Sob tensão...
Por Alessandra
Leles Rocha
Diferentes veículos de
comunicação e de informação vieram trazendo, nas últimas semanas, análises em
torno das tensões que se estabeleceram entre o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal
Federal (STF), por conta de assuntos sensíveis e complexos, os quais esbarram
alguns, na chamada pauta de costumes, ardorosamente defendidos pelos
simpatizantes da ultradireita nacional.
Bem, fico na dúvida se o caso é
estritamente criar ruídos que lancem os holofotes sobre os congressistas,
dando-lhes maior visibilidade à sua necessidade midiática, ou se é uma estratégia
oportunista para se desviarem dos assuntos realmente prioritários e relevantes
ao país, obstaculizando o atual governo. Mas, seja qual for o motivo, fato é
que tais rusgas não fazem qualquer sentido.
Lamento discordar, mas é natural
das relações sociais que na presença de certos vácuos criados, haja quem se
prontifique a ocupar o espaço deixado. E é isso o que tem acontecido em relação
ao STF. Não, a Suprema Corte brasileira não está legislando como dizem muitos,
por aí. Para que não restem dúvidas, o Judiciário exerce seu papel na medida em
que é provocado a analisar um caso que chega às suas mãos, a fim de determinar se
está em concordância ou não com os parâmetros legais do país.
E se isso tem ocorrido amiúde,
com uma frequência maior do que a esperada, há de se buscar entender as razões,
o que pesa bastante, o fato de que talvez os outros poderes não estejam atuando
alinhados ao que determinam suas respectivas competências. Pois é, fala-se
muito da judicialização no país; mas, ela é fruto das lacunas deixadas
voluntariamente, ou não, pelos demais poderes da República.
De modo que, a cada vez que o Legislativo
ou o Executivo se omitem ou extrapolam nas suas competências, se torna
inevitável que o STF seja provocado a deliberar sobre o assunto. O que
significa que não é o Judiciário que busca a judicialização pelas próprias mãos.
Muito pelo contrário, porque esse processo fomenta o acúmulo de trabalho nas
esferas da justiça, na medida em que esta precisa arbitrar o tempo todo sobre
questões que poderiam, na maioria das vezes, serem resolvidas de maneira
conscienciosa pelas partes.
Mas, é nesse ponto que se percebe
como a judicialização se transformou em um estratagema oportunista. O tempo de
espera posterga a decisão. Quantas pessoas já vieram a falecer aguardando por
uma decisão judicial no Brasil? Esse mecanismo de colocar em suspenso um
assunto importante a fim, talvez, de fazê-lo cair no esquecimento, é muito
cruel. Porque muitas vezes impõe obstáculos ao exercício do direito cidadão já constitucionalmente
assegurado.
E aí, olhando com mais atenção
para esse viés totalmente non sense, a situação se esclarece. O incômodo
que o STF causa a essa ala congressista simpatizante da ultradireita vai muito
além da pauta de costumes. Para muitos desses indivíduos, o STF representa uma
ameaça concreta ao seu ideário necropolítico, ou seja, o “uso do poder
político e social, especialmente por parte do Estado, de forma a determinar,
por meio de ações ou omissões (gerando condições de risco para alguns grupos ou
setores da sociedade, em contextos de desigualdade, em zonas de exclusão e violência,
em condições de vida precárias, por exemplo), quem pode permanecer vivo ou deve
morrer” 1.
É dentro desse pensamento que
estão as chamadas pautas de costume, as quais, na verdade, não tratam de
costumes; mas, de direitos. É isso mesmo! Igualdade de gênero. Igualdade racial.
Direitos LGBTQIA+. Direitos civis. Direitos sexuais e reprodutivos. Reconhecimento
da diversidade. Direitos humanos. É preciso entender que as raízes da
necropolítica se encontram no histórico colonial brasileiro, nesse modo de organização
e relação social que vem vigorando pela força do poder das elites, ao longo
desses pouco mais de 500 anos. Portanto, há um interesse claro na preservação e
manutenção das regalias e dos privilégios daqueles que sempre detiveram os
poderes no país.
Sendo assim, considerando que a
Constituição Federal vigente é conhecida como Constituição Cidadã, ela
manifesta uma oposição clara à necropolítica. E como o STF é o guardião da Lei Magna,
então, ele também faz oposição a tal conceito. Daí os ataques, as tensões, as
disputas, que vêm se estabelecendo. O curioso é que ao se sentir incomodado, o
Congresso Nacional, nas suas próprias atitudes, acaba provocando a deliberação
do STF a respeito desses assuntos, gerando um ciclo sem fim. Afinal de contas, o
Congresso não é uma representação homogênea, de modo que a existência de divergências
internas sempre acaba deflagrando uma provocação ao STF. Aí, uma vez provocado,
o STF não pode se omitir sob pena de prevaricação.
Portanto, esse é o cenário. Mais uma
vez, o país está assistindo a um ataque ao Estado de Direito, à Constituição
Federal, à Democracia, ou seja, ao STF. Quaisquer que sejam os recortes históricos,
nos quais a ultradireita se faça presente, se verifica o quão difícil é para esses
indivíduos existir em um mundo organizado diferentemente da sua idealização. Por
isso, eles vivem sob constante beligerância, insubordinação, desrespeito,
rebeldia, desobediência, tentando a qualquer custo fazer a sociedade se curvar
aos seus objetivos e interesses.