segunda-feira, 20 de novembro de 2023

Os sonhos não têm limites; mas, a realidade...


Os sonhos não têm limites; mas, a realidade...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Será uma experiência, no mínimo, interessante, acompanhar o governo recém-eleito na Argentina. Digo isso, porque o seu descolamento da realidade, estabelecendo uma visão fictícia ou idealizada de mundo, sintetiza a sua necessidade constante de reafirmação da liberdade, como se a sociedade pudesse viver alheia aos limites inerentes ao senso coletivo.

Nada mais disruptivo e comum ao cenário contemporâneo, o que explica a sua vitória com larga margem de vantagem. Ao contrário do que muitos possam pensar, o quadro eleitoral recente, no mundo, não traduz, essencialmente, um desapontamento com as práxis políticas vigentes.

É claro que esse componente existe; mas, o que parece atrair a atenção dos eleitores está ligado à uma intensa legitimação discursiva em torno das suas liberdades. Ora, olhando pela perspectiva de uma sociedade de consumo constituída a partir da construção de um inconsciente coletivo, pautado pela relação direta entre aquisição de bens/produtos e liberdade, fica evidente o peso exercido pela oportunidade de escolha e de ruptura com os limites sociais existentes.

Desse modo, falar em liberdade, no contexto contemporâneo, é semelhante a despejar toneladas de água sobre um deserto. As pessoas ficam eufóricas, extasiadas, pelos efeitos imediatistas que esse tipo de discurso causa.

Daí o problema, porque no caso de uma eleição, “Se os direitos políticos podem ser usados para enraizar e solidificar as liberdades pessoais assentadas no poder econômico, dificilmente garantirão liberdades pessoais aos despossuídos, que não têm direito aos recursos sem os quais a liberdade pessoal não pode ser obtida nem, na prática, desfrutada” (Zygmunt Bauman - Tempos Líquidos, 2007). Pois é, a liberdade só não tem limites nos devaneios, nas idealizações!

Antes do que se possa imaginar, o êxtase é interrompido pela realidade dos fatos, ou seja, “Há dois valores essenciais que são absolutamente indispensáveis para uma vida satisfatória, recompensadora e relativamente feliz. Um é segurança e o outro é a liberdade. Você não consegue ser feliz, você não consegue ter uma vida digna na ausência de um deles, certo? Segurança sem liberdade é escravidão e liberdade sem segurança é um completo caos, incapacidade de fazer nada, planejar nada, nem mesmo sonhar com isso. Então você precisa dos dois” (Zygmunt Bauman).

Mas, pelo fato de o inconsciente coletivo contemporâneo estar tão ajustado a demandar por constantes reafirmações em torno das liberdades, para satisfazer a sua ânsia de consumo em diferentes níveis, é que a ultradireita, ao redor do planeta, tem investido maciçamente nessa estratégia. A pergunta que pouquíssimas pessoas fazem é: como isso aconteceu?

Simples, “A civilização pós-moderna desarmou moral e politicamente a cultura de nosso tempo, e isso explica em boa parte por que alguns dos ‘monstros’ que acreditávamos extintos para sempre depois da Segunda Guerra Mundial, como o nacionalismo mais extremista e o racismo, ressuscitaram e estão de novo rondando no próprio coração do Ocidente, ameaçando mais uma vez seus valores e princípios democráticos” (Llosa, M. V. A civilização do espetáculo: Uma radiografia do nosso tempo e da nossa cultura, 2013).

Traduzindo em miúdos, a ideia de liberdade passou a ser utilizada dentro das estruturas de poder, construídas para reprimir e domesticar o coletivo social, a partir de sutis, mas eficazes formas de sujeição e alienação, a fim de garantir a perpetuação dos privilégios e o controle do poder pelos grupos sociais dominantes.   O que, contando com o auxílio precioso das mídias sociais, alcança resultados rápidos e surpreendentes.

Assim, esse pseudopassaporte de liberdade, amplamente divulgado pela ultradireita, colabora para todas as formas de negacionismo, agindo no sentido de quebrar com a confiança em qualquer crença de que existam verdades lógicas, éticas, culturais e/ou políticas.

Basta que o interlocutor esteja em divergência com a perspectiva de um determinado grupo ultradireitista, para que ele seja sumariamente rechaçado e, às suas ideias, seja atribuída a definição de uma ficção fabricada. Afinal, dentro desse contexto contemporâneo, a verdade precisa estar alinhada ao discurso que a liberdade de escolha do indivíduo se faz plenamente legitimada.