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Por
Alessandra Leles Rocha
Lamento, mas o recente caso dos
estudantes de Medicina expulsos de uma universidade paulista 1, por conta de atos constrangedores e
criminosos, não diz respeito somente a eles. O que foi escancarado pelos
veículos de comunicação e de informação diz respeito à flagrante deterioração
da civilidade brasileira, que se permitiu fazer vista grossa para as
deformidades éticas e morais apresentadas por certos indivíduos; sobretudo, aqueles
oriundos das classes mais abastadas.
Não, não se pode negar que o peso
histórico do “vale quanto pesa” reina tranquilo, em pleno século XXI, no
Brasil. Infelizmente, a herança maldita
imposta pelo poder capital, ou material, é parte da jornada do ser humano sobre
a Terra, no sentido de estabelecer a importância de uns em detrimento de outros;
bem como, enviesando a justiça de modo ultrajante e a constituir todas as
mazelas da desigualdade.
É a partir dessa lógica abjeta
que a humanidade convive, muitas vezes, sem dar a devida atenção, com as mais
terríveis violências sociais, seja no campo objetivo ou subjetivo. Racismo,
Misoginia, Xenofobia, Aporofobia, Etarismo, Homo e transfobia, Intolerância
Religiosa, fazem parte de uma paleta de ideias e comportamentos balizadas,
principalmente, pelo poder aquisitivo de determinados estratos sociais.
O que uma imensa maioria não
percebe é que isso significa destituir o indivíduo da sua potencialidade
cognitiva para outorgá-la ao dinheiro ou quaisquer outras riquezas materiais.
De modo que se passa a pensar, a agir, a decidir, a conviver, segundo as cifras
as quais se dispõe. Nada mais nada menos, do que uma estratificação social estritamente
materialista e plenamente desumanizada.
E por quê ninguém fala, discute,
problematiza, essa questão? Porque a relação do ser humano com a riqueza é
histórica e, nesse sentido, já criou raízes no inconsciente coletivo. Ora, o
espaço de vez e voz na sociedade foi apropriado por quem detém o capital.
Portanto, as crenças, os valores,
as leis, os costumes, acabam sendo estabelecidos e manipulados por esses
indivíduos. Haja vista como as tentativas de estabelecer o contraditório, de
ampliar as fronteiras da reflexão e da discursividade, são furiosamente
rechaçadas por determinados segmentos.
Aliás, é curioso como esses
acontecimentos escandalosos acabam trazendo um viés muito oportuno, no sentido
de descortinar as verdades e expor as hipocrisias ao mundo real. Pois é, do
silêncio fez-se o espanto! O passaporte da liberdade incondicional, oferecido
pelo dinheiro, deixou o conservadorismo e os bons modos nus, literalmente.
Mas, façamos justiça de que eles
não ficaram despidos sozinhos. Por mais indigesta que seja a situação, todos
fomos obrigados a enxergar como a sociedade e as instituições têm falhado na
formação dos futuros profissionais brasileiros.
Não só as universidades; mas,
desde cedo, no âmbito educacional. Quando muitos consideram engraçada a velha
máxima do “papai pagou, passou”, as consequências, agora, repercutem
amargas e fazem todo sentido.
Elas arrastaram para a desonra, o
descrédito, o demérito, os autores da infâmia; mas, também, suas famílias, seus
professores, o sistema de ensino, as instituições educacionais, e todos aqueles
que assistiram silenciosos e omissos ao curso desse processo deplorável.
O problema é que essa omissão,
essa negligência, esse descaso, em algum momento vai bater à porta da própria
sociedade. Sim, pela inadvertência social permite-se entregar a indivíduos,
como esses jovens, um diploma de curso superior, conferindo-lhes o direito de
merecer a confiança e a credibilidade no seu exercício profissional.
Ora, e o que é a formação
profissional senão a etapa que antecede ao serviço à sociedade! Portanto, o indivíduo
não pode estar despido da sua ética e da sua moral para oferecer os seus
conhecimentos, as suas práticas, o seu trabalho. Ou pode?
Apesar de toda a aura histórica
que envolve a Medicina, o seu manto de glamour e reverência social, nada disso
é suficiente para blindar possíveis críticas e questionamentos. Em algum
momento a fragilidade, exposta pela vaidade e pela arrogância de certos
profissionais, aponta para a ausência de uma verdadeira competência e habilidade,
que não foram devidamente construídas.
Há sim, uma visível crise envolvendo
a formação médica no Brasil; mas, que não se resume em si mesma 2. Os recentes acontecimentos não deixam
dúvidas de que certas crenças, valores, princípios e convicções, de natureza
totalmente materialista, têm amparado e difundido ideologias supremacistas entre
futuros e já estabelecidos profissionais da área.
O momento, então, pede uma
profunda reflexão não silenciosa. Um mergulho coletivo que esmiuce às origens, não
apenas profissionais, mas civilizatórias. É fundamental traçar uma linha do
tempo e descobrir onde tamanha degeneração humana se iniciou, para que seja
possível buscar soluções a respeito.
Segundo escreveu Albert Camus, “Os
flagelos, na verdade, são uma coisa comum, mas é difícil acreditar neles quando
se abatem sobre nós. Houve no mundo igual número de pestes e de guerras. E contudo,
as pestes, assim como as guerras, encontram sempre as pessoas igualmente
desprevenidas” (A Peste, 1947).
Acontece que a falta de prevenção,
nem sempre é fruto do desconhecimento. Na maioria das vezes, ela se dá por
omissão, gratuita e voluntária, para não ter que enfrentar os desafios que
vislumbram no horizonte. Esse é, portanto, o ponto nevrálgico da reflexão!
Afinal, “Não é sinal de saúde
estar bem adaptado a uma sociedade doente” (Jiddu Krishnamurti).
Especialmente, quando “[...] A doença não é apenas o homem inteiro, mas
também a sua alma. Um espírito doente cria um corpo doente, ou um corpo doente
cria uma alma doente. Não só a carne e sua doença precisam ser tratadas, mas
também a mente” (Taylor Caldwell 3).
1 https://www.metropoles.com/sao-paulo/universidade-expulsa-7o-aluno-por-punhetaco-em-jogo-feminino-em-sp
2 https://emprosaeverso-alr.blogspot.com/2023/02/nao-nao-e-so-falta-de-empatia.html
https://alrocha-antenacultural.blogspot.com/2023/02/nao-nao-e-so-falta-de-empatia.html
3 Médico de
Homens e de Almas, 1958.