Qual o
peso da liberdade? Qual a capacidade de resistência
da Democracia?
Por Alessandra
Leles Rocha
Observando as análises que foram
tecidas a respeito da condenação do ex-Presidente do EUA, muitos dos
comentários jornalísticos demonstram a nítida intenção de considerar os fatos
apenas na perspectiva da figura pública e não, daquele país.
Na verdade, nesse momento em que
a temperatura dos acontecimentos está elevadíssima, quaisquer conjecturas sobre
os desdobramentos e reverberações soam como meras especulações. Mas, uma coisa
é fato, não é sobre o ex-Presidente, e pretenso candidato às eleições de 2024, que se estabelece o fiel da balança.
Os números das pesquisas
eleitorais, o ânimo enfurecido dos seus apoiadores e simpatizantes, a expressão
do pensamento político nos EUA, nada disso é capaz de responder a certas
questões basilares da identidade nacional estadunidense. De modo que o decantar
dos dias e a imprevisibilidade que rodeia o mundo, irão trazer à tona o
essencial.
A ideia de ser a nação mais
forte, mais poderosa, a maior potência global, cobra um ônus diário. E diante
das conjunturas atuais, a vida não está fácil para ninguém, nem mesmo para
eles. O descontentamento interno provocado pelas decisões em relação às guerras
na Ucrânia e na Palestina são um bom exemplo de como existem fissuras na estrutura
social do país.
Sem contar, os desafios impostos
pela disputa na influência econômica global com os chineses ou na disputa de
poderio bélico com os russos, os quais não representam algo banal. Muito pelo
contrário. São dois aspectos extremamente sensíveis à manutenção prática e
discursiva da imagem de grande potência mundial, que os EUA sempre difundiram.
E é nesse ponto que reside o fiel
da balança. Se o peso dessas situações, acrescido ou não de outros elementos insólitos
possíveis de surgir no caminho, transbordar consequências desagradáveis, a
população tende a não lidar de maneira pacífica ou equilibrada com os
acontecimentos. Afinal, isso mexe com algo profundo na identidade nacional estadunidense,
em termos de crenças, valores, princípios e convicções.
Ora, eles não lidam bem com fracassos,
insucessos, derrotas, porque seu inconsciente coletivo foi historicamente
forjado pela ideia da predestinação divina à gloria, à liderança, à supremacia.
Eles se sentem os melhores, os mais aptos, os mais, em todos os sentidos.
Acontece que, agora, eles foram
expostos ao ineditismo de ter um ex-Presidente, e pretenso candidato às
eleições de 2024, considerado culpado, por 34 acusações, em julgamento criminal.
O cerne dessas acusações diz respeito a pagamentos de campanha ilegais a fim de
manter o silêncio de uma ex-atriz pornô para não prejudicar a eleição
presidencial a que ele concorria.
E diante dos muitos aspectos
antiéticos que envolvem o caso, não é difícil perceber que o orgulho estadunidense
foi atingido, em cheio. Ainda que muitos cidadãos permaneçam acreditando na
vocação predestinada do ex-Presidente para liderar o país, o conservadorismo é sim,
uma questão extremamente sensível, por lá. Traições extraconjugais já afetaram
as carreiras políticas de muitos outros candidatos, tanto no campo Democrata
quanto Republicano. De modo que esse ponto não pode ser desconsiderado.
Depois, há o fato imutável de que
o restante do planeta está a par do veredito, de ontem. Portanto, a imagem do ex-Presidente
está, no mínimo, arranhada e, eventualmente, comprometida, caso ele venha a
receber uma pena de prisão. Ora, basta imaginá-lo reeleito nesse cenário
constrangedor, a figura tida como a mais poderosa do mundo, sendo apontada como
criminoso.
Queiram ou não admitir, embora a
contemporaneidade pareça ter subvertido vários aspectos na sociedade, há sim, uma
flagrante perda de credibilidade funcional ao ex-Presidente, em razão do abalo ético
promovido por essa condenação. A inexistência de precedentes históricos a
respeito, em relação aos EUA, afeta a percepção do restante do mundo.
Considerando que a nação, tida
como a mais poderosa do planeta, confirme a reeleição do Ex-Presidente, isso
abre espaços para emergirem sucessivos questionamentos à sua liderança. Afinal de
contas, ele assumiria o cargo político mais importante, na condição de criminoso,
julgado unanimemente por um corpo de doze jurados. O que abre um flanco para
eventuais disputas, por parte das nações que rivalizam espaços geopolíticos com
os EUA.
Ora, trata-se de um prato cheio
para tensões, dentro e fora do território estadunidense. Na medida em que as conjunturas
negativas se acirram, há uma tendência natural de desagregação de apoio ao
Presidente. A popularidade derrete, especialmente, entre os cidadãos, ao falar
mais alto os valores, crenças e princípios que sustentam a sua identidade
nacional.
Depois de tantas instabilidades
geopolíticas fomentadas por governos dos EUA, há algum tempo, uma parcela significativa
da população não parece mais afeita a compactuar com situações que comprometam a
sua importância no mundo. Não, não basta mais dizer “EUA primeiro”. É preciso
consolidar a materialidade dessa ideia. Caso contrário, eles vão para as ruas protestar
e manifestar publicamente o seu descontentamento.
Ainda que os acontecimentos de 6
de janeiro de 2021, quando o Capitólio foi invadido por uma turba enfurecida de
cidadãos, possam sugerir a resistência de uma base de apoio significativa ao ex-Presidente,
e pretenso candidato às eleições de 2024, o cenário atual, para ele, é outro.
Como escreveu Steven Levitsky,
“Sempre há incerteza sobre como um político vai se comportar no cargo, mas,
como foi observado antes, líderes antidemocráticos são muitas vezes identificáveis
antes de chegarem ao poder” 1. E se isso
não foi observado antes, agora, é. Como
qualquer outro cidadão, ele foi punido pelas leis do seu próprio país. Ele caiu
do Olimpo onde parecia intocável.
Um contexto que torna ainda mais frágil
a Democracia estadunidense, do que o próprio ataque ao Capitólio. O declínio da
sua sociedade está sob uma ameaça real. Assim, o modo como eles administrarem
essa questão é o que vai determinar o curso da sua história. Esse é o tempo de
descobrir qual o peso da liberdade e qual a capacidade de resistência da
Democracia.