quarta-feira, 25 de outubro de 2023

O bárbaro efeito das tensões


O bárbaro efeito das tensões

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

A matéria “Tensão entre políticos e ‘Supremos’ pressiona democracias pelo mundo, diz pesquisador americano” 1 traz considerações importantes, do ponto de vista institucional; mas, sobretudo, abre espaços para o exercício crítico pela própria coletividade social.

Um dos traços mais marcantes da contemporaneidade diz respeito à incapacidade das pessoas em lidar com a existência de limites, de regras, por conta da exacerbação da liberdade. Sob diferentes formas e conteúdos foi sim, incutido no inconsciente coletivo contemporâneo a ideia de uma liberdade irrestrita. De modo que não é difícil de encontrar, aqui e ali, gente que aja guiado por essa percepção; bem como, todos os desdobramentos ruins decorrentes disso.

No Brasil, um dos exemplos clássicos a esse respeito é o fato da profissionalização político-partidária. Não é, ou pelo menos não deveria, ser surpresa para ninguém o fato de que muitos dos representantes políticos nacionais façam disso uma profissão rentável e imune a certos dissabores, comuns aos pobres mortais.

Tanto que, tão logo assumem os seus mandatos, eles (as) se consideram livres para fazer e acontecer, distanciando-se das plataformas de campanha que os levaram até lá. Sentem-se como se pertencessem a uma casta superior, intocável, passível de negar, por completo, as regras que compõem o próprio exercício da sua função pública.  E como são elementos originários da própria sociedade, eles (as) traduzem exatamente o perfil contemporâneo dela.

O que explica porque tem havido tantas tensões e rusgas entre os Poderes da República. Não me parece, simplesmente, uma afronta proposital à Democracia; mas, uma disputa egóica de liberdades distintas que não se consegue compatibilizar. Os individualismos narcísicos se inflamam, quando contrariados nas suas vontades e quereres, ou quando submetidos à imposição de leis, códigos, doutrinas, que não foram submetidos ao seu crivo previamente.

Acontece que não é bem assim que a banda toca! Quando se deixa de respeitar e de viver sob os limites sociais preestabelecidos, a humanidade volta ao seu estado indomável de barbárie. Foi o modelo de organização social modulado pelo vasto conjunto de regras, protocolos, princípios e valores, que promoveu a domesticação do ser humano primitivo, trazendo-o para o contexto de ser social, coletivo.

E isso é algo seríssimo! Haja vista o exemplo do que aconteceu na cidade do Rio de Janeiro, na última segunda-feira, quando 35 ônibus foram incendiados depois de uma ação policial que resultou na morte do sobrinho de um miliciano 2.  Aliás, uma das manchetes a respeito elucida os acontecimentos, “‘Milícia sinalizou que, se houver prisão, vai estabelecer o caos no Rio’, diz ex-capitão do Bope” 3.

Entendam, é dessa forma que o ideário contemporâneo de liberdade age para desconstruir os limites. Ele vai para o confronto direto, para o arsenal de violências que lhe parece disponível. O que demonstra claramente como as tensões sociais já ultrapassaram as fronteiras dos poderes legítimos e das instituições, para alcançar a sociedade em geral. São, como disse anteriormente, os individualismos narcísicos inflamados, que não sabem lidar com as frustrações diante da presença dos limites.

Daí a necessidade de que a sociedade reavalie a sua postura diante da contínua reafirmação dessa liberdade. Os exemplos replicados constituem parâmetros de legitimidade seja para o Bem ou para o Mal. Acontece que as sociedades já começam a sentir os efeitos nocivos dessas práxis, computando prejuízos, os quais nem sempre podem ser ressarcidos plenamente. Por isso, eventuais medidas repressoras não tendem a surtir o efeito necessário.

Leis, regras, protocolos, princípios e valores só alcançam a sua efetividade, quando há uma adesão social representativa. Mas, para isso, é necessário um trabalho de consolidação dos mesmos junto aos indivíduos, que não esbarre na proliferação de exceções daqui e dali. Porque ao se abrir precedentes produz-se um efeito de esgarçamento e fragilização desses parâmetros dentro da própria sociedade. E aí, quando se dá conta, ela voltou ao seu estado indomável de barbárie. Como no dito popular, “Cada um por si e Deus por todos”.