terça-feira, 28 de maio de 2024

O Bruxo do Cosme Velho ...


O Bruxo do Cosme Velho ...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

É claro que o Bruxo do Cosme Velho, como era conhecido o escritor Joaquim Maria Machado de Assis, mereça todas as reverências internacionais 1 em pleno século XXI! De fato, a atemporalidade e a complexidade de suas obras despertam o interesse e o encantamento de qualquer leitor.

O surpreendente é descobrir que o “Livro de Machado de Assis (Memórias Póstumas de Brás Cubas) lidera vendas nos EUA após o elogio de escritora viralizar” 2, considerando que ele já esteve sob crivo de censura em 2020, pela Secretaria de Educação de Rondônia 3.  

Sim, observando o recorte temporal entre 2019 e 2022 4, quando o Brasil foi governado pela direita e seus matizes, mais ou menos radicais e extremistas, uma guerra cultural se estabeleceu, causando o banimento de obras clássicas e contemporâneas da literatura, por parte de algumas secretarias estaduais de Educação.

Mas, lançando o olhar em uma outra perspectiva, mais centrada no próprio Machado de Assis, percebi um viés, talvez, pouco levantado a respeito. Bem, a guerra cultural aqui estabelecida teve um caráter ideológico conservador, muito claro. Entretanto, isso não significa limitar as expressões artísticas à sua temática em si.

Embebida no caldo de um tradicionalismo de costumes, herdado dos tempos coloniais, estava uma extensa lista de preconceitos socioeconômicos, que se exacerbaram pelo país inteiro. Racismo. Misoginia. Xenofobia. LGBTQIA+fobia. Aporofobia. Enfim... Preconceitos esses que se personificavam na figura de muitos autores, cujas obras foram sumariamente desqualificadas e tornadas, um tanto quanto, inacessíveis ao grande público.  

E aí, pensando em Machado de Assis, é inevitável não perguntar quem foi esse gênio brasileiro? Primeiro filho mulato de um pintor e decorador de paredes e uma imigrante portuguesa, ele nasceu no Morro do Livramento, na cidade do Rio de Janeiro. Teve sua formação em escola pública. Começou a trabalhar desde cedo. Assim, é possível destilar, a partir dessas informações, muito sobre os preconceitos que pairam sobre o país, desde sempre.

Contudo, ninguém segura as ironias do destino e Machado de Assis, aos 15 anos, foi trabalhar em uma tipografia e acabou emergindo como escritor. De modo que o brilhantismo das suas palavras o tornou conhecido pela intectualidade carioca da época. Em apenas cinco anos ele já frequentava os círculos literários e jornalísticos da capital do Império.

Daí em diante, Machado de Assis só fez se agigantar na escrita e fundou, ao lado de outros intelectuais, a Academia Brasileira de Letras (ABL) 5, onde ocupou a cadeira de n.º 23 e foi o primeiro presidente. Pois é, apesar das desigualdades socioeconômicas marcadas pelo histórico colonial brasileiro, o Bruxo do Cosme Velho ascendeu e se apropriou do seu protagonismo.

Contrariando as expectativas, ele transitou livremente, e de cabeça erguida, pelo espaço das artes e da literatura nacional, munido de sua invejável capacidade intelectual e alto refinamento linguístico. O que em síntese pode ser considerada uma transgressão, de proporções inimaginadas, pelos representantes da direita e seus matizes; sobretudo, os mais radicais e extremistas.

Daí a minha dificuldade em estabelecer exatamente as razões que levaram a proibição de algumas de suas obras, durante o período entre 2019 e 2022. Porque não me parece ter sido apenas uma questão das obras em si, quanto algum aspecto da sua temática. Inclusive, considerando que no ambiente escolar, a literatura é conduzida por um professor, conhecedor da obra, dentro de um projeto contextualizado e ajustado aos interesses culturais e pedagógicos para uma determinada faixa etária.

Portanto, me parece que uma pitada generosa de preconceito foi o verdadeiro motivo. É difícil, para certos setores da sociedade brasileira contemporânea, aceitar que alguém, cuja biografia não exala o elitismo das grandes nações europeias, tenha atingido um patamar de importância e de relevância tamanho que extrapolou as fronteiras da literatura, alcançando outros campos do conhecimento como a Sociologia, por exemplo.

Eis que, agora, somos pegos de surpresa pelo aplauso estrangeiro à obra de Machado de Assis. Um olhar externo, não contaminado pelas impressões nacionais, isento de quaisquer senões, vem exaltar a genialidade e o talento brasileiro. Algo que, de certa forma, nos constrange, ou pelo menos deveria, por perceber que, dentro do próprio país, não conseguimos manifestar com tanta propriedade esse reconhecimento.

Aliás, o renomado crítico literário Harold Bloom, há alguns anos, durante entrevista, manifestou: “Na ficção, adoro Eça de Queiroz e Machado de Assis. Considero Machado o maior gênio da literatura brasileira do século XIX. Ele reúne os pré-requisitos da genialidade: exuberância, concisão e uma visão irônica ímpar do mundo” (Revista Época edição 246 – 03/02/2003).

Portanto, que essa mais nova explosão de reverências à literatura de Machado de Assis seja o estímulo perfeito para nos debruçarmos sobre a vasta riqueza que ele produziu, bem como, em relação a outros grandes nomes da literatura nacional. Temos muito a aprender e a refletir através da percepção dos nossos escritores, a fim de descortinar camada por camada da nossa própria identidade histórica nacional.  

Afinal, segundo Franz Kafka, “A literatura é sempre uma expedição à verdade”; pois, “Este é o prodígio da literatura, poder ser capaz de chegar mais fundo na consciência dos leitores, mesmo falando sobre uma outra coisa” (José Saramago). Por isso, ela faz muita gente se inquietar, mesmo não querendo transparecer as emoções e os sentimentos.