sexta-feira, 24 de maio de 2024

O jogo do jogo ...


O jogo do jogo ...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Faltando 63 dias para o início dos Jogos Olímpicos de Paris, é triste perceber a deterioração do seu lema oficial “Citius, altius, fortius” (mais rápido, mais alto, mais forte), quando paira sobre a realidade contemporânea desportiva uma névoa tóxica de parcialidade, promovida pelas bolsas de aposta.

Por mais que existam mecanismos de controle, de antidoping e/ou de avaliação de imagens, a verdade é que a magia e o encantamento promovido pelas diversas práxis desportivas vêm se tornando maculadas por uma aura de suspeição. Como se fosse inevitável desconfiar sempre dos resultados.

Embora, não seja a primeira e nem última, a notícia de que um renomado jogador de futebol brasileiro foi denunciado por envolvimento com apostas no Reino Unido 1, esse fato revela o desvirtuamento imposto pelo poder capital ao mundo esportivo.

Há tempos, os atletas não são somente atletas. No contexto da realidade contemporânea, eles foram alçados à condição de produtos pela força do marketing.

Alguns possuem suas próprias marcas. Outros associam sua imagem a determinados bens, produtos e serviços. Há os que se dedicam às causas sociais; mas, que é algo não dissociado de repercussão, de visibilidade e de rentabilidade econômica.  E aqueles que se envolvem no submundo que contempla as apostas, manipulações de resultados e subornos.

Como disse, infelizmente, isso não é uma novidade. Já vimos acontecer em outros países 2. Mas, não se restringe somente ao futebol. Outros desportos já foram cooptados por essas práxis. Haja vista o “Escândalo de apostas no tênis: investigação revela que um top 30 vendeu jogos” 3.

O importante é entender que todo esse movimento reflete diretamente na desimportância do atleta em relação ao seu papel desportista, para se deslocar rumo às diversas camadas midiáticas contemporâneas, incluindo a rentabilidade de cifras astronômicas.

A contabilização de milhões de seguidores nas redes sociais, por exemplo, dá bem a dimensão desse processo. O nível de exposição deles se explica pela necessidade de cumprir esse papel de gerar conteúdo, de gerar divisas, de promover publicidade, com elementos que possam nutrir o imaginário do seu público.

Na maioria das vezes, as postagens sequer fazem menção ao esporte. O que significa que os atletas acabam sendo levados a opinar e se manifestar sobre assuntos diversos, os quais nem sempre dispõem de um relativo conhecimento a respeito.  Algo capaz de gerar, inclusive, situações desconfortáveis e polêmicas, sem a menor necessidade.

Infelizmente, o que estamos presenciando é mais um desdobramento nefasto da ingerência do poder capital sobre a sociedade contemporânea. Esse processo bate, em cheio, no ser humano, porque mexe com questões subjetivas, tais como autoestima, vaidade, inclusão social, importância.

De modo que, muitos atletas, por razões diversas, são enredados pelo fascínio que todo esse midiatismo desencadeia. Fazendo com que o esporte se torne apenas um trampolim para uma vida melhor, para o sucesso, para a notoriedade.

Aliás, esse trampolim se sustenta por certos discursos, os quais, apesar de verdadeiros, não deveriam sinalizar um caminho livre e distante da ética, como acontece. Sim, a carreira de atleta é curta. Os desafios são imensos. As oportunidades limitadas.

No entanto, aceitar que os fins possam justificar os meios anula radicalmente os valores esportivos, ou seja, o fair-play, o despertar das lideranças, o respeito às normas e regras, o senso de pertencimento e o espírito de equipe.

Nesse contexto, lembrei-me das seguintes palavras de Immanuel Kant: “A moral, propriamente dita, não é a doutrina que nos ensina como sermos felizes, mas como devemos tornar-nos dignos da felicidade”.

Portanto, que o corpo desportivo, onde quer que se encontre, lembre-se sempre de que “No reino dos fins tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode-se pôr em vez dela qualquer outra como equivalente; mas, quando uma coisa está acima de todo o preço, e portanto não permite equivalente, então ela tem dignidade” (Immanuel Kant 4).



4 KANT, I. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Tradução de Artur Morão. Lisboa: Edições 70. p.77.