sábado, 25 de maio de 2024

À revelia das opiniões ...


À revelia das opiniões ...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Olhando para o mundo contemporâneo é inevitável não ter a impressão de que muitas pessoas perderam o juízo ou a capacidade de sentir. São tantos absurdos, daqui e dali, que esse pseudossenso acaba se fortalecendo. No entanto, não creio que seja exatamente assim.

Por trás dessa aura, de alienação ensimesmada, ainda existe um ser humano. Que vive. Que sente. Que se ressente. Que se perturba. ... A grande questão é saber qual o limite de tolerabilidade das pessoas quanto a demonstrarem a sua percepção do mundo, do cotidiano.

Afinal de contas, certas verdades são doídas demais, impalatáveis, indigeríveis. De modo que é preciso, um certo jogo de cintura, para lidar com elas. O que na maioria das vezes, acaba sendo através do seu armazenamento no secretíssimo esconderijo do inconsciente, longe e inacessível ao alcance de estranhos.

Fato é que isso acontece por força da própria identidade humana. Ser, no mundo atual, é cada vez mais desafiador. Defender a própria identidade, com unhas e dentes, é somente para os bravos e destemidos, que não se acanham ou se amedrontam diante dos ataques, dos cancelamentos, das invisibilizações, das marginalizações.

Por incrível que pareça, o movimento blasé que se arrasta pela contemporaneidade, não passa de um subterfugio para dar proteção para muita gente, por aí. De alguma maneira, blindá-las da incompreensão, da não aceitação, do não pertencimento, imposto pela sociedade.

Tornar-se indiferente aos contínuos e demasiados estímulos sensoriais, afetivos, intelectuais, ... ou dos prazeres e dores do mundo, reduz o surgimento de indisposições, ruídos, atritos e beligerâncias sociais. Trata-se de um modo peculiar de “agradar a gregos e a troianos”, o qual muitos acabam definindo como uma maestria diplomática.   

Mas, eu me pergunto: será? Abafar a identidade humana, a esse ponto, me parece um preço alto demais a se pagar. Ao contrário do que muitos pensam, a psique humana é uma força causal, irredutível e indomável às ordens de causas lógicas conhecidas, portanto, ela não é inerte, isenta de impulso vital.

O que faz com que os silêncios humanos, as abstenções, as indiferenças, as negações, sejam apenas pura casca de aparência. No fundo, o cotidiano da vida continua as afetando, as alfinetando, as instigando a pensar, a sentir, a inquietar. Até que em algum momento isso extravasa, mesmo que sutilmente. Ora, a subjetividade humana também tem limites!

Pode ser que essa manifestação não se dê publicamente. Mas, o que diriam os travesseiros e as almofadas se pudessem falar, hein?! Porque essa rigidez de protocolos, esse excesso de autocontrole, para se manter à margem dos acontecimentos, não é salutar. Aliás, não só adoece como retira das pessoas o brilho fascinante da sua humanidade.

Talvez, por esse entendimento é que eu adoro essa reflexão de Martha Medeiros: “Sempre desprezei as coisas mornas, as coisas que não provocam ódio e nem paixão, as coisas definidas como mais ou menos. Um filme mais ou menos, um livro mais ou menos. Tudo perda de tempo. Viver tem que ser perturbador, é preciso que nossos anjos e demônios sejam despertados, e com eles sua raiva, seu orgulho, seu acaso, sua adoração ou seu desprezo. O que não faz você mover um músculo, o que não faz você estremecer, suar, desatinar, não merece fazer parte da sua biografia” (Divã, 2002).  

Afinal, para ser alguém com esse grau de consciência, é sinal de que essa pessoa está verdadeiramente disposta a defender sua identidade e a viver no mundo à revelia das opiniões, das imposições, dos desconfortos, alheios. São pessoas que têm a plena consciência de que “Viver é a coisa mais rara do mundo. A maioria das pessoas apenas existe” (Oscar Wilde).