Nós e os
nossos Arquipélagos de Calor
Por
Alessandra Leles Rocha
Lamento; mas, não adianta
reclamar! As altíssimas temperaturas são um fato concreto! O calor reina entre
nós! E por conta desse desatino social, que se estabeleceu diante dessa
realidade escaldante, é que resolvi discutir o assunto, transitando por outros
caminhos.
Aos que já se esqueceram, ou talvez,
nunca souberam, o calor nada mais é do que energia em trânsito entre corpos
materiais em contato, em razão da diferença de temperatura entre eles, no
sentido da maior temperatura para a menor.
De modo que a propagação de calor
pode se dar por três tipos de fenômeno. Na condução térmica, ela acontece a
partir do contato físico entre os sólidos, na medida em que são aquecidos ou
resfriados átomo por átomo. É o que acontece, por exemplo, no aquecimento do
cabo de uma panela que está no fogo ou no resfriamento de líquidos imersos em
gelo.
Na convecção, a propagação
acontece por formação de correntes de convecção descendentes e ascendentes,
como no caso do aquecimento ou resfriamento pelas correntes de ar atmosférico
ou no resfriamento dos alimentos na geladeira ou no congelador.
Na irradiação, o calor é
propagado por ondas eletromagnéticas, as quais se propagam no vácuo, cujo
principal exemplo decorre da nossa capacidade de sentir o calor irradiado pelo
Sol. De modo que esses três fenômenos de propagação de calor, na verdade,
acabam provando a existência de componentes do comportamento social humano.
Como assim? Dentro de um fenômeno
climático bastante conhecido dos pesquisadores, chamado de Ilha de Calor.
Em decorrência do processo de urbanização é possível determinar que é maior a elevação
da temperatura em áreas urbanas do que em áreas rurais ou periurbanas, dada a
forma como as superfícies desses ambientes se comportam em relação à absorção e
retenção do calor.
Ora, basta pensar, qualitativa e
quantitativamente, sobre a presença de estruturas constituídas de cimento,
asfalto, tijolo, vidro, aço, tintas escuras, ... presentes nos espaços
urbanizados. Elas não só absorvem como retêm o calor por mais tempo no
ambiente, contribuindo para a elevação da temperatura nos espaços geográficos.
Mas, não para por aí! A realidade
contemporânea inundada por novas tecnologias que propiciaram novos bens de
consumo eletricamente dependentes, também, colaboram para a propagação do
calor. O seu intenso uso irradia calor por todo o ambiente. E pensando que são
muitos os itens presentes no cotidiano, a energia térmica dispensada alcança
cifras gigantescas, em um piscar de olhos, todo os dias.
Sem contar a presença de gases do
efeito estufa. Sim. CO₂ (dióxido de carbono ou gás carbônico)
proveniente da queima de combustíveis fósseis, queimadas e desmatamentos. CH₄ (metano)
produzido pela decomposição de matéria orgânica. N₂O (óxido
nitroso) presente através da utilização de fertilizantes químicos, queima de
biomassa, desmatamento e emissões de combustíveis fósseis. CFCs
(Clorofluorcarbonos) presentes em geladeiras, aparelhos de ar condicionado, isolamento
térmico e espumas, e outros itens, eles destroem a camada de ozônio que protege
a vida terrestre contra a ação dos raios ultravioleta. O₃ (ozônio)
é derivado de reações químicas a partir de Nox e hidrocarbonetos provenientes
de usinas termoelétricas, veículos motores, uso de solventes e queimadas. E até
o vapor d’água já existente na atmosfera, tendo em vista de que ele
possui uma significativa capacidade de absorção da radiação emanada pelo planeta,
sendo, então, responsável pelo seu aquecimento natural.
Assim, em razão dessa desafiadora
teia de componentes, é que o entendimento sobre as Ilhas de Calor se
torna tão urgente. Segundo o relatório publicado pela Organização Mundial da
Saúde (OMS) em parceria com a Organização Mundial de Meteorologia (OMM), “o
calor mata em torno de 15 milhões de pessoas por ano mundialmente e é
considerado uma das maiores questões de saúde da humanidade” 1.
Especialistas afirmam que a
exposição contínua dos seres humanos às temperaturas extremas pode encurtar a
sua expectativa de vida, porque o corpo não responde satisfatoriamente às
mudanças abruptas e as medidas preventivas não são plenamente eficazes.
Preço do progresso? Em parte,
podemos dizer que sim. Pois não se trata do desenvolvimento em si; mas, da inadvertência
aos limites. Foram os excessos, em suas mais diferentes formas, que trouxeram a
humanidade a essa realidade. Condicionados ao pertencimento à denominada
Sociedade de Consumo, os indivíduos acabaram metendo os pés pelas mãos.
Afinal, os ciclos das Revoluções
Industriais, até aqui, determinaram um fluxo contínuo de produção, de expansão
dos espaços urbanizados, de surgimento de resíduos e efluentes, ... que
culminam nos vastos Arquipélagos de Calor, os quais somos habitantes.
Por isso a reflexão é
fundamental. Considero uma visão muito simplista atribuir à elevação das
temperaturas, a um caráter fortuito. Não, esse processo conta uma história de
alguns séculos e que vêm afetando diferentes gerações da humanidade. Agora,
chegamos ao limite.
Não, ao limite do calor; mas, ao
limite da sobrevivência. O calor não tende a retroceder. No entanto, a exaustão
de recursos naturais vitais ao seu confronto, como a água doce e as florestas, permanece
avassaladora no seu curso destrutivo. Assim como, o recrudescimento das Ilhas
de Calor, em razão do fascínio tecnológico amalgamado no inconsciente
coletivo.
Morrer de calor deve ser muito
triste. Não, porque morrer traz um sentimento de tristeza; mas, porque associar
a morte ao calor nos traz a devida dimensão do nosso fracasso civilizatório.
Poderíamos ter feito algo para
mudar. Poderíamos ter tido condutas mais humanas, mais altruístas. Poderíamos ter
sido mais comedidos e menos imediatistas. Poderíamos ter despertado o nosso
instinto de sobrevivência. Poderíamos ... Mas, não o fizemos e a morte, então, bateu à
nossa porta.
Assim, concluo minhas considerações com as palavras de Mia Couto, que se encaixam perfeitas aqui. Segundo ele, “A esperança é a última a morrer. Diz-se. Mas não é verdade. A esperança não morre por si mesma. A esperança é morta. Não é um assassínio espetacular, não sai nos jornais. É um processo lento e silencioso que faz esmorecer os corações, envelhecer os olhos dos meninos e nos ensina a perder a crença no futuro” 2.
1 https://contilnetnoticias.com.br/2023/11/o-calor-mata-15-milhoes-de-pessoas-ao-ano-afirma-oms-entenda-e-saiba-como-se-defender/
2 COUTO, M. E se Obama fosse africano? E outras intervenções. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.