quinta-feira, 30 de novembro de 2023

Ações ... Reações ... Inações ...


Ações ... Reações ... Inações ...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Lamento; mas, Sir Isaac Newton tinha toda razão! A toda ação há sempre uma reação oposta e de igual intensidade.  Pois é, isso não serve só para a física; mas, para a vida, em geral. De modo que, nem adianta dizer que a natureza enlouqueceu, porque ela está somente respondendo à toda e qualquer atrocidade que a humanidade tenha lhe imposto.

Se não acredita, leia as seguintes matérias. “Justiça determina que mais famílias sejam retiradas das áreas afetadas pela mineração em Maceió” 1. “Desmatamento no Cerrado sobe 3% e alcança mil km²; aumento ocorre pela quarta temporada consecutiva” 2. “Senado aprova projeto que acelera registro de agrotóxicos no Brasil” 3. “Agrotóxico banido na União Europeia dizimou 180 milhões de abelhas no Brasil, em 2023” 4. “Entenda o que são as voçorocas que formam crateras e abismos de terra no Maranhão” 5. “Mudança do clima na Amazônia aumentou estação de seca” 6.

Elas são uma pequena amostra do que os veículos de informação e comunicação têm trazido, esse ano, ao conhecimento da sociedade. Mas, a história é longa, não é de agora, e os registros são milhares! No entanto, apesar das discussões socioambientais terem se iniciado, ainda na década de 1960, a reverberação delas, no Brasil, reflete algo recente. O que eu atribuo diretamente ao fato de o país ter sua história marcada pela colonização de caráter exploratório das riquezas naturais.

De modo que falar de sustentabilidade socioambiental, de economia verde, de emergências climáticas, de Biodiversidade, ... soa constrangedor e desconfortável. Sobretudo, considerando que o tempo passou; mas, as práxis exploratórias não. O Brasil permanece cultuando suas raízes coloniais com suas grandes plantations, com sua garimpagem indiscriminada, com a existência recorrente de trabalho análogo à escravidão, com tráfico de fauna e de flora, enfim...

E quando se olha para os espaços urbanos, o pensamento persiste retrógrado. Com uma produção desregrada, mal planejada, visivelmente poluente sob diferentes aspectos, incapaz de lidar com seus amontoados de dejetos e efluentes, incompatível com a preservação de áreas naturais importantíssimas, ... Totalmente desalinhada e desarmonizada ao que orientam as discussões globais sobre a produção e o desenvolvimento das cidades, na contemporaneidade.

De modo que o pior não é o Brasil ter se recusado a ouvir e a assimilar as discussões que acontecem, há mais de seis décadas, em todo o mundo. É claro que isso é muito ruim, porque contrariando as ações, discursivamente o país se colocou disposto a respeito, inclusive, tornando-se signatário de diversos documentos internacionais e chegando a incluir, na Constituição Federal vigente, um capítulo dedicado ao Meio Ambiente.

O pior é ele permanecer fechado em si mesmo, quanto aos seus pontos de vista obsoletos e ambientalmente contraproducentes, e querer dialogar e estabelecer seu comércio exterior ativo. SE o Brasil parou no tempo, no espaço, o resto do mundo não! Portanto, ninguém tem obrigação de bater palmas para maluco dançar!

Se os cidadãos brasileiros se mantiveram vivendo em uma bolha, alienados do que aconteceu no mundo, nos últimos dois séculos, em termos de desconstrução e de reformulação de paradigmas no campo socioambiental, problema de quem? É triste e vergonhoso; mas, paira no ar uma nítida impressão de atraso, como se o país tivesse que correr muito atrás dos prejuízos decorrentes desse comportamento, se quiser ser respeitado pelo resto do mundo.

Tudo porque, uns e outros, que detêm o poder capital e a influência sobre o poder governamental, sentem-se mais acolhidos e confortáveis nos braços da realidade colonial, que lhes foi passada de geração em geração, até aqui. Mas, como já era de se esperar, tendo em vista o andar da carruagem, o Brasil está diante do ponto de inflexão, quando o assunto orbita a pauta socioambiental. Não adianta mais negar, negligenciar, omitir, desconversar. As repercussões negativas da inação pipocam aqui, ali e acolá, sem que seja possível detê-las.

E a tendência natural é que os episódios aconteçam cada vez mais intensos, mais amiúde, mais avassaladores e, mais democráticos. Sim. As urgências socioambientais que já se desenham no horizonte irão afetar as populações sem distinção de A, B ou C. qualquer um pode ser a bola da vez! Como já se viu em várias ocorrências, nesse ano, os espaços urbanos foram atingidos à revelia das fronteiras socioeconômicas impostas pelos indivíduos. Em maior ou em menor escala, todos computaram perdas, inclusive, humanas.

Pois é, a natureza está respondendo à altura de todas as afrontas já sofridas.  Simples assim! A natureza nos colocou em xeque-mate! Fim de linha para os delírios, as inconsequências, as irresponsabilidades, as negligências, as arbitrariedades, ou o fim da nossa própria espécie. Pagamos para ver ... agora, a fatura chegou!

Assim, na esperança de que haja, realmente, um caminho de volta, comecemos a admitir que, de fato, “Falsos valores e palavras ilusórias: são estes os piores monstros para os mortais; longamente e à espera, dorme neles a fatalidade” (Friedrich Nietzsche). Porque, através desse choque de realidade, despertamos a consciência para entender que “Nesses tempos de céus de cinzas e chumbos, nós precisamos de árvores desesperadamente verdes” (Mário Quintana).



Utilidade pública


COP28. A busca pelo pragmatismo socioambiental ou não?


COP28. A busca pelo pragmatismo socioambiental ou não?

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Começa, hoje, em Dubai, nos Emirados Árabes Unidos, a 28ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas de 2023 (COP28). Fica a expectativa, se mais uma rodada de discussões vai, de fato, se comprometer de maneira ousada e contundente a favor das urgências climáticas, a ocorrer em todo o mundo, ou não.

Aliás, eu não digo isso apenas em relação à COP28. Enquanto as prioridades socioambientais gritam, o cotidiano político-partidário; sobretudo, da ultradireita, se ocupa, e se preocupa, em tensionar as relações institucionais dos países, tentando reacender como lideranças, para ampliar a sua visibilidade discursiva.

E esse é mais um risco que se corre. Omitir, negar, negligenciar, postergar, são verbos totalmente inúteis diante da nova realidade socioambiental que avança sobre o planeta. Vejam, por exemplo, a recente notícia: “Ondas ‘gigantes’ invadem ruas na Rússia após tempestade. Temporal também deixou mais de 500 mil pessoas sem luz no país, na Criméia e na Ucrânia” 1.

Pois é, a região que enfrenta, há mais de um ano, um conflito decorrente de uma nova invasão russa sobre o território ucraniano, depois de já ter anexado a península da Criméia, em 2014, foi alvo de um evento extremo do clima. A natureza impôs a sua fúria sobre as disputas geopolíticas e deixou no ar uma pergunta interessante, será que vale mesmo a pena lutar, de maneira beligerante, por um território?  

Um dos aspectos mais significativos das emergências climáticas é o modo como elas têm apresentado uma redução dos espaços habitáveis pelos seres humanos, como se estivessem redesenhando as linhas fronteiriças do planeta.

Na verdade, a geografia já não era muito favorável aos seres humanos, ou seja, apenas de terra contra de água, para assentar uma população de milhões de pessoas. E desse de terra ainda havia de se desconsiderar várias porções inóspitas, o que reduzia mais as possibilidades de ocupação.

Agora, somos mais de 8 bilhões de seres humanos e os espaços sendo cada vez mais limitados pela força das urgências climáticas; mas, também, da própria inabilidade de convivência e coexistência humana que deflagram guerras, conflitos, extermínios, deslocamentos forçados, ... Enfim, legiões de refugiados e de apátridas, por todo o mundo.

Como se, de repente, o mundo estivesse fazendo uma gigantesca dança das cadeiras, em que alguém vai ficar sem lugar, por uma razão ou por outra. O que me parece totalmente paradoxal, incongruente, considerando o modo como a humanidade lida com essa situação.

Entendam. Desde a segunda metade do século XVIII, quando a 1ª Revolução Industrial se firmou no mundo e consolidou o sistema capitalista, a dinâmica do planeta se estabeleceu em torno de um processo cada vez mais selvagem e brutal de acumulação capital, onde o ciclo produzir, vender, consumir, jamais parou de girar.

Mas, se o planeta está perdendo espaços territoriais, seja por razões antrópicas ou por emergências climáticas, se a humanidade não quiser amealhar cada vez mais prejuízos na sua acumulação capital, ela terá que mudar radicalmente as suas práxis.

Pois, não bastassem as perdas geográficas, as perdas humanas decorrentes dessas dinâmicas se tornam a imposição mais aguda e intensa ao funcionamento capitalista, na medida em que para produzir, vender e consumir é preciso legiões de indivíduos.

Vale lembrar que, a existência de muitos apostando todas as fichas nas mirabolantes criações da Inteligência Artificial (I.A.), para resolver os imbróglios contemporâneos, nada disso muda o roteiro do que estou trazendo aqui.

Nem do ponto de vista das disputas geopolíticas e demais razões antrópicas e, sobretudo, das emergências climáticas. Não há nada que a I.A. possa fazer efetivamente em relação à redução dos espaços habitáveis no planeta.

Afinal, da perspectiva de ocupação, a Terra está sim, encolhendo. A elevação do volume e o avanço das águas oceânicas sobre os continentes já é uma realidade. A destruição de áreas habitadas, por conta de enchentes, desmoronamentos, terremotos, vulcanismos, incêndios, secas, desertificação, impõe a necessidade imediata de realocação das populações em outros espaços.  

No entanto, pensar na sobrevivência em si é só a ponta do iceberg. A vida humana depende de alimentos, de água potável, de escolas, de hospitais, ... de serviços diversos, e para atender a todas essas demandas, também, há a necessidade de espaços geográficos.

Acontece que somos mais de 8 bilhões de seres humanos; portanto, mais de, não sei quantas, bilhões de carências a serem atendidas simultaneamente. Não só aquelas intrínsecas a existência humana; mas, também, todas aquelas cuidadosamente incorporadas pelo processo de construção de uma sociedade de consumo.  

Konrad Lorenz escreveu que “Um dos mais perigosos círculos viciosos, que atualmente ameaçam a sobrevivência da totalidade humana, é resultante do fato de que a ambição pela posição mais alta possível numa escala hierárquica social, ou, em outras palavras, a ambição pelo poder, se combina com uma cobiça tão fora de qualquer medida que já se tornou neurose, cobiça essa que por sua vez tem resultados que conferem maior poder” 2.

Portanto, o pragmatismo socioambiental não é uma escolha para o mundo contemporâneo. Os fatos se impõem de maneira bastante realista e contundente. Fazer ou não fazer continua sendo uma opção; mas, trazendo a consciência de que haverá consequências nefastas se a omissão, a negligência, o descaso ou a imprevidência, vierem a ser empregadas.

Porque a Terra, essa bolinha diminuta a vagar no espaço sideral, está encolhendo. Pela perspectiva da ocupação humana? Sim. Mas, essa é a perspectiva mais importante. Afinal, ela é algo que torna quaisquer outras discussões, especialmente, no campo geopolítico, menos relevantes. Porque é ela que fala da preservação, ou não, da nossa espécie.



2 LORENZ, K. A Demolição do Homem: Crítica à Falsa Religião do Progresso. 2.ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1986. p.89.   

sábado, 25 de novembro de 2023

Hora de aprender a caber dentro da nova realidade do planeta!


Hora de aprender a caber dentro da nova realidade do planeta!

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Muitas pessoas se surpreenderam com a notícia de que um bairro, em uma cidade no sul do Brasil, precisou ser evacuado, por conta de rachaduras profundas que surgiram no solo 1. Logo depois, veio a informação de que um prédio, na região afetada, estava ameaçado de queda, o que acabou se confirmando 2.

Bem, como é de conhecimento público, a região Sul tem sido bastante atingida pelos efeitos extemos do clima, com chuvas torrenciais, desmoronamentos, elevação do curso dos rios, e presença de ciclones.

O que não significa que as emergências climáticas estejam resumidas a essa parte do país.  A ocorrência de outros eventos, tais como secas e altíssimas temperaturas 3, também fazem parte do cenário nacional. Portanto, essa é a nova realidade a ser enfrentada, não apenas no Brasil, mas em todo o planeta.

Acontece que a existência desses fenômenos demasiadamente intensificados não pode ser dissociada de todo um conjunto de ações antrópicas que vêm sendo desenvolvidas ao longo de séculos. E uma das mais importantes, diante dos recentes eventos climáticos extremos no país, diz respeito ao uso e ocupação dos espaços geográficos.

Não é preciso ser expert em urbanismo ou geografia para olhar para uma cidade e entender a sua dinâmica e complexa estrutura, modulada por aspectos de ordem social, econômico e cultural. Contudo, nem sempre esse processo de produção urbana se fundamenta a partir de regras e parâmetros para o uso do solo, ou seja, que reconheçam as particularidades e especificidades do relevo, as quais o fazem mais ou menos vulneráveis e susceptíveis às intempéries do clima.  

Pois é, o relevo e a composição paisagística natural trazem informações valiosíssimas para medir o potencial de risco em se ocupar esse ou aquele espaço. De modo que ao negligenciar essas informações assume-se a possibilidade de favorecer a incidência de impactos ambientais negativos; sobretudo, agora, quando o perfil climático do planeta se mostra totalmente alterado e inconstante.   

Haja vista, por exemplo, a questão do degelo das principais cadeias montanhosas e das calotas polares. Além do aumento do nível dos mares e oceanos, ele desacelera as correntes oceânicas, ocasionando uma alteração climática global, que potencializa o recrudescimento dos episódios meteorológicos em todo o planeta. Isso sem falar na perda de inúmeras espécies, em razão da perda do seu habitat natural, e a drástica redução de água doce para consumo da população, para irrigação e para a produção de energia elétrica.

Com uma costa de 8.500 Km de extensão, o Brasil, já conta com algumas cidades sendo impactadas pelo avanço do mar sobre o espaço urbano 4. Acontece que não fica só no avanço, o aumento do nível dos mares e oceanos também repercute na dinâmica da estabilidade do solo nessas regiões. A água tende a percolar pelo terreno, em grandes profundidades, causando uma instabilidade que pode se expressar na forma de tombamento de blocos terrestres, deslizamento ou desabamento.

Assim, o modo como o ser humano se relacionou com o uso e a ocupação do solo, até aqui, vai precisar ser revisto com urgência, em nome da sobrevivência humana. Infelizmente, não há mais possibilidade de persistir em reconstruções. Os sinais do ambiente são claros! Certos lugares não podem ser ocupados novamente, dada a iminente ameaça de uma nova catástrofe.

O novo paradigma para a produção dos espaços urbanos, para o uso e a ocupação racional e sustentável do solo, se torna, a partir de agora, uma discussão fundamental para toda a sociedade. Afinal de contas, o volume de prejuízos materiais, já computados, e de perdas humanas, já sentidas, dá bem a dimensão de que, se nada for feito, pode ser ainda muito pior. Hora de aprender a caber dentro da nova realidade do planeta!



sexta-feira, 24 de novembro de 2023

Entre raios e trovões


Entre raios e trovões

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Acima das paixões, dos egos ou das vaidades humanas, as tensões entre o Senado da República e o Supremo Tribunal Federal (STF) têm muito mais a dizer do que muitos podem pensar. Tudo o que acontece de repente, esconde algo nas suas entranhas que veio se desenrolando e ameaça explodir em um desfecho, nem sempre muito favorável.

Papéis amarelando e atraindo traças e mofos, dentro das gavetas do Congresso Nacional, existem aos milhares. Desde assuntos importantíssimos e urgentes até matérias frívolas. Mas, que por razões da politicagem fisiológica brasileira, permanecem imóveis onde estão. Então, quando algo dessa natureza segue o curso de um rompante é sinal de que certo desconforto se desenha no horizonte.

Não sei se o (a) leitor (a) coaduna com a minha impressão; mas, o ápice dos atos antidemocráticos de 08 de janeiro, deste ano, não tendem a interromper o seu fluxo de reverberação, tão cedo. Haja vista a quantidade de fios desencapados, do ponto de vista dos poderes institucionais, que continuam dissipando atritos, aqui, ali e acolá.

Afinal, muitas figuras do cenário político-partidário nacional, ligadas direta ou indiretamente ao espectro ultradireitista, tiveram reações bastante desalinhadas a qualquer manifestação de indignação, de repúdio, em relação ao que se viu acontecer nas sedes dos Poderes, em Brasília. Aliás, de pronto, muitos deles partiram em defesa dos criminosos que vandalizaram e achincalharam o patrimônio público, como se estivessem no direito de fazer o que fizeram.

Mas, como é de conhecimento público, o 08 de janeiro foi apenas o gran finale de um processo de deterioração da cidadania e da identidade nacional, promovido e fomentado pela ultradireita brasileira, a fim de consolidar uma ruptura democrática no país.

De modo que muitas dessas figuras do cenário político-partidário nacional, alguns, inclusive, membros do atual Congresso Nacional, além de simpatizantes da ultradireita, também, estiveram apoiando as ações disruptivas propostas, antes mesmo do 08 de janeiro, sem que fossem impedidas, de alguma maneira, de fazê-lo.

Assim, estiveram nos palanques, nas mídias sociais, nos veículos de comunicação e de informação, totalmente dispostos a propagar suas Fake News, a distorcer e a manipular ideológico-partidariamente os acontecimentos do país, no sentido de inflamar seus eleitores. Plenamente cientes de que o resultado final dessa tensão caminhava em direção a uma expressão beligerante mais acentuada, como, de fato, acabou acontecendo.   

No entanto, o que essas figuras do cenário político-partidário nacional não contavam era com a derrota da ultradireita nas eleições. Foram, então, surpreendidos pela intranquilidade em continuar operando suas ações, sob a iminência de risco de sanções. Afinal, haviam perdido a sua legitimidade para seguir em frente.

Sem contar que, os atos antidemocráticos em si; sobretudo, o episódio de 08 de janeiro, acabou sendo um erro crasso, apoiado por essas pessoas. Atacar a Suprema Corte do país, de maneira bárbara e vil, tomou os seus representantes, os ministros, de imensa indignação e repúdio, movendo-os na direção de fortalecer, ainda mais, a instituição que representam, contra quaisquer iniciativas de intimidação.

Nesse sentido, rapidamente deram vazão à reconstrução material do que foi danificado, a fim de colocar o STF pronto para continuar acolhendo à sociedade, exercendo seu papel julgador. Sim, porque ele sabe muito bem qual é o seu papel constitucional! O STF só atua, quando provocado a analisar um caso que chega às suas mãos, a fim de determinar se o mesmo está em concordância ou não com os parâmetros legais do país 1.

E se parece o contrário, é porque dentro de uma frequência maior do que a esperada, lhe pesa o fato de que haja lacunas deixadas voluntariamente, ou não, pelos demais Poderes da República. Aí, uma vez provocado, ele não pode se omitir das suas atribuições constitucionais sob pena de prevaricação.

Pois é, esse é o ponto nevrálgico da questão. Como se encontram sobre as mesas dos eminentes Ministros da Corte processos que tratam diretamente do desenrolar dos atos antidemocráticos, ao longo de todo o seu curso de desenvolvimento, existe sim, o risco de que essas figuras do cenário político-partidário nacional, ligadas direta ou indiretamente ao espectro ultradireitista, possam vir a sofrer sanções por suas participações nos mesmos.

Não é à toa, que a ultradireita brasileira se colocou sempre em oposição ao Poder Judiciário. Ela não aceita submeter-se às leis constituídas do país, por considerar que estas não satisfazem aos seus interesses. Daí o seu desejo de criar o seu próprio arcabouço legal, de legislar em causa própria, sem obstaculizações de quem quer que seja. Vejam, por exemplo, que “das 122 PECs (propostas de emenda à Constituição) aprovadas até hoje, as 5 promulgadas mais rápido foram sob o governo anterior” 2.

Assim, entendo que o conflito estabelecido entre o Senado da República e o STF, não é necessariamente egóico. Muito do que traz a proposta da PEC aprovada no Senado 3, a própria Suprema Corte já havia recentemente determinado em seus protocolos internos, provando a ausência de necessidade de intervenções externas urgentes.

Na verdade, o que acontece é que uma fatia expressiva do atual Congresso Nacional (Câmara e Senado Federal), composta especialmente por figuras simpatizantes ou apoiadoras do espectro ultradireitista, enxerga o STF como um obstáculo aos seus interesses, uma ameaça à sua sobrevivência política. A ideia de limitar os papéis do STF surge, então, como um caminho para eventualmente protegê-los de sanções jurídicas.

Diante disso, o próprio Congresso Nacional se expõe ao constrangimento de se debruçar sobre um assunto desnecessário, enquanto pilhas e pilhas de assuntos de extrema relevância e urgência ficam à margem de quaisquer apreciações. Mais uma vez, os interesses do país, da população, são relegados a último plano, ao mesmo tempo em que a ultradireita fomenta motivos para se firmar no cenário midiático nacional.  


quinta-feira, 23 de novembro de 2023

A liberdade sob ameaça do silêncio?


A liberdade sob ameaça do silêncio?

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Sim. O importante é perceber as sutilezas, de como as vozes têm sido silenciadas, e quem está por trás desse movimento. Nada difícil ou complexo! Basta observar as próprias manchetes dos veículos de comunicação para traçar uma linha de compreensão.

“Susan Sarandon, Tom Cruise e Melissa Barrera: a polêmica em Hollywood pelos comentários de algumas estrelas sobre a guerra entre Israel e o Hamas” 1 . “Senado aprova PEC que limita poderes do STF; proposta vai para Câmara” 2. “Deputadas federais mineiras também são alvo de ameaças” 3. ...

Nos EUA ou no Brasil. Em Hollywood ou na política. Por conta das guerras em curso, no planeta, ou dos incômodos sentidos dentro dos espaços de poder. A verdade é que a liberdade de ser, de estar, de participar, de falar, está sim, sob ameaça. A diversidade e a pluralidade cognitiva, as quais garantem e respaldam a manifestação do contraditório, estão sob ameaça de silenciamento.

Embora a pergunta lógica a se fazer fosse "Por que isso acontece?", penso que o melhor é perguntar "Quem está comandando esse silenciamento?". Essa sim, é a pergunta que faz total sentido e que responde com propriedade a esse respeito.

Há tempos venho trazendo as minhas reflexões e considerações em torno das Revoluções Industriais e seus impactos na tecitura das relações sociais, em todo o mundo. Particularmente, considero que pesando a relação custo/benefício do processo, a humanidade teve mais perdas do que ganhos, e muitas delas, irremediavelmente irreparáveis.

No entanto, nesse texto, pretendo olhar objetivamente para a Revolução 4.0, porque ela é o fio condutor para o assunto em questão, ou seja, o silenciamento social. Afinal, é através dela que a raça humana chegou a um amplo sistema de tecnologias de última geração, tais como a Inteligência Artificial (I.A.), a robótica, a internet das coisas, a computação em nuvem, as quais já vêm impactando diretamente e transformando as formas de relação, produção e modelos de negócios, em cada canto do planeta.

E nem preciso dizer que, por trás das Big Techs, ou seja, das maiores empresas de tecnologia do mundo, estão pessoas alinhadas ao pensamento da Direita, em todos os seus matizes; sobretudo, os mais radicais e extremistas. Não é à toa, então, como foi fácil para esse espectro político se apropriar tão rapidamente das ferramentas tecnológicas para promover o seu ressurgimento e a sua expansão no cenário político global.  

Daí para o silenciamento social de milhões de pessoas foi um pulo! Como escreveu George Orwell, em seu livro 1984, de 1949, “O Grande Irmão está de olho em você”. Abaixo do fascínio alienante que existe em torno da Revolução 4.0, existe um grande iceberg repleto de perigos autoritários, incluindo uma vigilância excessiva da população. Cada ser humano encontra-se desnudo diante dos algoritmos da internet. Pois é, as Big Techs sabem tudo sobre você, nos mínimos detalhes.

Portanto, nada passa despercebido, nem mesmo os seus pensamentos, as suas opiniões. Você não é silenciado, ou cancelado, necessariamente, por seres humanos. Antes que A ou B ou C torçam o nariz para isso ou aquilo que você disse ou fez, foram os algoritmos que marcaram você, como uma referência contrária ao padrão considerado adequado. De algum modo, você está fora do efeito manada, comumente produzido pelas mídias sociais, e que tende a homogeneizar os grupos, segundo os interesses de uns e outros, por aí.

Lamento, mas não é possível atenuar ou contemporizar as tentativas de arraste social produzido pelas mais diferentes formas de silenciamento, na contemporaneidade. Simplesmente, porque esses silenciamentos são ferramentas usadas para garantir a consolidação ideológica da Direita, em todos os seus matizes; sobretudo, os mais radicais e extremistas. Esses silenciamentos fazem parte de um terrível projeto de poder em expansão pelo mundo, orquestrado pela ultradireita.

Não sejamos ingênuos, “As pessoas sabem aquilo que elas fazem; frequentemente sabem por que fazem o que fazem; mas o que ignoram é o efeito produzido por aquilo que fazem” (Michel Foucault). Haja vista a resistência das Big Techs em coibir as Fake News, deixando um rastro de destruição e ódio se alastrar pelas mídias sociais e culminar, inclusive, na perda de vidas humanas. Isso, sem contar, o fato de que essa omissão, também, colaborou significativamente para os interesses da ultradireita em fomentar a polarização política em locais de pleito eleitoral recente.

Tudo isso é seríssimo, porque vai além do silenciamento em si. Silenciar, cancelar, marginalizar, no fundo são estratégias ou ferramentas para deflagrar cortinas de fumaça em torno de questões que precisam ser invisibilizadas. Porque as opiniões, as manifestações, as falas contundentes de desaprovação, são sempre um holofote brilhando sobre o que deveria estar na mais completa escuridão. Contudo, só não devemos nos esquecer de que podem até silenciar as palavras; mas, as ideias, os pensamentos, jamais.

quarta-feira, 22 de novembro de 2023

Até quando vamos nos esquecer de nós?


Até quando vamos nos esquecer de nós?

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Quer saber, cansei de lamentar o fato do negacionismo contemporâneo! Infelizmente, ele existe, esta aí. O bom é que, a qualquer momento, alheia à sua vontade, as conjunturas da vida irão se impor a tal ponto, pelas mudanças necessárias, que essas pessoas não terão mais como fugir das suas responsabilidades, das suas ações.

A grande questão é que nesse contexto atabalhoado da pressa, tudo o que poderia ter sido feito de maneira calma e planejada acaba sendo realizada sob o impulso do imediatismo. E se de um modo geral, esse contexto não parece trazer tantos problemas, quando a gente se dispõe a dissecá-lo em camadas, descobre que eles existem sim.

Pois é, no mundo narcísico em que vivemos, a realidade existe sob o ditame de uma perfeição absoluta que invisibiliza aquilo que não é Narciso. Cada vez mais a humanidade abstrai a presença de todos aqueles que não se alinham satisfatoriamente aos pseudopadrões por ela estabelecidos. Seja no pensamento, no comportamento, nos hábitos cotidianos, ...; mas, principalmente, em relação aos corpos.

Ainda que todos estejam sob o guarda-chuva da cidadania, na prática não é bem assim. Idosos, obesos, deficientes, portadores de doenças raras, vivem à margem da sociedade.

Mas, abro aqui um parêntese para pedir a atenção do (a) leitor (a) sobre o óbvio. Vejamos, o envelhecimento é coisa natural da vida! Só não envelhece quem morre cedo! Quanto à obesidade há muitos fatores que interferem nessa condição. Nem sempre depende só dos esforços individuais.

Já a deficiência, ainda que ela possa ser nata, qualquer um pode, de repente, se tornar a bola da vez! Basta um acidente grave, um AVC (Acidente Vascular Cerebral), uma trombose, uma infecção, ... para ela se instalar e tornar-se parte integrada da nova realidade do indivíduo.

No entanto, essas pessoas se veem diante de não caber no mundo em que vivem, simplesmente, porque este não busca corrigir e superar as obstaculizações criadas para elas. O mundo fica só no blábláblá, nos discursos vazios e ineficazes. De modo que as discussões em torno da acessibilidade são sempre muito superficiais.

Em relação às doenças raras, muitas podem ser enquadradas no rol de uma loteria genética ou bioquímica. Uma ironia do destino que não há muito o que fazer e não depende de escolha.

Acontece que, enquanto a raça humana caminha se deixando negar a realidade e idealizar um universo paralelo, para se sentir mais feliz e confortável, o mundo continua girando na sua órbita. As mazelas, os problemas, os desafios, permanecem seguindo o seu fluxo e adquirindo contornos e cores cada vez mais intensos. Razão pela qual é preciso despertar para a diversidade e a pluralidade humana a fim de garantir-lhe os mesmos direitos de sobrevivência.

Depois de abdicar do alerta de que “Prevenir é melhor do que remediar”, não resta aos seres humanos outra opção a não ser reajustar o cotidiano dentro de novos parâmetros impostos pela emergência ambiental. Hora de arregaçar as mangas e começar a construir um modelo de estrutura social capaz de mitigar os efeitos dos eventos extremos do clima. Caso contrário, haverá uma impossibilidade real em equacionar as perdas e as reconstruções, dada a reincidência dos episódios dentro de curtos espaços de tempo.

E é aí, então, que entra o olhar atento e responsável em relação aos idosos, obesos, deficientes, portadores de doenças raras. Tradicionalmente, o seu cotidiano já é marcado por limitações naturais e por necessidades especiais; mas, diante de situações extremas, eles tendem a demandar ainda mais cuidados e ações específicas para garantir a sua sobrevivência.

Eles representam um contingente humano com evidentes dificuldades de acesso a recursos vitais e a limitações para o deslocamento geográfico. O que significa que é fundamental constituir um plano de assistência emergencial, em casos de eventos extremos do clima, para atendê-los. É inadmissível que eles fiquem à mercê da própria sorte, diante das adversidades ambientais que recrudescem a olhos vistos. Não é possível relativizar a dignidade humana e a cidadania dessas pessoas.   

É fácil dizer que isso ou aquilo é direito de todos; mas, é na prática das circunstâncias, que se percebe claramente como esse “todos” é bastante seletivo. Porque ao invés de olhar para os seres humanos como tal, cria-se rótulos e estereótipos a fim de afunilar e limitar o acesso das pessoas a esse ou aquele lugar social. O que de certa forma é um modo de construir mais uma camada para as desigualdades e para as desumanidades.

Perspectiva tosca e insensível sobre si mesmo? Certamente. Afinal, abandonar gente igual a nós não significa garantir a nossa própria sobrevivência. Estamos todos no mesmo barco, afrontados pelos mesmos desafios, os mesmos tsunamis apocalípticos. De modo que olhar para o lado e estender a mão pode sim, atenuar nossas misérias, nossos infortúnios, nossas tristezas, nossos medos, ..., nossa gigantesca pequenez humana. 

segunda-feira, 20 de novembro de 2023

Os sonhos não têm limites; mas, a realidade...


Os sonhos não têm limites; mas, a realidade...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Será uma experiência, no mínimo, interessante, acompanhar o governo recém-eleito na Argentina. Digo isso, porque o seu descolamento da realidade, estabelecendo uma visão fictícia ou idealizada de mundo, sintetiza a sua necessidade constante de reafirmação da liberdade, como se a sociedade pudesse viver alheia aos limites inerentes ao senso coletivo.

Nada mais disruptivo e comum ao cenário contemporâneo, o que explica a sua vitória com larga margem de vantagem. Ao contrário do que muitos possam pensar, o quadro eleitoral recente, no mundo, não traduz, essencialmente, um desapontamento com as práxis políticas vigentes.

É claro que esse componente existe; mas, o que parece atrair a atenção dos eleitores está ligado à uma intensa legitimação discursiva em torno das suas liberdades. Ora, olhando pela perspectiva de uma sociedade de consumo constituída a partir da construção de um inconsciente coletivo, pautado pela relação direta entre aquisição de bens/produtos e liberdade, fica evidente o peso exercido pela oportunidade de escolha e de ruptura com os limites sociais existentes.

Desse modo, falar em liberdade, no contexto contemporâneo, é semelhante a despejar toneladas de água sobre um deserto. As pessoas ficam eufóricas, extasiadas, pelos efeitos imediatistas que esse tipo de discurso causa.

Daí o problema, porque no caso de uma eleição, “Se os direitos políticos podem ser usados para enraizar e solidificar as liberdades pessoais assentadas no poder econômico, dificilmente garantirão liberdades pessoais aos despossuídos, que não têm direito aos recursos sem os quais a liberdade pessoal não pode ser obtida nem, na prática, desfrutada” (Zygmunt Bauman - Tempos Líquidos, 2007). Pois é, a liberdade só não tem limites nos devaneios, nas idealizações!

Antes do que se possa imaginar, o êxtase é interrompido pela realidade dos fatos, ou seja, “Há dois valores essenciais que são absolutamente indispensáveis para uma vida satisfatória, recompensadora e relativamente feliz. Um é segurança e o outro é a liberdade. Você não consegue ser feliz, você não consegue ter uma vida digna na ausência de um deles, certo? Segurança sem liberdade é escravidão e liberdade sem segurança é um completo caos, incapacidade de fazer nada, planejar nada, nem mesmo sonhar com isso. Então você precisa dos dois” (Zygmunt Bauman).

Mas, pelo fato de o inconsciente coletivo contemporâneo estar tão ajustado a demandar por constantes reafirmações em torno das liberdades, para satisfazer a sua ânsia de consumo em diferentes níveis, é que a ultradireita, ao redor do planeta, tem investido maciçamente nessa estratégia. A pergunta que pouquíssimas pessoas fazem é: como isso aconteceu?

Simples, “A civilização pós-moderna desarmou moral e politicamente a cultura de nosso tempo, e isso explica em boa parte por que alguns dos ‘monstros’ que acreditávamos extintos para sempre depois da Segunda Guerra Mundial, como o nacionalismo mais extremista e o racismo, ressuscitaram e estão de novo rondando no próprio coração do Ocidente, ameaçando mais uma vez seus valores e princípios democráticos” (Llosa, M. V. A civilização do espetáculo: Uma radiografia do nosso tempo e da nossa cultura, 2013).

Traduzindo em miúdos, a ideia de liberdade passou a ser utilizada dentro das estruturas de poder, construídas para reprimir e domesticar o coletivo social, a partir de sutis, mas eficazes formas de sujeição e alienação, a fim de garantir a perpetuação dos privilégios e o controle do poder pelos grupos sociais dominantes.   O que, contando com o auxílio precioso das mídias sociais, alcança resultados rápidos e surpreendentes.

Assim, esse pseudopassaporte de liberdade, amplamente divulgado pela ultradireita, colabora para todas as formas de negacionismo, agindo no sentido de quebrar com a confiança em qualquer crença de que existam verdades lógicas, éticas, culturais e/ou políticas.

Basta que o interlocutor esteja em divergência com a perspectiva de um determinado grupo ultradireitista, para que ele seja sumariamente rechaçado e, às suas ideias, seja atribuída a definição de uma ficção fabricada. Afinal, dentro desse contexto contemporâneo, a verdade precisa estar alinhada ao discurso que a liberdade de escolha do indivíduo se faz plenamente legitimada.   

sexta-feira, 17 de novembro de 2023

Nem rir, nem chorar. É preciso refletir!


Nem rir, nem chorar. É preciso refletir!

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Como no Brasil vergonha pouca é bobagem, vamos lá traçar uma breve reflexão a respeito da viagem de um grupo de deputados da ultradireita aos EUA, utilizando recurso público e com o fim de entregar um manifesto, nas Nações Unidas, sobre supostas violações aos direitos dos presos pela invasão e depredação das sedes dos Três Poderes, em Brasília, em 8 de janeiro deste ano.

E para completar, ainda tiveram um encontro com um deputado republicano da ultradireita, de origem brasileira, cuja imagem política encontra-se gravemente afetada pela publicação de um relatório de ética elaborado pela Câmara estadunidense, que o cita por várias e gravíssimas evidências de violação das leis daquele país.

A primeira palavra que me vem à cabeça para definir esse episódio é bizarrice. Esses representantes eleitos por cidadãos brasileiros, não só apequenaram a imagem do seu país no cenário internacional, como reafirmaram o seu desprezo pela soberania nacional. E ainda por cima, se acharam no direito de “fazer bonito com o chapéu alheio”, tendo em vista que se valeram do dinheiro do contribuinte para tal.

No entanto, como esse assunto rende camadas e mais camadas, fiz uma opção por concentrar minhas reflexões em torno de dois aspectos, os quais considero mais interessantes. O primeiro diz respeito ao complexo de vira-lata tão presente na ultradireita brasileira.

Já dizia o autor da expressão, o dramaturgo e escritor brasileiro Nelson Rodrigues, há décadas, que “Por ‘complexo de vira-lata’ me entendo a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo. O brasileiro é um narciso às avessas, que cospe na própria imagem. Eis a verdade: não encontramos pretextos pessoais ou históricos para a autoestima”.

Concordo plenamente; mas, devo destacar que essa característica nasceu, de certa forma, em razão da nossa herança colonial. Nossa subserviência, submissão, acato, adulação, nasceu da relação tóxica estabelecida com a Metrópole, a qual fazia questão de reafirmar a desimportância do nosso país e a necessidade de ele entender que a Europa era a protagonista da história da humanidade, o centro dos acontecimentos e das transformações globais.

Um fenômeno que acabou seguindo o fluxo dos acontecimentos e se remodelando diante da força capital do imperialismo pós Segunda Guerra Mundial e Guerra Fria. De modo que, pelo fato de a ultradireita estar alicerçada em crenças, valores e princípios que se difundiram amplamente durante a Segunda Guerra Mundial é compreensível o comportamento dos ultradireitistas brasileiros.

Sem uma autoestima constituída, eles precisam recorrer a uma potência global que, pelo menos em tese, a tem de sobra. Incapazes de dirimir seus próprios conflitos identitários nacionais, eles se humilham despudoramente diante de um ente que consideram maior, mais poderoso. Assim, lá foram eles chorar suas pitangas e carambolas na terra do Tio Sam, na esperança de que alguém dê crédito as suas conversas fiadas.

Entretanto, como era de se esperar, não contentes com o rumo dos acontecimentos, decidiram pintar com tintas ainda mais fortes as suas mentiras e fanfarronices, se aproximando de alguém que já carrega a pecha de mentiroso contumaz. Chega-se, então, ao segundo aspecto das minhas reflexões.

Não, essa aproximação não foi por acaso. Ninguém mais do que os ultradireitistas têm um apreço especial pelas Fake News, pela Pós-Verdade. Esses elementos trazidos pela alta inovação tecnológica contemporânea foram o presente do destino para reacender a chama do intento ultradireitista, de expansão, pelo planeta.

Aproveitando-se de que a contemporaneidade já havia criado o terreno fértil, a partir do discurso de liberdade plena e irrestrita, para um movimento de idealização da realidade, as Fake News chegaram para materializar esse processo. Sob uma consciência de que são livres para fazer e acontecer, os indivíduos se consideram no direito de tecer as próprias crenças, convicções, princípios e realidades. Por isso, eles não se sentem mentirosos, farsantes, impostores. Eles se consideram legitimados a dizer, a fazer, a se comportar, segundo o seu próprio senso de liberdade.

O que explica a razão de as Fake News se alastrarem sem grandes obstáculos. O apelo em torno da liberdade é o que estabelece pontes com as pessoas, criando uma persuasão alienante. Algo que para os ultradireitistas gera um poder incalculável, na medida em que cria legiões a defender furiosamente esse direito de dizer, de fazer, de se comportar, sem precisar respeitar quaisquer limites institucionalizados.

É um engano pensar que as pessoas não sabem que isso ou aquilo é mentira. Elas sabem; mas, é cômodo para elas fazer vista grossa, resguardando a legitimação ao seu próprio direito de liberdade. Portanto, essa não é uma questão pontual. É uma questão global. Aqui, ali e acolá, você encontra pessoas agindo dessa maneira. Em diferentes espectros da sociedade você vai se deparar com a presença das Fake News, da Pós-Verdade, como algo já incorporado ao cotidiano.

O problema é que tudo isso flexibiliza os parâmetros éticos e morais da sociedade; sobretudo, quando a ação do sistema jurídico parece transitar em uma velocidade aquém da necessidade real. A morosidade jurídica, de certa forma, torna-se uma aliada importante para as Fake News, a Pós-Verdade, tendo em vista que não interrompe o curso de deterioração e deturpação dos limites naturais presentes nas relações sociais. Em muitos momentos, inclusive, ela exacerba as desigualdades e perde o controle sobre as beligerâncias.

Por essas e por outras é que a viagem desse grupo de deputados da ultradireita brasileira aos EUA, ao contrário de merecer apenas visibilidade midiática, ou risos e choros, deveria merecer atenção, análise e reflexão aprofundadas.

Esse é um episódio que diz muito sobre a identidade nacional e o modo como o brasileiro se relaciona com a Democracia, o Estado de Direito, a soberania, a cidadania e a autodeterminação dos povos. Afinal, isso mede o nível de tensão e de instabilidade que permeia a realidade nacional brasileira, nesse momento.   

quinta-feira, 16 de novembro de 2023

Nós e os nossos Arquipélagos de Calor


Nós e os nossos Arquipélagos de Calor

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Lamento; mas, não adianta reclamar! As altíssimas temperaturas são um fato concreto! O calor reina entre nós! E por conta desse desatino social, que se estabeleceu diante dessa realidade escaldante, é que resolvi discutir o assunto, transitando por outros caminhos.

Aos que já se esqueceram, ou talvez, nunca souberam, o calor nada mais é do que energia em trânsito entre corpos materiais em contato, em razão da diferença de temperatura entre eles, no sentido da maior temperatura para a menor.

De modo que a propagação de calor pode se dar por três tipos de fenômeno. Na condução térmica, ela acontece a partir do contato físico entre os sólidos, na medida em que são aquecidos ou resfriados átomo por átomo. É o que acontece, por exemplo, no aquecimento do cabo de uma panela que está no fogo ou no resfriamento de líquidos imersos em gelo.

Na convecção, a propagação acontece por formação de correntes de convecção descendentes e ascendentes, como no caso do aquecimento ou resfriamento pelas correntes de ar atmosférico ou no resfriamento dos alimentos na geladeira ou no congelador.

Na irradiação, o calor é propagado por ondas eletromagnéticas, as quais se propagam no vácuo, cujo principal exemplo decorre da nossa capacidade de sentir o calor irradiado pelo Sol. De modo que esses três fenômenos de propagação de calor, na verdade, acabam provando a existência de componentes do comportamento social humano.

Como assim? Dentro de um fenômeno climático bastante conhecido dos pesquisadores, chamado de Ilha de Calor. Em decorrência do processo de urbanização é possível determinar que é maior a elevação da temperatura em áreas urbanas do que em áreas rurais ou periurbanas, dada a forma como as superfícies desses ambientes se comportam em relação à absorção e retenção do calor.

Ora, basta pensar, qualitativa e quantitativamente, sobre a presença de estruturas constituídas de cimento, asfalto, tijolo, vidro, aço, tintas escuras, ... presentes nos espaços urbanizados. Elas não só absorvem como retêm o calor por mais tempo no ambiente, contribuindo para a elevação da temperatura nos espaços geográficos.

Mas, não para por aí! A realidade contemporânea inundada por novas tecnologias que propiciaram novos bens de consumo eletricamente dependentes, também, colaboram para a propagação do calor. O seu intenso uso irradia calor por todo o ambiente. E pensando que são muitos os itens presentes no cotidiano, a energia térmica dispensada alcança cifras gigantescas, em um piscar de olhos, todo os dias.

Sem contar a presença de gases do efeito estufa. Sim. CO (dióxido de carbono ou gás carbônico) proveniente da queima de combustíveis fósseis, queimadas e desmatamentos. CH (metano) produzido pela decomposição de matéria orgânica. NO (óxido nitroso) presente através da utilização de fertilizantes químicos, queima de biomassa, desmatamento e emissões de combustíveis fósseis. CFCs (Clorofluorcarbonos) presentes em geladeiras, aparelhos de ar condicionado, isolamento térmico e espumas, e outros itens, eles destroem a camada de ozônio que protege a vida terrestre contra a ação dos raios ultravioleta. O (ozônio) é derivado de reações químicas a partir de Nox e hidrocarbonetos provenientes de usinas termoelétricas, veículos motores, uso de solventes e queimadas. E até o vapor d’água já existente na atmosfera, tendo em vista de que ele possui uma significativa capacidade de absorção da radiação emanada pelo planeta, sendo, então, responsável pelo seu aquecimento natural.  

Assim, em razão dessa desafiadora teia de componentes, é que o entendimento sobre as Ilhas de Calor se torna tão urgente. Segundo o relatório publicado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em parceria com a Organização Mundial de Meteorologia (OMM), “o calor mata em torno de 15 milhões de pessoas por ano mundialmente e é considerado uma das maiores questões de saúde da humanidade” 1.

Especialistas afirmam que a exposição contínua dos seres humanos às temperaturas extremas pode encurtar a sua expectativa de vida, porque o corpo não responde satisfatoriamente às mudanças abruptas e as medidas preventivas não são plenamente eficazes.

Preço do progresso? Em parte, podemos dizer que sim. Pois não se trata do desenvolvimento em si; mas, da inadvertência aos limites. Foram os excessos, em suas mais diferentes formas, que trouxeram a humanidade a essa realidade. Condicionados ao pertencimento à denominada Sociedade de Consumo, os indivíduos acabaram metendo os pés pelas mãos.

Afinal, os ciclos das Revoluções Industriais, até aqui, determinaram um fluxo contínuo de produção, de expansão dos espaços urbanizados, de surgimento de resíduos e efluentes, ... que culminam nos vastos Arquipélagos de Calor, os quais somos habitantes.

Por isso a reflexão é fundamental. Considero uma visão muito simplista atribuir à elevação das temperaturas, a um caráter fortuito. Não, esse processo conta uma história de alguns séculos e que vêm afetando diferentes gerações da humanidade. Agora, chegamos ao limite.

Não, ao limite do calor; mas, ao limite da sobrevivência. O calor não tende a retroceder. No entanto, a exaustão de recursos naturais vitais ao seu confronto, como a água doce e as florestas, permanece avassaladora no seu curso destrutivo. Assim como, o recrudescimento das Ilhas de Calor, em razão do fascínio tecnológico amalgamado no inconsciente coletivo.

Morrer de calor deve ser muito triste. Não, porque morrer traz um sentimento de tristeza; mas, porque associar a morte ao calor nos traz a devida dimensão do nosso fracasso civilizatório.

Poderíamos ter feito algo para mudar. Poderíamos ter tido condutas mais humanas, mais altruístas. Poderíamos ter sido mais comedidos e menos imediatistas. Poderíamos ter despertado o nosso instinto de sobrevivência. Poderíamos ...  Mas, não o fizemos e a morte, então, bateu à nossa porta.   

Assim, concluo minhas considerações com as palavras de Mia Couto, que se encaixam perfeitas aqui. Segundo ele, “A esperança é a última a morrer. Diz-se. Mas não é verdade. A esperança não morre por si mesma. A esperança é morta. Não é um assassínio espetacular, não sai nos jornais. É um processo lento e silencioso que faz esmorecer os corações, envelhecer os olhos dos meninos e nos ensina a perder a crença no futuro” 2.   



2 COUTO, M. E se Obama fosse africano? E outras intervenções. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.