no mercado de trabalho formal ou informal, ou mesmo, à procura de emprego, abstrai do pensamento e da preocupação social os idosos.

Algo que é perverso e cruel, se considerarmos o fato de que a expectativa de vida tem ampliado significativamente. A longevidade, no mundo, é uma realidade concreta e já faz frente, estatisticamente, a possibilidade de um rejuvenescimento demográfico, nas próximas décadas.

Entretanto, apesar de cientes desse cenário, não se vê de maneira materializada, por parte das autoridades e gestores responsáveis, planos e ações que fundamentem a independência, a participação, os cuidados, a autorrealização e a dignidade dos idosos 1.

E dentre as inúmeras camadas que essa questão possui, motivada pelos recentes acontecimentos de natureza socioambiental, no Rio Grande do Sul, comecei a pensar em como a produção das cidades não leva em consideração, na maioria das vezes, o envelhecimento populacional, sob diferentes aspectos.

Então, como ponto de partida para a tecitura de uma reflexão a respeito, me deparei com a matéria “O drama dos idosos nas inundações do Rio Grande do Sul: ‘Parecem deixados de lado’” 2, que traz considerações importantes tanto pela perspectiva objetiva quanto subjetiva, do assunto. O que é fundamental para compreendermos as razões que nos impedem de negligenciar e/ou retardar as discussões sobre o envelhecimento populacional.  

Pois é, mais do que uma cidade arquitetonicamente acessível 3, o idoso precisa de uma cidade que lhe transmita segurança em residir. A começar pelo fato de que a relação do indivíduo com o seu local de morada tem um componente afetivo muito forte.

As memórias, as lembranças, as recordações, naquele lugar, naquele imóvel, são o conforto e o amparo de uma existência. Registros muito significativos, em relação à família, aos amigos, aos vizinhos, aos animais de estimação, a dinâmica de um cotidiano marcada por um dado recorte temporal.

De modo que, seja porque motivo for, é penoso e complicado para o idoso lidar com qualquer deslocamento; sobretudo, repentino, urgente. Ora, isso significa romper com a sua zona de conforto. Com a sua estabilidade socioespacial. Com o seu equilíbrio psicoemocional. Sobretudo, quando ele pertence às camadas menos favorecidas ou privilegiadas da sociedade.

Por outro lado, também sei que há idosos que podem aproveitar essa fase da vida para viajar, passear. Mas é importante ressaltar que eles só o fazem na certeza da volta, do retorno ao seu lar, ao seu porto seguro. Se assim não fosse, eles não se atreveriam!

Para qualquer idoso lidar com incertezas, com imprevistos, com surpresas, com instabilidades, é sempre algo demasiadamente desconfortante, amedrontador e, em alguns casos, até motivo de adoecimento repentino.

Depois, é preciso considerar que a passagem do tempo, para uma imensa maioria de idosos, implica no surgimento de doenças crônicas, algumas com potencial de resultarem em um quadro de comorbidade. O que significa que eles não demandam apenas da acessibilidade aos serviços de saúde; mas, em muitos casos, de residir próximos a esses locais.

Pois é, o envelhecimento é sim, uma condição que tende a vulnerabilizar e a fragilizar o organismo humano, demandando mais atenção e cuidados, especialmente, em situações de deslocamento urgente. Não se pode desconsiderar dentro do rol dos idosos a presença de portadores de deficiência, de acamados, de indivíduos com baixa mobilidade.

Não é difícil de entender, então, que é necessária a existência de um planejamento estratégico para resguardar a integridade física e mental de um idoso nessas condições.  O que envolve, por exemplo, transportá-lo para um local seguro e preparado, antes que a urgência imponha um desequilíbrio psicoemocional, capaz de acarretar o agravamento do seu quadro clínico.

Desse modo, o censo demográfico é a ferramenta imprescindível para que se conheça o perfil da população de idosos em cada município. Só ele é capaz de dizer onde moram, a sua distribuição etária e por gênero, o seu grau de escolaridade, as suas demandas de saúde, enfim.

É com base nessas informações, que se torna possível produzir uma cidade que transmita, portanto, a devida segurança para o cidadão residir, ou seja, é a partir delas que se consolida a independência, a participação, os cuidados, a autorrealização e a dignidade dos idosos.

Queiram ou não admitir, o envelhecimento é so uma etapa da vida. Nenhum ser humano perde a sua essência, a sua potencialidade, a sua capacidade existencial, só por envelhecer. Tudo isso se aprimora, se transforma, se ressignifica, dentro de um novo contexto.

O idoso não deixa de ser, de existir, de pensar, de realizar. Mas, ao que parece, o que falta é o exercício da alteridade entre os seres humanos para compreender essa verdade inconteste, e aceitá-la.

Não, não podemos permitir e aceitar que o etarismo alcance decisões importantíssimas no âmbito coletivo da humanidade, como é o caso da produção da cidade e do planejamento urbano; bem como, todos os seus penduricalhos – Plano Diretor, Lei de uso e ocupação do solo, ...

O idoso é um cidadão, é um ser que tem o direito de viver e desfrutar do espaço geográfico. Portanto, ele não é uma carta fora do baralho! Com base nessa compreensão, “Cidades sustentáveis não excluem ninguém. Sempre que pensamos na construção das cidades, se excluímos algumas parcelas da população, isso não é uma forma sustentável. O homem pode ser diferente e a diversidade precisa ser considerada como um todo” (Silvana Cambiaghi 4).

Essa é a grande lição que precisamos urgentemente apreender e fazer valer, combater o etarismo na produção das cidades. Olhar com mais humanidade, com mais respeito, com mais civilidade, o outro. Do mesmo modo, lançar esse olhar sobre a geografia do mundo, na figura da própria cidade.

Afinal de contas, como escreveu Mia Couto, “A cidade não é um lugar. É a moldura de uma vida. A moldura à procura de retrato, é isso que eu vejo quando revisito o meu lugar de nascimento. Não são ruas, não são casas. O que revejo é um tempo, o que escuto é a fala desse tempo. Um dialeto chamado memória, numa nação chamada infância” (Pensatempos: textos de opinião, 2005).



1A Convenção Interamericana sobre a Proteção dos Direitos Humanos dos Idosos como ferramenta para promover a Década do Envelhecimento Saudável -  https://iris.paho.org/bitstream/handle/10665.2/57780/9789275726945_por.pdf?sequence=1&isAllowed=y

3 Arquitetura acessível é aquela que atende simultaneamente os usuários sem a necessidade de segregar ou criar adaptações específicas. Fonte: https://www.sescsp.org.br/cidades-acessiveis-os-caminhos-da-arquitetura-para-a-inclusao/

4 Mestre em desenho universal pela Faculdade de Arquitetura da Universidade de São Paulo (FAU-USP). Ex-Presidente da Comissão Permanente de Acessibilidade de São Paulo (CPA). Autora do livro “Desenho Universal: Métodos e Técnicas para arquitetos e urbanistas”.