quinta-feira, 16 de novembro de 2023

Nós e os nossos Arquipélagos de Calor


Nós e os nossos Arquipélagos de Calor

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Lamento; mas, não adianta reclamar! As altíssimas temperaturas são um fato concreto! O calor reina entre nós! E por conta desse desatino social, que se estabeleceu diante dessa realidade escaldante, é que resolvi discutir o assunto, transitando por outros caminhos.

Aos que já se esqueceram, ou talvez, nunca souberam, o calor nada mais é do que energia em trânsito entre corpos materiais em contato, em razão da diferença de temperatura entre eles, no sentido da maior temperatura para a menor.

De modo que a propagação de calor pode se dar por três tipos de fenômeno. Na condução térmica, ela acontece a partir do contato físico entre os sólidos, na medida em que são aquecidos ou resfriados átomo por átomo. É o que acontece, por exemplo, no aquecimento do cabo de uma panela que está no fogo ou no resfriamento de líquidos imersos em gelo.

Na convecção, a propagação acontece por formação de correntes de convecção descendentes e ascendentes, como no caso do aquecimento ou resfriamento pelas correntes de ar atmosférico ou no resfriamento dos alimentos na geladeira ou no congelador.

Na irradiação, o calor é propagado por ondas eletromagnéticas, as quais se propagam no vácuo, cujo principal exemplo decorre da nossa capacidade de sentir o calor irradiado pelo Sol. De modo que esses três fenômenos de propagação de calor, na verdade, acabam provando a existência de componentes do comportamento social humano.

Como assim? Dentro de um fenômeno climático bastante conhecido dos pesquisadores, chamado de Ilha de Calor. Em decorrência do processo de urbanização é possível determinar que é maior a elevação da temperatura em áreas urbanas do que em áreas rurais ou periurbanas, dada a forma como as superfícies desses ambientes se comportam em relação à absorção e retenção do calor.

Ora, basta pensar, qualitativa e quantitativamente, sobre a presença de estruturas constituídas de cimento, asfalto, tijolo, vidro, aço, tintas escuras, ... presentes nos espaços urbanizados. Elas não só absorvem como retêm o calor por mais tempo no ambiente, contribuindo para a elevação da temperatura nos espaços geográficos.

Mas, não para por aí! A realidade contemporânea inundada por novas tecnologias que propiciaram novos bens de consumo eletricamente dependentes, também, colaboram para a propagação do calor. O seu intenso uso irradia calor por todo o ambiente. E pensando que são muitos os itens presentes no cotidiano, a energia térmica dispensada alcança cifras gigantescas, em um piscar de olhos, todo os dias.

Sem contar a presença de gases do efeito estufa. Sim. CO (dióxido de carbono ou gás carbônico) proveniente da queima de combustíveis fósseis, queimadas e desmatamentos. CH (metano) produzido pela decomposição de matéria orgânica. NO (óxido nitroso) presente através da utilização de fertilizantes químicos, queima de biomassa, desmatamento e emissões de combustíveis fósseis. CFCs (Clorofluorcarbonos) presentes em geladeiras, aparelhos de ar condicionado, isolamento térmico e espumas, e outros itens, eles destroem a camada de ozônio que protege a vida terrestre contra a ação dos raios ultravioleta. O (ozônio) é derivado de reações químicas a partir de Nox e hidrocarbonetos provenientes de usinas termoelétricas, veículos motores, uso de solventes e queimadas. E até o vapor d’água já existente na atmosfera, tendo em vista de que ele possui uma significativa capacidade de absorção da radiação emanada pelo planeta, sendo, então, responsável pelo seu aquecimento natural.  

Assim, em razão dessa desafiadora teia de componentes, é que o entendimento sobre as Ilhas de Calor se torna tão urgente. Segundo o relatório publicado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em parceria com a Organização Mundial de Meteorologia (OMM), “o calor mata em torno de 15 milhões de pessoas por ano mundialmente e é considerado uma das maiores questões de saúde da humanidade” 1.

Especialistas afirmam que a exposição contínua dos seres humanos às temperaturas extremas pode encurtar a sua expectativa de vida, porque o corpo não responde satisfatoriamente às mudanças abruptas e as medidas preventivas não são plenamente eficazes.

Preço do progresso? Em parte, podemos dizer que sim. Pois não se trata do desenvolvimento em si; mas, da inadvertência aos limites. Foram os excessos, em suas mais diferentes formas, que trouxeram a humanidade a essa realidade. Condicionados ao pertencimento à denominada Sociedade de Consumo, os indivíduos acabaram metendo os pés pelas mãos.

Afinal, os ciclos das Revoluções Industriais, até aqui, determinaram um fluxo contínuo de produção, de expansão dos espaços urbanizados, de surgimento de resíduos e efluentes, ... que culminam nos vastos Arquipélagos de Calor, os quais somos habitantes.

Por isso a reflexão é fundamental. Considero uma visão muito simplista atribuir à elevação das temperaturas, a um caráter fortuito. Não, esse processo conta uma história de alguns séculos e que vêm afetando diferentes gerações da humanidade. Agora, chegamos ao limite.

Não, ao limite do calor; mas, ao limite da sobrevivência. O calor não tende a retroceder. No entanto, a exaustão de recursos naturais vitais ao seu confronto, como a água doce e as florestas, permanece avassaladora no seu curso destrutivo. Assim como, o recrudescimento das Ilhas de Calor, em razão do fascínio tecnológico amalgamado no inconsciente coletivo.

Morrer de calor deve ser muito triste. Não, porque morrer traz um sentimento de tristeza; mas, porque associar a morte ao calor nos traz a devida dimensão do nosso fracasso civilizatório.

Poderíamos ter feito algo para mudar. Poderíamos ter tido condutas mais humanas, mais altruístas. Poderíamos ter sido mais comedidos e menos imediatistas. Poderíamos ter despertado o nosso instinto de sobrevivência. Poderíamos ...  Mas, não o fizemos e a morte, então, bateu à nossa porta.   

Assim, concluo minhas considerações com as palavras de Mia Couto, que se encaixam perfeitas aqui. Segundo ele, “A esperança é a última a morrer. Diz-se. Mas não é verdade. A esperança não morre por si mesma. A esperança é morta. Não é um assassínio espetacular, não sai nos jornais. É um processo lento e silencioso que faz esmorecer os corações, envelhecer os olhos dos meninos e nos ensina a perder a crença no futuro” 2.   



2 COUTO, M. E se Obama fosse africano? E outras intervenções. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.   

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