sexta-feira, 31 de maio de 2024

Qual o peso da liberdade? Qual a capacidade de resistência da Democracia?


Qual o peso da liberdade?  Qual a capacidade de resistência da Democracia?

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Observando as análises que foram tecidas a respeito da condenação do ex-Presidente do EUA, muitos dos comentários jornalísticos demonstram a nítida intenção de considerar os fatos apenas na perspectiva da figura pública e não, daquele país.  

Na verdade, nesse momento em que a temperatura dos acontecimentos está elevadíssima, quaisquer conjecturas sobre os desdobramentos e reverberações soam como meras especulações. Mas, uma coisa é fato, não é sobre o ex-Presidente, e pretenso candidato às eleições de 2024, que se estabelece o fiel da balança.

Os números das pesquisas eleitorais, o ânimo enfurecido dos seus apoiadores e simpatizantes, a expressão do pensamento político nos EUA, nada disso é capaz de responder a certas questões basilares da identidade nacional estadunidense. De modo que o decantar dos dias e a imprevisibilidade que rodeia o mundo, irão trazer à tona o essencial.

A ideia de ser a nação mais forte, mais poderosa, a maior potência global, cobra um ônus diário. E diante das conjunturas atuais, a vida não está fácil para ninguém, nem mesmo para eles. O descontentamento interno provocado pelas decisões em relação às guerras na Ucrânia e na Palestina são um bom exemplo de como existem fissuras na estrutura social do país.

Sem contar, os desafios impostos pela disputa na influência econômica global com os chineses ou na disputa de poderio bélico com os russos, os quais não representam algo banal. Muito pelo contrário. São dois aspectos extremamente sensíveis à manutenção prática e discursiva da imagem de grande potência mundial, que os EUA sempre difundiram.

E é nesse ponto que reside o fiel da balança. Se o peso dessas situações, acrescido ou não de outros elementos insólitos possíveis de surgir no caminho, transbordar consequências desagradáveis, a população tende a não lidar de maneira pacífica ou equilibrada com os acontecimentos. Afinal, isso mexe com algo profundo na identidade nacional estadunidense, em termos de crenças, valores, princípios e convicções.

Ora, eles não lidam bem com fracassos, insucessos, derrotas, porque seu inconsciente coletivo foi historicamente forjado pela ideia da predestinação divina à gloria, à liderança, à supremacia. Eles se sentem os melhores, os mais aptos, os mais, em todos os sentidos.

Acontece que, agora, eles foram expostos ao ineditismo de ter um ex-Presidente, e pretenso candidato às eleições de 2024, considerado culpado, por 34 acusações, em julgamento criminal. O cerne dessas acusações diz respeito a pagamentos de campanha ilegais a fim de manter o silêncio de uma ex-atriz pornô para não prejudicar a eleição presidencial a que ele concorria.

E diante dos muitos aspectos antiéticos que envolvem o caso, não é difícil perceber que o orgulho estadunidense foi atingido, em cheio. Ainda que muitos cidadãos permaneçam acreditando na vocação predestinada do ex-Presidente para liderar o país, o conservadorismo é sim, uma questão extremamente sensível, por lá. Traições extraconjugais já afetaram as carreiras políticas de muitos outros candidatos, tanto no campo Democrata quanto Republicano. De modo que esse ponto não pode ser desconsiderado.

Depois, há o fato imutável de que o restante do planeta está a par do veredito, de ontem. Portanto, a imagem do ex-Presidente está, no mínimo, arranhada e, eventualmente, comprometida, caso ele venha a receber uma pena de prisão. Ora, basta imaginá-lo reeleito nesse cenário constrangedor, a figura tida como a mais poderosa do mundo, sendo apontada como criminoso.

Queiram ou não admitir, embora a contemporaneidade pareça ter subvertido vários aspectos na sociedade, há sim, uma flagrante perda de credibilidade funcional ao ex-Presidente, em razão do abalo ético promovido por essa condenação. A inexistência de precedentes históricos a respeito, em relação aos EUA, afeta a percepção do restante do mundo.

Considerando que a nação, tida como a mais poderosa do planeta, confirme a reeleição do Ex-Presidente, isso abre espaços para emergirem sucessivos questionamentos à sua liderança. Afinal de contas, ele assumiria o cargo político mais importante, na condição de criminoso, julgado unanimemente por um corpo de doze jurados. O que abre um flanco para eventuais disputas, por parte das nações que rivalizam espaços geopolíticos com os EUA.

Ora, trata-se de um prato cheio para tensões, dentro e fora do território estadunidense. Na medida em que as conjunturas negativas se acirram, há uma tendência natural de desagregação de apoio ao Presidente. A popularidade derrete, especialmente, entre os cidadãos, ao falar mais alto os valores, crenças e princípios que sustentam a sua identidade nacional.

Depois de tantas instabilidades geopolíticas fomentadas por governos dos EUA, há algum tempo, uma parcela significativa da população não parece mais afeita a compactuar com situações que comprometam a sua importância no mundo. Não, não basta mais dizer “EUA primeiro”. É preciso consolidar a materialidade dessa ideia. Caso contrário, eles vão para as ruas protestar e manifestar publicamente o seu descontentamento.  

Ainda que os acontecimentos de 6 de janeiro de 2021, quando o Capitólio foi invadido por uma turba enfurecida de cidadãos, possam sugerir a resistência de uma base de apoio significativa ao ex-Presidente, e pretenso candidato às eleições de 2024, o cenário atual, para ele, é outro.

Como escreveu Steven Levitsky, “Sempre há incerteza sobre como um político vai se comportar no cargo, mas, como foi observado antes, líderes antidemocráticos são muitas vezes identificáveis antes de chegarem ao poder” 1. E se isso não foi observado antes, agora, é.  Como qualquer outro cidadão, ele foi punido pelas leis do seu próprio país. Ele caiu do Olimpo onde parecia intocável.

Um contexto que torna ainda mais frágil a Democracia estadunidense, do que o próprio ataque ao Capitólio. O declínio da sua sociedade está sob uma ameaça real. Assim, o modo como eles administrarem essa questão é o que vai determinar o curso da sua história. Esse é o tempo de descobrir qual o peso da liberdade e qual a capacidade de resistência da Democracia.



1 LEVITSKY, S.; ZIBLATT, D. Como as democracias morrem. Rio de Janeiro: Zahar, 2018. 272p.