O bárbaro
efeito das tensões
Por Alessandra
Leles Rocha
A matéria “Tensão entre
políticos e ‘Supremos’ pressiona democracias pelo mundo, diz pesquisador
americano” 1 traz considerações
importantes, do ponto de vista institucional; mas, sobretudo, abre espaços para
o exercício crítico pela própria coletividade social.
Um dos traços mais marcantes da
contemporaneidade diz respeito à incapacidade das pessoas em lidar com a existência
de limites, de regras, por conta da exacerbação da liberdade. Sob diferentes
formas e conteúdos foi sim, incutido no inconsciente coletivo contemporâneo a
ideia de uma liberdade irrestrita. De modo que não é difícil de encontrar, aqui
e ali, gente que aja guiado por essa percepção; bem como, todos os desdobramentos
ruins decorrentes disso.
No Brasil, um dos exemplos clássicos
a esse respeito é o fato da profissionalização político-partidária. Não é, ou
pelo menos não deveria, ser surpresa para ninguém o fato de que muitos dos representantes
políticos nacionais façam disso uma profissão rentável e imune a certos
dissabores, comuns aos pobres mortais.
Tanto que, tão logo assumem os
seus mandatos, eles (as) se consideram livres para fazer e acontecer,
distanciando-se das plataformas de campanha que os levaram até lá. Sentem-se
como se pertencessem a uma casta superior, intocável, passível de negar, por
completo, as regras que compõem o próprio exercício da sua função pública. E como são elementos originários da própria sociedade,
eles (as) traduzem exatamente o perfil contemporâneo dela.
O que explica porque tem havido
tantas tensões e rusgas entre os Poderes da República. Não me parece,
simplesmente, uma afronta proposital à Democracia; mas, uma disputa egóica de
liberdades distintas que não se consegue compatibilizar. Os individualismos narcísicos
se inflamam, quando contrariados nas suas vontades e quereres, ou quando
submetidos à imposição de leis, códigos, doutrinas, que não foram submetidos ao
seu crivo previamente.
Acontece que não é bem assim que
a banda toca! Quando se deixa de respeitar e de viver sob os limites sociais preestabelecidos,
a humanidade volta ao seu estado indomável de barbárie. Foi o modelo de
organização social modulado pelo vasto conjunto de regras, protocolos, princípios
e valores, que promoveu a domesticação do ser humano primitivo, trazendo-o para
o contexto de ser social, coletivo.
E isso é algo seríssimo! Haja vista
o exemplo do que aconteceu na cidade do Rio de Janeiro, na última segunda-feira,
quando 35 ônibus foram incendiados depois de uma ação policial que resultou na
morte do sobrinho de um miliciano 2. Aliás, uma das manchetes a respeito elucida os
acontecimentos, “‘Milícia sinalizou que, se houver prisão, vai estabelecer o
caos no Rio’, diz ex-capitão do Bope” 3.
Entendam, é dessa forma que o ideário
contemporâneo de liberdade age para desconstruir os limites. Ele vai para o
confronto direto, para o arsenal de violências que lhe parece disponível. O que
demonstra claramente como as tensões sociais já ultrapassaram as fronteiras dos
poderes legítimos e das instituições, para alcançar a sociedade em geral. São,
como disse anteriormente, os individualismos narcísicos inflamados, que não
sabem lidar com as frustrações diante da presença dos limites.
Daí a necessidade de que a
sociedade reavalie a sua postura diante da contínua reafirmação dessa
liberdade. Os exemplos replicados constituem parâmetros de legitimidade seja
para o Bem ou para o Mal. Acontece que as sociedades já começam a sentir os
efeitos nocivos dessas práxis, computando prejuízos, os quais nem sempre podem
ser ressarcidos plenamente. Por isso, eventuais medidas repressoras não tendem
a surtir o efeito necessário.
Leis, regras, protocolos, princípios e valores só alcançam a sua efetividade, quando há uma adesão social representativa. Mas, para isso, é necessário um trabalho de consolidação dos mesmos junto aos indivíduos, que não esbarre na proliferação de exceções daqui e dali. Porque ao se abrir precedentes produz-se um efeito de esgarçamento e fragilização desses parâmetros dentro da própria sociedade. E aí, quando se dá conta, ela voltou ao seu estado indomável de barbárie. Como no dito popular, “Cada um por si e Deus por todos”.