quarta-feira, 20 de setembro de 2023

Uma responsabilidade a se compartilhar...


Uma responsabilidade a se compartilhar...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Lamento, mas o recente caso dos estudantes de Medicina expulsos de uma universidade paulista 1, por conta de atos constrangedores e criminosos, não diz respeito somente a eles. O que foi escancarado pelos veículos de comunicação e de informação diz respeito à flagrante deterioração da civilidade brasileira, que se permitiu fazer vista grossa para as deformidades éticas e morais apresentadas por certos indivíduos; sobretudo, aqueles oriundos das classes mais abastadas.

Não, não se pode negar que o peso histórico do “vale quanto pesa” reina tranquilo, em pleno século XXI, no Brasil.  Infelizmente, a herança maldita imposta pelo poder capital, ou material, é parte da jornada do ser humano sobre a Terra, no sentido de estabelecer a importância de uns em detrimento de outros; bem como, enviesando a justiça de modo ultrajante e a constituir todas as mazelas da desigualdade.

É a partir dessa lógica abjeta que a humanidade convive, muitas vezes, sem dar a devida atenção, com as mais terríveis violências sociais, seja no campo objetivo ou subjetivo. Racismo, Misoginia, Xenofobia, Aporofobia, Etarismo, Homo e transfobia, Intolerância Religiosa, fazem parte de uma paleta de ideias e comportamentos balizadas, principalmente, pelo poder aquisitivo de determinados estratos sociais.

O que uma imensa maioria não percebe é que isso significa destituir o indivíduo da sua potencialidade cognitiva para outorgá-la ao dinheiro ou quaisquer outras riquezas materiais. De modo que se passa a pensar, a agir, a decidir, a conviver, segundo as cifras as quais se dispõe. Nada mais nada menos, do que uma estratificação social estritamente materialista e plenamente desumanizada.

E por quê ninguém fala, discute, problematiza, essa questão? Porque a relação do ser humano com a riqueza é histórica e, nesse sentido, já criou raízes no inconsciente coletivo. Ora, o espaço de vez e voz na sociedade foi apropriado por quem detém o capital.

Portanto, as crenças, os valores, as leis, os costumes, acabam sendo estabelecidos e manipulados por esses indivíduos. Haja vista como as tentativas de estabelecer o contraditório, de ampliar as fronteiras da reflexão e da discursividade, são furiosamente rechaçadas por determinados segmentos.

Aliás, é curioso como esses acontecimentos escandalosos acabam trazendo um viés muito oportuno, no sentido de descortinar as verdades e expor as hipocrisias ao mundo real. Pois é, do silêncio fez-se o espanto! O passaporte da liberdade incondicional, oferecido pelo dinheiro, deixou o conservadorismo e os bons modos nus, literalmente.

Mas, façamos justiça de que eles não ficaram despidos sozinhos. Por mais indigesta que seja a situação, todos fomos obrigados a enxergar como a sociedade e as instituições têm falhado na formação dos futuros profissionais brasileiros.

Não só as universidades; mas, desde cedo, no âmbito educacional. Quando muitos consideram engraçada a velha máxima do “papai pagou, passou”, as consequências, agora, repercutem amargas e fazem todo sentido.

Elas arrastaram para a desonra, o descrédito, o demérito, os autores da infâmia; mas, também, suas famílias, seus professores, o sistema de ensino, as instituições educacionais, e todos aqueles que assistiram silenciosos e omissos ao curso desse processo deplorável.

O problema é que essa omissão, essa negligência, esse descaso, em algum momento vai bater à porta da própria sociedade. Sim, pela inadvertência social permite-se entregar a indivíduos, como esses jovens, um diploma de curso superior, conferindo-lhes o direito de merecer a confiança e a credibilidade no seu exercício profissional.

Ora, e o que é a formação profissional senão a etapa que antecede ao serviço à sociedade! Portanto, o indivíduo não pode estar despido da sua ética e da sua moral para oferecer os seus conhecimentos, as suas práticas, o seu trabalho.  Ou pode?

Apesar de toda a aura histórica que envolve a Medicina, o seu manto de glamour e reverência social, nada disso é suficiente para blindar possíveis críticas e questionamentos. Em algum momento a fragilidade, exposta pela vaidade e pela arrogância de certos profissionais, aponta para a ausência de uma verdadeira competência e habilidade, que não foram devidamente construídas.

Há sim, uma visível crise envolvendo a formação médica no Brasil; mas, que não se resume em si mesma 2. Os recentes acontecimentos não deixam dúvidas de que certas crenças, valores, princípios e convicções, de natureza totalmente materialista, têm amparado e difundido ideologias supremacistas entre futuros e já estabelecidos profissionais da área.

O momento, então, pede uma profunda reflexão não silenciosa. Um mergulho coletivo que esmiuce às origens, não apenas profissionais, mas civilizatórias. É fundamental traçar uma linha do tempo e descobrir onde tamanha degeneração humana se iniciou, para que seja possível buscar soluções a respeito.

Segundo escreveu Albert Camus, “Os flagelos, na verdade, são uma coisa comum, mas é difícil acreditar neles quando se abatem sobre nós. Houve no mundo igual número de pestes e de guerras. E contudo, as pestes, assim como as guerras, encontram sempre as pessoas igualmente desprevenidas” (A Peste, 1947).

Acontece que a falta de prevenção, nem sempre é fruto do desconhecimento. Na maioria das vezes, ela se dá por omissão, gratuita e voluntária, para não ter que enfrentar os desafios que vislumbram no horizonte. Esse é, portanto, o ponto nevrálgico da reflexão!

Afinal, “Não é sinal de saúde estar bem adaptado a uma sociedade doente” (Jiddu Krishnamurti). Especialmente, quando “[...] A doença não é apenas o homem inteiro, mas também a sua alma. Um espírito doente cria um corpo doente, ou um corpo doente cria uma alma doente. Não só a carne e sua doença precisam ser tratadas, mas também a mente” (Taylor Caldwell 3).