quinta-feira, 21 de setembro de 2023

Um dia importante..


Um dia importante...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Um dia importante para a reafirmação da cidadania dos povos originários brasileiros. Fazendo jus ao que já estabelecia a Constituição Federal de 1988, a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), expressa por 9 votos a 2, considerou inválida a tese do marco temporal, a qual dizia que os indígenas só teriam direito as terras por eles ocupadas no dia em que a Carta Magna vigente foi promulgada 1.

Mas, se a celebração é legítima e oportuna, por outro lado ela traz reflexões que não podem passar despercebidas. O simples fato de ter sido necessário chegar ao STF uma questão já constitucionalizada, só aconteceu por um flagrante descompromisso estatal histórico, em relação à demarcação dos territórios dos povos originários.   

O ranço do pensamento retrógrado colonial perpetuado ao longo dos séculos de existência do país, sempre colocou obstáculos para a devida apropriação da cidadania pelos povos indígenas. E sua cidadania se faz fundamentalmente a partir do espaço geográfico que sempre ocuparam.

Mas, por força da arbitrariedade do capital, foram desapropriados brutalmente das suas raízes e tratados como cidadãos de última classe, subordinados às eventuais beneficências oferecidas pelo Estado.

Sim, eles experimentaram todo o tipo de negligência, de desrespeito, de espoliação, por parte daqueles que não se abstiveram de perpetuar os valores, as crenças e os costumes eurocêntricos herdados.

Razão pela qual, tantas tribos foram dizimadas, ao longo da história brasileira, fazendo desaparecer o registro das suas organizações sociais, dos seus costumes, das suas línguas, das suas crenças e das suas tradições.

O que se traduziu em um imenso empobrecimento sociocultural para a construção da verdadeira identidade nacional, a qual ficou repleta de lacunas e muita desinformação.

Satisfeita, então, a necessidade de manifestar a voz da lei maior do país sobre o fato de que “As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes” (§2º, art. 231, CF. de 1988), paira a dúvida de como irão se comportar aqueles que discordam abertamente do que manifesta o texto constitucional, na defesa dos direitos dos povos originários.

Porque, apesar de a Constituição Federal conter em si mesma um caráter pedagógico de orientação da sociedade, nenhuma lei é capaz de efetivamente desconstruir certos paradigmas ideológicos, muitas vezes, impregnados no inconsciente coletivo.

Haja vista a condição do próprio sistema prisional brasileiro. Desconsiderando-se as falhas, os equívocos, os enviesamentos e as tendenciosidades, presentes no cumprimento do sistema jurídico nacional, grande parte dos prisioneiros chegam a essa condição pelas mãos da sua transgressão deliberada das leis.  

De modo que, se a decisão protege o espaço geográfico dos povos originários, ela não garante que a União conseguirá efetivamente proteger e fazer respeitar os seus bens e direitos.  Basta lembrar, por exemplo, que há três dias uma “Líder religiosa e seu marido foram mortos em aldeia indígena de MS” 2.

Infelizmente, o homem branco brasileiro, do século XXI, carrega consigo o mesmo discurso colonialista que vigorou entre os séculos XVI e XIX, no país. E esse pensamento não tende a mudar, tendo em vista a força dos interesses econômicos.

Basta observar que todas as discussões em torno da sustentabilidade socioambiental, das ameaças dos eventos extremos do clima, dos impactos da escassez hídrica, da importância dos povos originários para o equilíbrio ambiental do planeta, ... nada disso, demove ou condói os negacionistas do meio ambiente, dentre os quais estão os principais lobistas que atuaram a favor do marco temporal. Suas crenças, valores e princípios refletem exatamente o mesmo discurso exploratório e dizimador dos tempos coloniais, sem tirar uma vírgula.

Vamos e convenhamos que não se pode fechar os olhos para o rastro de destruição deixado pelos garimpeiros nas terras Yanomamis. Os rios da Amazônia foram sim, contaminados pelo mercúrio. O que levou a um efeito cascata nocivo sobre os indígenas, os ribeirinhos, o solo, a fauna e a flora.

E não se sabe se, algum dia, a região será efetivamente recuperada dessa violenta ação antrópica.  Mas, esse é só um exemplo dentre várias violências ambientais cometidas na região e que culminaram na morte de muitos indígenas.

É por essas e por outras, então, que é fundamental que o Estado brasileiro se pronuncie a respeito das medidas que pretende tomar, no sentido de garantir a sobrevivência, a dignidade e a cidadania dos povos originários, nos espaços geográficos do território nacional onde eles se encontram. 

Se nos centros urbanos já é possível mensurar a desigualdade de forças diante da violência, imagina para os povos indígenas? Eles são a parte mais vulnerável da história, pesando contra eles um poder capital imenso, oriundo de grileiros, garimpeiros, madeireiros e traficantes.

Isso significa que eles não podem ser abandonados, desamparados, expostos, mais uma vez, pelas instituições e estruturas de poder brasileiras.  Nenhum ser humano sobrevive sem segurança, sem proteção.

Diante do cenário apocalíptico do século XXI, não é possível aceitar que se permita repetir os velhos massacres humanos do passado. A raça humana já tem desafios demais para se digladiar contra a própria espécie. Basta observar que “Estamos sendo lembrados de que somos tão vulneráveis que, se cortarem nosso ar por alguns minutos, a gente morre” (Ailton Krenak).

Portanto, o que melhor sintetiza o dia de hoje e move o exercício da nossa reflexão, vem das palavras de Martin Luther King Jr., quando disse “Suba o primeiro degrau com fé. Não é necessário que você veja toda a escada. Apenas dê o primeiro passo”.

Que a sociedade brasileira, então, esteja preparada para os próximos, porque “Não há nada mais trágico neste mundo do que saber o que é certo e não fazê-lo. Que tal mudarmos o mundo começando por nós mesmos?” (Martin Luther King Jr.).

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