Os sonhos
não têm limites; mas, a realidade...
Por
Alessandra Leles Rocha
Será uma experiência, no mínimo,
interessante, acompanhar o governo recém-eleito na Argentina. Digo isso, porque
o seu descolamento da realidade, estabelecendo uma visão fictícia ou idealizada
de mundo, sintetiza a sua necessidade constante de reafirmação da liberdade,
como se a sociedade pudesse viver alheia aos limites inerentes ao senso
coletivo.
Nada mais disruptivo e comum ao cenário
contemporâneo, o que explica a sua vitória com larga margem de vantagem. Ao contrário
do que muitos possam pensar, o quadro eleitoral recente, no mundo, não traduz,
essencialmente, um desapontamento com as práxis políticas vigentes.
É claro que esse componente
existe; mas, o que parece atrair a atenção dos eleitores está ligado à uma
intensa legitimação discursiva em torno das suas liberdades. Ora, olhando pela
perspectiva de uma sociedade de consumo constituída a partir da construção de
um inconsciente coletivo, pautado pela relação direta entre aquisição de bens/produtos
e liberdade, fica evidente o peso exercido pela oportunidade de escolha e de
ruptura com os limites sociais existentes.
Desse modo, falar em liberdade, no
contexto contemporâneo, é semelhante a despejar toneladas de água sobre um deserto.
As pessoas ficam eufóricas, extasiadas, pelos efeitos imediatistas que esse
tipo de discurso causa.
Daí o problema, porque no caso de
uma eleição, “Se os direitos políticos podem ser usados para enraizar e
solidificar as liberdades pessoais assentadas no poder econômico, dificilmente
garantirão liberdades pessoais aos despossuídos, que não têm direito aos
recursos sem os quais a liberdade pessoal não pode ser obtida nem, na prática,
desfrutada” (Zygmunt Bauman - Tempos Líquidos, 2007). Pois é, a liberdade só
não tem limites nos devaneios, nas idealizações!
Antes do que se possa imaginar, o
êxtase é interrompido pela realidade dos fatos, ou seja, “Há dois valores
essenciais que são absolutamente indispensáveis para uma vida satisfatória,
recompensadora e relativamente feliz. Um é segurança e o outro é a liberdade. Você
não consegue ser feliz, você não consegue ter uma vida digna na ausência de um
deles, certo? Segurança sem liberdade é escravidão e liberdade sem segurança é
um completo caos, incapacidade de fazer nada, planejar nada, nem mesmo sonhar
com isso. Então você precisa dos dois” (Zygmunt Bauman).
Mas, pelo fato de o inconsciente
coletivo contemporâneo estar tão ajustado a demandar por constantes
reafirmações em torno das liberdades, para satisfazer a sua ânsia de consumo em
diferentes níveis, é que a ultradireita, ao redor do planeta, tem investido maciçamente
nessa estratégia. A pergunta que pouquíssimas pessoas fazem é: como isso
aconteceu?
Simples, “A civilização pós-moderna
desarmou moral e politicamente a cultura de nosso tempo, e isso explica em boa
parte por que alguns dos ‘monstros’ que acreditávamos extintos para sempre
depois da Segunda Guerra Mundial, como o nacionalismo mais extremista e o
racismo, ressuscitaram e estão de novo rondando no próprio coração do Ocidente,
ameaçando mais uma vez seus valores e princípios democráticos” (Llosa, M. V. A
civilização do espetáculo: Uma radiografia do nosso tempo e da nossa cultura,
2013).
Traduzindo em miúdos, a ideia de
liberdade passou a ser utilizada dentro das estruturas de poder, construídas para
reprimir e domesticar o coletivo social, a partir de sutis, mas eficazes formas
de sujeição e alienação, a fim de garantir a perpetuação dos privilégios e o
controle do poder pelos grupos sociais dominantes. O que, contando
com o auxílio precioso das mídias sociais, alcança resultados rápidos e
surpreendentes.
Assim, esse pseudopassaporte de
liberdade, amplamente divulgado pela ultradireita, colabora para todas as
formas de negacionismo, agindo no sentido de quebrar com a confiança em
qualquer crença de que existam verdades lógicas, éticas, culturais e/ou
políticas.
Basta que o interlocutor esteja em divergência com a perspectiva de um determinado grupo ultradireitista, para que ele seja sumariamente rechaçado e, às suas ideias, seja atribuída a definição de uma ficção fabricada. Afinal, dentro desse contexto contemporâneo, a verdade precisa estar alinhada ao discurso que a liberdade de escolha do indivíduo se faz plenamente legitimada.