O preço
da desatenção
Por
Alessandra Leles Rocha
Não, não resta qualquer dúvida de
que a descoberta da Polícia Federal (PF) sobre um esquema clandestino de
espionagem 1 é algo estarrecedor, na
medida em que nos remete aos históricos episódios protagonizados pelas polícias
políticas, instaladas por governos autoritários, mundo afora.
Entretanto, o que de fato me causou
perplexidade não foi o fato em si; mas, a reincidência de uma práxis que tem se
tornado habitual na contemporaneidade e, particularmente, no Brasil, a qual diz
respeito à demasiada negligência e contemporização em torno das falas de uns e
outros.
Sei que estes são tempos de uma
intensa atividade de linguagem e comunicação, de modo que é quase impossível dedicar
a devida atenção às informações que chegam, em toneladas por minuto, graças aos
avanços científicos e tecnológicos. Mas, isso não é justificativa de nada! Não é
à toa que a população vem padecendo com as consequências nefastas da
verborragia em curso.
Acontece que dentro dessa ausência
de filtros e análises mais elaboradas, de repente, emergiu desse episódio de
espionagem, um risco social de dimensões ainda não estabelecidas; mas, que
tendem a ser bem pior do que meras palavras ditas sem pensar, sem fundamentação
qualquer.
Só para recapitular, a verdade é que
essa marca deletéria esteve presente ao longo de todo o governo anterior. Aliás,
bem antes do ex-Presidente da República chegar ao posto de mandatário do país. Sob
a pecha de mera fanfarronice, bravata, farolagem, suas falas terríveis e
abjetas foram rapidamente desconsideradas e abandonadas de qualquer análise
mais criteriosa e responsável.
Pois é, só que mesmo no contexto das
vulgaridades verborrágicas, por trás de todo processo linguístico de
comunicação reside uma intenção. Não há essa história de falar por falar, porque
pensamento e fala não são processos independentes.
Daí, então, se tratar de algo que
não é uniforme, ou seja, que está sujeito sim, a variações segundo o assunto, o
interlocutor, o ambiente e a intencionalidade.
Eis que, agora, no auge da efervescência
escandalosa em torno da descoberta da Polícia Federal (PF), em que boa parte da
população se mostrou boquiaberta, se tem a impressão de que nenhum brasileiro
teve conhecimento a respeito daquela reunião ministerial de 22 de abril de 2020
2.
Pois é, foi naquela reunião, divulgada
por diversos veículos de informação e comunicação nacionais, que o ex-Presidente
da República afirmou ter um “sistema particular” de informações que
funcionava, enquanto teceu críticas ao sistema oficial, o qual considerava “desinformar”.
Porém, como em tantas outras falas estranhas do ex-Presidente da República,
essa também não mereceu, de pronto, uma sinalização reflexiva a respeito.
Agora, com as apurações da PF
vindo à tona, o corre-corre é geral para se tentar descobrir a extensão das ilegalidades
cometidas. Todos querem entender como essa arapongagem foi tramada, inclusive,
porque o programa espião utilizado foi adquirido sem licitação e por
instituições de governo, cujo papel constitucional não diz respeito a realizar
investigações.
Aliás, há de se lembrar também
que em 2022, o Supremo Tribunal Federal (STF), por maioria dos votos, já havia
decidido “que órgãos e entidades da administração pública federal podem
compartilhar dados pessoais entre si, com observância de alguns critérios”,
depois de que o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e o partido
Socialista Brasileiro alegaram que o Decreto 10.046/2019 da Presidência da
República, que dispunha sobre a governança desse compartilhamento de dados,
geraria uma espécie de vigilância massiva e representaria um controle
inconstitucional do Estado 3. O que
reforça a ideia de que estava em curso no país, uma série de medidas de caráter
espião.
Assim, tem-se a impressão de que
o Brasil esteve em guerra contra si mesmo, pelo menos ao longo dos últimos
quatro anos. Sob o nome de Agência Brasileira de Inteligência (ABIN), a
instituição foi usada irregularmente para espionagem que é algo bem diferente
do seu propósito fundamental.
Enquanto a espionagem se
caracteriza pela obtenção de dados por meios ilegais, a inteligência busca
munir os governos de informações relevantes ao seus interesses
político-administrativos, através de vias legais.
Depois dessa breve reflexão, não
é difícil perceber a importância e a necessidade de se dedicar mais atenção às
comunicações que circulam no cotidiano.
Como bem escreveu Michel
Foucault, “O discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os
sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual
queremos apoderar”.
Por isso, a espionagem permanece exercendo
tanta atração sobre os governos, porque ela pode oferecer a instrumentalização
necessária para o projeto de poder que se pretende consolidar, na medida em que
se trata de um mecanismo de vigilância e controle social.