sábado, 28 de outubro de 2023

O preço da desatenção


O preço da desatenção

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Não, não resta qualquer dúvida de que a descoberta da Polícia Federal (PF) sobre um esquema clandestino de espionagem 1 é algo estarrecedor, na medida em que nos remete aos históricos episódios protagonizados pelas polícias políticas, instaladas por governos autoritários, mundo afora.

Entretanto, o que de fato me causou perplexidade não foi o fato em si; mas, a reincidência de uma práxis que tem se tornado habitual na contemporaneidade e, particularmente, no Brasil, a qual diz respeito à demasiada negligência e contemporização em torno das falas de uns e outros.

Sei que estes são tempos de uma intensa atividade de linguagem e comunicação, de modo que é quase impossível dedicar a devida atenção às informações que chegam, em toneladas por minuto, graças aos avanços científicos e tecnológicos. Mas, isso não é justificativa de nada! Não é à toa que a população vem padecendo com as consequências nefastas da verborragia em curso.

Acontece que dentro dessa ausência de filtros e análises mais elaboradas, de repente, emergiu desse episódio de espionagem, um risco social de dimensões ainda não estabelecidas; mas, que tendem a ser bem pior do que meras palavras ditas sem pensar, sem fundamentação qualquer.

Só para recapitular, a verdade é que essa marca deletéria esteve presente ao longo de todo o governo anterior. Aliás, bem antes do ex-Presidente da República chegar ao posto de mandatário do país. Sob a pecha de mera fanfarronice, bravata, farolagem, suas falas terríveis e abjetas foram rapidamente desconsideradas e abandonadas de qualquer análise mais criteriosa e responsável.

Pois é, só que mesmo no contexto das vulgaridades verborrágicas, por trás de todo processo linguístico de comunicação reside uma intenção. Não há essa história de falar por falar, porque pensamento e fala não são processos independentes.

Daí, então, se tratar de algo que não é uniforme, ou seja, que está sujeito sim, a variações segundo o assunto, o interlocutor, o ambiente e a intencionalidade.

Eis que, agora, no auge da efervescência escandalosa em torno da descoberta da Polícia Federal (PF), em que boa parte da população se mostrou boquiaberta, se tem a impressão de que nenhum brasileiro teve conhecimento a respeito daquela reunião ministerial de 22 de abril de 2020 2.

Pois é, foi naquela reunião, divulgada por diversos veículos de informação e comunicação nacionais, que o ex-Presidente da República afirmou ter um “sistema particular” de informações que funcionava, enquanto teceu críticas ao sistema oficial, o qual considerava “desinformar”. Porém, como em tantas outras falas estranhas do ex-Presidente da República, essa também não mereceu, de pronto, uma sinalização reflexiva a respeito.

Agora, com as apurações da PF vindo à tona, o corre-corre é geral para se tentar descobrir a extensão das ilegalidades cometidas. Todos querem entender como essa arapongagem foi tramada, inclusive, porque o programa espião utilizado foi adquirido sem licitação e por instituições de governo, cujo papel constitucional não diz respeito a realizar investigações.

Aliás, há de se lembrar também que em 2022, o Supremo Tribunal Federal (STF), por maioria dos votos, já havia decidido “que órgãos e entidades da administração pública federal podem compartilhar dados pessoais entre si, com observância de alguns critérios”, depois de que o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e o partido Socialista Brasileiro alegaram que o Decreto 10.046/2019 da Presidência da República, que dispunha sobre a governança desse compartilhamento de dados, geraria uma espécie de vigilância massiva e representaria um controle inconstitucional do Estado 3. O que reforça a ideia de que estava em curso no país, uma série de medidas de caráter espião.

Assim, tem-se a impressão de que o Brasil esteve em guerra contra si mesmo, pelo menos ao longo dos últimos quatro anos. Sob o nome de Agência Brasileira de Inteligência (ABIN), a instituição foi usada irregularmente para espionagem que é algo bem diferente do seu propósito fundamental.

Enquanto a espionagem se caracteriza pela obtenção de dados por meios ilegais, a inteligência busca munir os governos de informações relevantes ao seus interesses político-administrativos, através de vias legais.  

Depois dessa breve reflexão, não é difícil perceber a importância e a necessidade de se dedicar mais atenção às comunicações que circulam no cotidiano.

Como bem escreveu Michel Foucault, “O discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual queremos apoderar”.

Por isso, a espionagem permanece exercendo tanta atração sobre os governos, porque ela pode oferecer a instrumentalização necessária para o projeto de poder que se pretende consolidar, na medida em que se trata de um mecanismo de vigilância e controle social.