Até
quando vamos nos esquecer de nós?
Por
Alessandra Leles Rocha
Quer saber, cansei de lamentar o
fato do negacionismo contemporâneo! Infelizmente, ele existe, esta aí. O bom é
que, a qualquer momento, alheia à sua vontade, as conjunturas da vida irão se
impor a tal ponto, pelas mudanças necessárias, que essas pessoas não terão mais
como fugir das suas responsabilidades, das suas ações.
A grande questão é que nesse
contexto atabalhoado da pressa, tudo o que poderia ter sido feito de maneira
calma e planejada acaba sendo realizada sob o impulso do imediatismo. E se de
um modo geral, esse contexto não parece trazer tantos problemas, quando a gente
se dispõe a dissecá-lo em camadas, descobre que eles existem sim.
Pois é, no mundo narcísico em que
vivemos, a realidade existe sob o ditame de uma perfeição absoluta que
invisibiliza aquilo que não é Narciso. Cada vez mais a humanidade abstrai a
presença de todos aqueles que não se alinham satisfatoriamente aos
pseudopadrões por ela estabelecidos. Seja no pensamento, no comportamento, nos
hábitos cotidianos, ...; mas, principalmente, em relação aos corpos.
Ainda que todos estejam sob o
guarda-chuva da cidadania, na prática não é bem assim. Idosos, obesos,
deficientes, portadores de doenças raras, vivem à margem da sociedade.
Mas, abro aqui um parêntese para
pedir a atenção do (a) leitor (a) sobre o óbvio. Vejamos, o envelhecimento é
coisa natural da vida! Só não envelhece quem morre cedo! Quanto à obesidade há
muitos fatores que interferem nessa condição. Nem sempre depende só dos
esforços individuais.
Já a deficiência, ainda que ela
possa ser nata, qualquer um pode, de repente, se tornar a bola da vez! Basta um
acidente grave, um AVC (Acidente Vascular Cerebral), uma trombose, uma
infecção, ... para ela se instalar e tornar-se parte integrada da nova realidade
do indivíduo.
No entanto, essas pessoas se veem
diante de não caber no mundo em que vivem, simplesmente, porque este não busca
corrigir e superar as obstaculizações criadas para elas. O mundo fica só no
blábláblá, nos discursos vazios e ineficazes. De modo que as discussões em
torno da acessibilidade são sempre muito superficiais.
Em relação às doenças raras,
muitas podem ser enquadradas no rol de uma loteria genética ou bioquímica. Uma
ironia do destino que não há muito o que fazer e não depende de escolha.
Acontece que, enquanto a raça
humana caminha se deixando negar a realidade e idealizar um universo paralelo,
para se sentir mais feliz e confortável, o mundo continua girando na sua
órbita. As mazelas, os problemas, os desafios, permanecem seguindo o seu fluxo
e adquirindo contornos e cores cada vez mais intensos. Razão pela qual é
preciso despertar para a diversidade e a pluralidade humana a fim de
garantir-lhe os mesmos direitos de sobrevivência.
Depois de abdicar do alerta de
que “Prevenir é melhor do que remediar”, não resta aos seres humanos outra
opção a não ser reajustar o cotidiano dentro de novos parâmetros impostos pela
emergência ambiental. Hora de arregaçar as mangas e começar a construir um
modelo de estrutura social capaz de mitigar os efeitos dos eventos extremos do
clima. Caso contrário, haverá uma impossibilidade real em equacionar as perdas
e as reconstruções, dada a reincidência dos episódios dentro de curtos espaços
de tempo.
E é aí, então, que entra o olhar
atento e responsável em relação aos idosos, obesos, deficientes, portadores de
doenças raras. Tradicionalmente, o seu cotidiano já é marcado por limitações
naturais e por necessidades especiais; mas, diante de situações extremas, eles
tendem a demandar ainda mais cuidados e ações específicas para garantir a sua
sobrevivência.
Eles representam um contingente
humano com evidentes dificuldades de acesso a recursos vitais e a limitações
para o deslocamento geográfico. O que significa que é fundamental constituir um
plano de assistência emergencial, em casos de eventos extremos do clima, para
atendê-los. É inadmissível que eles fiquem à mercê da própria sorte, diante das
adversidades ambientais que recrudescem a olhos vistos. Não é possível
relativizar a dignidade humana e a cidadania dessas pessoas.
É fácil dizer que isso ou aquilo
é direito de todos; mas, é na prática das circunstâncias, que se percebe
claramente como esse “todos” é bastante seletivo. Porque ao invés de olhar para
os seres humanos como tal, cria-se rótulos e estereótipos a fim de afunilar e
limitar o acesso das pessoas a esse ou aquele lugar social. O que de certa
forma é um modo de construir mais uma camada para as desigualdades e para as
desumanidades.
Perspectiva tosca e insensível sobre si mesmo? Certamente. Afinal, abandonar gente igual a nós não significa garantir a nossa própria sobrevivência. Estamos todos no mesmo barco, afrontados pelos mesmos desafios, os mesmos tsunamis apocalípticos. De modo que olhar para o lado e estender a mão pode sim, atenuar nossas misérias, nossos infortúnios, nossas tristezas, nossos medos, ..., nossa gigantesca pequenez humana.