Um dia
importante...
Por Alessandra
Leles Rocha
Um dia importante para a
reafirmação da cidadania dos povos originários brasileiros. Fazendo jus ao que
já estabelecia a Constituição Federal de 1988, a decisão do Supremo Tribunal
Federal (STF), expressa por 9 votos a 2, considerou inválida a tese do marco
temporal, a qual dizia que os indígenas só teriam direito as terras por eles
ocupadas no dia em que a Carta Magna vigente foi promulgada 1.
Mas, se a celebração é legítima e
oportuna, por outro lado ela traz reflexões que não podem passar despercebidas.
O simples fato de ter sido necessário chegar ao STF uma questão já
constitucionalizada, só aconteceu por um flagrante descompromisso estatal histórico,
em relação à demarcação dos territórios dos povos originários.
O ranço do pensamento retrógrado
colonial perpetuado ao longo dos séculos de existência do país, sempre colocou obstáculos
para a devida apropriação da cidadania pelos povos indígenas. E sua cidadania
se faz fundamentalmente a partir do espaço geográfico que sempre ocuparam.
Mas, por força da arbitrariedade
do capital, foram desapropriados brutalmente das suas raízes e tratados como
cidadãos de última classe, subordinados às eventuais beneficências oferecidas
pelo Estado.
Sim, eles experimentaram todo o
tipo de negligência, de desrespeito, de espoliação, por parte daqueles que não
se abstiveram de perpetuar os valores, as crenças e os costumes eurocêntricos herdados.
Razão pela qual, tantas tribos foram
dizimadas, ao longo da história brasileira, fazendo desaparecer o registro das suas
organizações sociais, dos seus costumes, das suas línguas, das suas crenças e
das suas tradições.
O que se traduziu em um imenso
empobrecimento sociocultural para a construção da verdadeira identidade nacional,
a qual ficou repleta de lacunas e muita desinformação.
Satisfeita, então, a necessidade
de manifestar a voz da lei maior do país sobre o fato de que “As terras
tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente,
cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos
nelas existentes” (§2º, art. 231, CF. de 1988), paira a
dúvida de como irão se comportar aqueles que discordam abertamente do que
manifesta o texto constitucional, na defesa dos direitos dos povos originários.
Porque, apesar de a Constituição Federal
conter em si mesma um caráter pedagógico de orientação da sociedade, nenhuma
lei é capaz de efetivamente desconstruir certos paradigmas ideológicos, muitas
vezes, impregnados no inconsciente coletivo.
Haja vista a condição do próprio sistema
prisional brasileiro. Desconsiderando-se as falhas, os equívocos, os
enviesamentos e as tendenciosidades, presentes no cumprimento do sistema jurídico
nacional, grande parte dos prisioneiros chegam a essa condição pelas mãos da sua
transgressão deliberada das leis.
De modo que, se a decisão protege
o espaço geográfico dos povos originários, ela não garante que a União conseguirá
efetivamente proteger e fazer respeitar os seus bens e direitos. Basta lembrar, por exemplo, que há três dias uma
“Líder religiosa e seu marido foram mortos em aldeia indígena de MS” 2.
Infelizmente, o homem branco
brasileiro, do século XXI, carrega consigo o mesmo discurso colonialista que
vigorou entre os séculos XVI e XIX, no país. E esse pensamento não tende a
mudar, tendo em vista a força dos interesses econômicos.
Basta observar que todas as
discussões em torno da sustentabilidade socioambiental, das ameaças dos eventos
extremos do clima, dos impactos da escassez hídrica, da importância dos povos
originários para o equilíbrio ambiental do planeta, ... nada disso, demove ou condói
os negacionistas do meio ambiente, dentre os quais estão os principais lobistas
que atuaram a favor do marco temporal. Suas crenças, valores e princípios refletem
exatamente o mesmo discurso exploratório e dizimador dos tempos coloniais, sem
tirar uma vírgula.
Vamos e convenhamos que não se
pode fechar os olhos para o rastro de destruição deixado pelos garimpeiros nas terras
Yanomamis. Os rios da Amazônia foram sim, contaminados pelo mercúrio. O que levou
a um efeito cascata nocivo sobre os indígenas, os ribeirinhos, o solo, a fauna
e a flora.
E não se sabe se, algum dia, a região
será efetivamente recuperada dessa violenta ação antrópica. Mas, esse é só um exemplo dentre várias violências
ambientais cometidas na região e que culminaram na morte de muitos indígenas.
É por essas e por outras, então,
que é fundamental que o Estado brasileiro se pronuncie a respeito das medidas
que pretende tomar, no sentido de garantir a sobrevivência, a dignidade e a
cidadania dos povos originários, nos espaços geográficos do território nacional
onde eles se encontram.
Se nos centros urbanos já é possível
mensurar a desigualdade de forças diante da violência, imagina para os povos indígenas?
Eles são a parte mais vulnerável da história, pesando contra eles um poder
capital imenso, oriundo de grileiros, garimpeiros, madeireiros e traficantes.
Isso significa que eles não podem
ser abandonados, desamparados, expostos, mais uma vez, pelas instituições e
estruturas de poder brasileiras. Nenhum ser
humano sobrevive sem segurança, sem proteção.
Diante do cenário apocalíptico do
século XXI, não é possível aceitar que se permita repetir os velhos massacres humanos
do passado. A raça humana já tem desafios demais para se digladiar contra a própria
espécie. Basta observar que “Estamos sendo lembrados de que somos tão
vulneráveis que, se cortarem nosso ar por alguns minutos, a gente morre”
(Ailton Krenak).
Portanto, o que melhor sintetiza
o dia de hoje e move o exercício da nossa reflexão, vem das palavras de Martin
Luther King Jr., quando disse “Suba o primeiro degrau com fé. Não é necessário
que você veja toda a escada. Apenas dê o primeiro passo”.
Que a sociedade brasileira,
então, esteja preparada para os próximos, porque “Não há nada mais trágico neste
mundo do que saber o que é certo e não fazê-lo. Que tal mudarmos o mundo
começando por nós mesmos?” (Martin Luther King Jr.).