quinta-feira, 30 de março de 2023

Enquanto o mundo derrete...


Enquanto o mundo derrete...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Será que o mundo pode mesmo flertar com a ideia de uma nova Guerra Fria? Divergindo da música, “não somos os mesmos” 1! Ainda que paire no ar um certo saudosismo blasé, não se pode negar que o planeta, as conjunturas socioeconômicas, os valores, as crenças, as convicções e os comportamentos contemporâneos são, por si só, o contraponto necessário para desconstruir qualquer ideia de jerico em relação ao recorte temporal estabelecido entre 1947 e 1991.

Mas, particularmente, penso que tantas diferenças se aprofundam ainda mais, quando paramos para refletir sobre o recente assombro pandêmico que se abateu pelo mundo, e tirou de esquadro a velha ideia da existência de uma zona de conforto. De 1947 para cá, muita água rolou por debaixo da ponte do mundo contemporâneo e certas discussões que podiam aguardar por uma decisão no prazo de décadas, agora, batem à porta raivosamente esperando por uma solução. Um doce para quem pensou nas mudanças extremas do clima!

Então, quando vejo analistas debatendo nos espaços dos veículos de comunicação e de informação a respeito dessa hipótese, fico pensando se nenhum deles se deu conta de que por baixo dessa espuma de rusgas diplomáticas está um mundo à beira do caos, que chega à revelia dos humores governamentais. Pois é, o cenário das prioridades, urgências e emergências extrapola os limites da beligerância geopolítica, ou da polarização entre democratas e autocratas. Basta um piscar de olhos para que seja necessário voltá-los para assuntos realmente relevantes para a sobrevivência humana na Terra.

Enquanto a governabilidade global se equilibra protegendo seus imensos telhados de vidro, registros bem detalhados de tudo aquilo que fizeram nos seus verões passados, 8 bilhões de seres humanos nem imaginam, por exemplo, “porque o vírus H5N1 preocupa cientistas e pode causar próxima pandemia” 2, ou “131 milhões de pessoas na América Latina e no Caribe não têm acesso a uma dieta saudável” 3, ou o desemprego global atingirá 208 milhões de pessoas em 2023 4, ou “Brasil é o 4º país do mundo em assassinatos de defensores dos direitos humanos e do meio ambiente” 5, ...

Simplesmente, porque as questões que realmente afetam e atravessam o cotidiano populacional, perdem espaço nas frentes de comunicação e informação para publicizar e reafirmar notícias que apontam exatamente para a desimportância que a sobrevivência de milhões de seres humanos tem para seus governantes. É quase um culto egóico do narcisismo das grandes lideranças globais em detrimento das demandas, dos anseios, das expectativas de uma gigantesca população. O que acaba se tornando uma densa nuvem de fumaça a colaborar com a inação e a negligência em torno daquilo que realmente importa no e para o mundo.

E quanto mais visibilidade é dada pelos veículos de comunicação e de informação para essa ínfima minoria, mais ela utiliza de retóricas frágeis, embora variadas, para entreter as mídias. São ameaças veladas (ou não). São Fake News para elevar as tensões.  São encontros bilaterais de ocasião. São exercícios militares fora de hora. Enfim... Enquanto, o planeta prende a respiração a cada sobressalto, como quem assiste ao salto mortal do trapezista no circo.

Portanto, por mais que digam e falem, na busca de resgatar uma guerra fria que há muito já esfriou, a verdade é que temos nos tornado plateia que bate palmas para maluco dançar. Deixando de cobrar, a quem de direito, questões importantes como a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça enquanto valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos que, pelo menos em tese, está fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional 6. Pois são elas que representam o tênue limiar entre a vida e a morte que pulsa dentro de cada um de nós.

quarta-feira, 29 de março de 2023

A Criação e a Criatura


A Criação e a Criatura

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Foi com certo alívio que li a matéria “Inteligência artificial: Elon Musk, Harari e mais mil especialistas pedem suspensão de pesquisas” 1. Pois, esse foi um claro sinal de que nem tudo está perdido, nesse mundo, e que a humanidade ainda dispõe de alguma lucidez e bom senso. Afinal, a questão ética é intrínseca a dinâmica social em todos os tempos da história.

Se por um lado existe toda uma engenhosidade cognitiva e intelectual, a qual foram dotados os seres humanos, por outro é fundamental encontrar limites que contenham eventuais arroubos de inconsequência e vaidade, os quais comumente afetam a seara científica. Aliás, a própria Revolução Industrial, na segunda metade do século XVIII, reverbera as suas imprevidências e imprudências em pleno século XXI, tendo em vista a quantidade de situações que ultrapassaram os limites da ética, sem que houvesse quaisquer atitudes a respeito.

Algo que alimentou tantas discussões importantes que, de algum modo, acabaram influenciando, ainda que indiretamente, a literatura. Uma das mais importantes obras nesse contexto foi Frankenstein: ou o Moderno Prometeu, de Mary Shelley, que através de uma genialidade literária conseguiu absorver as tensões sociais da época e traduzi-las com tamanha excelência, que antecipou aquilo que se tornariam os conceitos de Bioética e Biopoder, por exemplo 2.

Não é à toa, que por várias vezes, na minha construção textual, eu não pude deixar de trazer ao leitor uma citação que parece ser a síntese dessa reflexão atualíssima, ou seja, “Mente calma, a salvo de paixões perturbadoras, é a condição do ser humano em seu estado normal. Não pode a busca do saber ser levada à conta de exceção a essa regra. Se o estudo, por qualquer forma, tende a debilitar nossas afeições, nosso gosto pelos prazeres simples, trata-se então de uma atividade ilícita, que não se ajusta ao espírito humano. Se essa norma fosse sempre observada, se todo homem estabelecesse um limite entre seus misteres e sua vida afetiva, a Grécia não teria sido escravizada, César teria poupado sua pátria, a América teria sido colonizada sem maiores conflitos, e os impérios dos astecas e dos incas não teriam sido aniquilados” (MARY SHELLEY, 1817).

Quem diria, o conhecimento entorpece! Para muito ele se torna sim, uma droga poderosíssima e de efeito devastador, porque subtrai a sensatez, o discernimento, o controle e os limites éticos e morais. Sobretudo, quando ele arrasta na sua esteira uma gama gigantesca de poder social e capital, como é o caso da Inteligência Artificial, o mais novo xodó das Tecnologias da Informação e da Comunicação (TICs). Um conhecimento que atravessa sem pedir licença os caminhos humanos, colocando sumariamente milhões de vidas no ranking da desimportância e da inutilidade.

Pois é, se uma Bioética surgiu lá na década de 70 para construir um conjunto de regras e preceitos de ordem valorativa e moral em torno das diferentes formas de vida, agora é chegada a vez de se pensar, séria e profundamente, sobre uma Tecnoética. A dinâmica social restrita só ao conhecimento pelo conhecimento não basta! É preciso algo que norteie as discussões a respeito da sobrevivência e da existência humana, sob os mais diferentes aspectos e conteúdos, em um mundo altamente tecnologizado.

Queiram ou não admitir, a humanidade está repetindo um padrão. Depois de séculos e séculos de descaso e negligência com inúmeras mazelas sociais, ela passou a fazer o mesmo em relação as tecnologias. A tal ponto que, diante desse cenário high tech, o conhecimento tecnocientífico produzido nos últimos anos tende a transformar a realidade contemporânea em um caos sem precedentes. Sim, porque não há nas mãos de ninguém nenhum plano A, B ou C para resolver os desafios impostos. Talvez, por essa razão é que Stephen Hawking tenha manifestado, ainda em 2014, “Acredito que o desenvolvimento pleno da inteligência artificial poderia significar o fim da raça humana” (entrevista à BBC).

De repente, estamos à beira de provar da mesma percepção presente em Frankenstein: ou o Moderno Prometeu, ou seja, “[...]o gosto amargo da decepção. Sonhos que me haviam embalado por tanto tempo eram, repentinamente, transformados numa realidade infernal” (MARY SHELLEY, 1817). Diante da recente carta aberta assinada por renomadas figuras do espectro das TICs e detentoras de fortunas bilionárias emergidas desse campo do conhecimento, só posso crer que a situação deve ser ainda mais aterrorizante e complexa do que sonha nossa vã filosofia.

Porque, considerando outros cenários apocalípticos globais, como o caso das mudanças extremas do clima, por exemplo, em que a mobilização em torno de soluções enfrenta resistências mil, é mesmo de se espantar que nesse caso as atitudes tenham ocorrido rapidamente, no sentido de desromantizar o contexto das inovações tecnológicas. Cá estamos, então, de volta ao eterno dilema entre a Criação e a Criatura. Só o tempo dirá quem vai sobreviver!

Linhas, entrelinhas e o porquê


Linhas, entrelinhas e o porquê

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Talvez, agora, fique claro que a tensão promovida pelas mídias sociais não se resume ao espectro político-partidário. Não, ela vai muito além. Ela rompe as bolhas de isolamento individualista para nutrir-se da força e da combatividade coletiva, dentro dos mais diferentes campos sociais. Daí a necessidade de não ser negligente, de não menosprezar o papel dos instrumentos tecnológicos contemporâneos. Afinal, segundo Jean Paul-Sartre, “Não somos aquilo que fizeram de nós, mas o que fazemos com o que fizeram de nós”.

As Tecnologias da Informação e da Comunicação (TICs) trouxeram repentinamente tantas possibilidades de legitimação discursiva e comportamental, que não houve tempo suficiente para que a humanidade se preparasse para os desdobramentos e consequências desse processo. De certo modo, fomos pegos de calças curtas em pleno olho do furacão.

Sim, porque não há mais constrangimento, pudor, desconfiança, diante do nível de exposição, inclusive, ideológica, pelos frequentadores das mídias sociais. O próprio limite que separava a web da deep web se esgarçou, e aquilo que se pretende manifestar de bom ou de ruim aparece em qualquer lugar, a qualquer hora, por qualquer um. Como se essas pessoas tivessem encontrado nesses espaços um verdadeiro oásis de acolhimento, de pertencimento, de segurança, para se revelarem por inteiro.

Veja, a que ponto a humanidade chegou, por exemplo, em termos de violência. As velhas arenas romanas estão, agora, disponíveis em cada tela, na medida em que coletivos sociais acompanham, em tempo real, as ações de bárbaros sanguinários dispostos a se exibir. O que não se restringe, necessariamente, ao contexto prático da fúria; mas, também, da arquitetura subjetiva do pensamento tóxico, odioso, brutal, que precisa se disseminar para retroalimentar os humores contemporâneos, segundo as crenças, os valores e as convicções de uns e outros, por aí.

Por isso, enquanto não se admitir, de uma vez por todas, que o mundo mudou, que o ser humano está sob o comando de uma nova ordem sociocultural, será inútil se valer das velhas práxis para solucionar os novos desafios e mazelas. Como bem definiu o sociólogo Zygmunt Bauman, a raça humana está diante da modernidade líquida, onde a presença de sinais confusos, a velocidade de transformação e a imprevisibilidade proporcionam ao individualismo, a fluidez e a efemeridade das relações.

Nesse sentido, o papel da comunidade é um disfarce para a almejada identidade, ou seja, esta se torna um bem de consumo que apesar de procurado não será encontrado, será testado e nunca será definitivo. Isso significa que apesar da crença do pertencimento a uma comunidade, enquanto ideia de um grupo que representa certa identidade, os indivíduos não percebem que isso representa uma perda da possibilidade de escolha, na verdade, isso é apenas uma ilusão.

Ora, o que é uma escolha senão uma busca pela segurança num mundo de incertezas? Acontece que o Estado atual foi perdendo gradualmente a sua característica frente à máquina de modernização da globalização que retirou os privilégios do espaço e os deslocou para a velocidade, ou seja, a guerra entre realidade e tecnologia.

Portanto, ele deixou de ser aquele que dita às regras e passou a mendigar as benesses do capital em seus territórios. Isso estabelece uma ordem de nação por uma ordem supranacional, que leva à perda do monopólio da violência pelo Estado e sua distribuição às comunidades. Aliás, isso me faz recordar as palavras de José Saramago, quando disse “Não são os políticos os que governam o mundo. Os lugares de poder, além de serem supranacionais, multinacionais, são invisíveis” (Jornal Expresso, 1993).

Em linhas gerais, esse movimento foi descrito por Bauman como “comunidades explosivas”, ou seja, aquelas que precisam de violência para nascer e para continuar vivendo; a fim de fazer de cada membro da comunidade um cúmplice do que, em caso de derrota, seria certamente declarado crime contra a humanidade e, portanto, objeto de punição. A grande questão é que essas comunidades não exigem mais o território, podem se mover e atingir públicos diferentes em locais diferentes. De certa forma, elas contêm a solidão dos indivíduos participantes por alguns momentos, já que funcionam mais como evento do que como rotina. Bauman, inclusive, as denominou como “cloakroom communities”.

Na realidade recente brasileira isso se tornou bastante visível, a partir da apropriação de cores e símbolos nacionais, por membros e simpatizantes da direita nacional. Nesse cenário, a “cloakroom community” se apresentou, então, pela expressão de que a população “se veste para a ocasião, obedecendo a um código distinto do que seguem diariamente” (BAUMAN, 2001, p.228). Assim, “Alegria e tristeza, risos e silêncios, ondas de aplauso, gritos de aprovação e exclamações de surpresa são sincronizados – como se cuidadosamente planejados e dirigidos” (BAUMAN, 2001, p.228) 1.

Como dizia uma canção dos anos 80, “[...] Quem quer manter à ordem? / Quem quer criar desordem? [...]” 2. Dissecando camada por camada desse fenômeno fica, então, perceptível a clara intenção de impedir o ressurgimento de comunidades duradouras, fundamentas por crenças, valores e princípios altruístas, empáticos, fraternos, capazes verdadeiramente de fomentar o equilíbrio, a ordem e a paz social. O que se espera com essa nova ordem sociocultural é que ela consiga o máximo êxito em espalhar e desmembrar os interesses de seus membros, ou seja, minar uma formação fixa. Traduzindo em miúdos, as “cloakroom communities” são parte da desordem social, não uma forma de resolvê-la. 



1 BAUMAN, Z. Modernidade Líquida. Tradução de Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. (Título original “Liquid modernity”).

2 Desordem (Charles Gavin / Sérgio Britto / Marcelo Fromer) – 1987 - https://www.letras.mus.br/titas/48964/ 

terça-feira, 28 de março de 2023

Ser para aprender ou aprender para ser?


Ser para aprender ou aprender para ser?

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Ainda sob a reverberação do recente episódio de violência escolar, em São Paulo 1, nada mais oportuno do que olhar para a Educação brasileira dentro de novas perspectivas. Sim, porque ao contrário do que uma imensa maioria entende como desafios educacionais no país, há diversos vieses do assunto que passam à margem da percepção popular, na maioria do tempo.   

Assim, o primeiro ponto nevrálgico que esbarra a questão é o fato de uma recorrente dissociação do protagonismo humano. Fala-se muito da insuficiência e ineficiência curricular. Da precariedade das infraestruturas que abrigam escolas e instituições de ensino. Da baixa remuneração e valorização dos profissionais da área. Da ausência quantitativa e qualitativa da merenda. ... Mas, e o ser humano nessa história toda?

Bastaria uma passada de olhos pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação nacional (LDBEN) 2, de  1996, para desconstruir tal engano. Segundo manifesta o art. 1º da mesma, “A educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais”. Portanto, sem gente, de carne e osso, não existe educação!

E na medida em que a sociedade e o poder público desconsideram a diversidade e a pluralidade humana e as condições de existência no país, se deixa de enfrentar o desafio de uma Educação historicamente atravessada por todo tipo de desigualdade. O que tem levado milhares de escolas e instituições de ensino não só a refirmar esse abismo cruel; mas, também, reproduzir os padrões das mazelas que estão além de seus muros.

Por isso, chega a ser curioso o fato de que a Educação brasileira se preocupe tanto em perseguir a tecnologização no campo do ensino-aprendizagem, já presente nos países com Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) elevado, embora saiba, muito bem, que não conseguiu superar ainda questões fundamentais do seu processo constitutivo.

Lamento, mas o fato de a LDBEN ter sido atualizada, pela lei n. º 14533, de 11 de janeiro de 2023, para trazer ao ensino regular o ensino de habilidades tecnológicas para formar os nativos digitais, isso não representa em si um passo adiante, quando desconhecemos a realidade dos alunos e profissionais da Educação.

A efervescência contemporânea produzida por avalanches de novidades que mascaram, na maioria das vezes e do tempo, a brutalidade do cotidiano, na sua face mais desfavorecida e abandonada, deveria ser o cerne da discussão educacional. Justamente por termos coletivos humanos cada vez mais impactados e afetados por uma insalubridade mental, a qual se dispersa subliminarmente pelos espaços reais e virtuais, é que se torna imprescindível transformar a Educação do século XXI. Trata-se de formalizar uma estrutura sustentada pela multidisciplinaridade profissional, ou seja, capaz de trazer coletivamente os seus esforços para o alcance de um êxito comum.

A ideia de encaminhar para uma orientação psicossocial fora da escola, por exemplo, já provou que não funciona. Seja pela dificuldade de agendamento. Seja pelo desconhecimento do profissional quanto ao cenário cotidiano real da instituição. Seja pela impossibilidade da participação familiar no processo. Seja pelo custo, quando não há serviço disponível na rede pública. ...  E somente com os quadros atuais de servidores – professores, diretores, merendeiras, pessoal de serviços gerais – a dinâmica da Educação brasileira não flui mais, dentro da realidade de novos parâmetros e perfis contemporâneos, em razão de desafiadoras demandas que se impuseram na sociedade.

Os muros da escola não são uma fronteira, uma linha divisória, e nem tampouco, protegem contra as contínuas provocações do mundo; sobretudo, as violências. Se as autoridades querem de fato superar a repetência, a evasão escolar, a indisciplina, a agressividade, o desinteresse, ... terão que começar a constituir equipes de psicólogos, assistentes sociais e terapeutas ocupacionais, com formação psicopedagógica, para atuarem diretamente dentro dos espaços educacionais. Sim, acompanhando o dia a dia daquela realidade, a fim de conhecerem, em profundidade, os pontos críticos que precisam de mais ou menos atenção. Eles (as) têm que ser parte integrante e integrada do sistema de ensino do século XXI.

Afinal de contas, um indivíduo só é capaz de aprender e de ensinar quando está na plenitude do seu equilíbrio e bem-estar interior. A Educação é atravessada sim, pela saúde mental. Já passou da hora de entender que “Saúde é o estado de completo bem-estar físico, mental e social e não somente a ausência de doença” (Organização Mundial de Saúde – OMS). Segundo o médico e professor brasileiro, Jayme Landmann, “O Estado preocupa-se com a saúde do indivíduo em função de sua utilização como instrumento de trabalho e não em função de suas esperanças, de seus anseios, de seus temores ou de seus sofrimentos”; mas, acaba levando essa concepção deturpada para todas as demais áreas fundamentais da vida, incluindo a Educação.  

A sociedade brasileira está condicionada a pensar um modelo de Educação que ensina, o que uns e outros consideram relevante, que mede o aprendizado estritamente pelo padrão de notas estabelecido, e especialmente, que promove uma atmosfera de concorrência e competitividade entre os alunos, desde as mais tenras idades. Por isso, ela não consegue ver e perceber a urgente necessidade de uma equipe multidisciplinar, para acompanhar as demandas evolutivas da conjuntura atual. E na medida em que ela refuta enxergar os fatos que estão bem diante do seu nariz, ela se expõe aos riscos e ameaças que representam os desdobramentos da sua inação voluntariamente negligente.

Quando se estabelece, portanto, uma práxis afirmadora de que “É por isso que se mandam as crianças à escola: não tanto para que aprendam alguma coisa, mas para que se habituem a estar calmas e sentadas e a cumprir escrupulosamente o que se lhes ordena, de modo que depois não pensem mesmo que têm de pôr em prática as suas ideias” (Immanuel Kant), se descobre o ponto exato onde a Educação se perdeu na contemporaneidade.

Ora, em um tempo no qual tudo é efêmero, fugaz, intenso, tanto da perspectiva positiva quanto negativa, é fundamental um espaço de ensinar e de aprender que acolha a inquietação humana, sob suas mais diferentes formas e conteúdos, não um ambiente que a faça sentir aprisionada, oprimida, contida.

Afinal, como diria Rubem Alves, “Para isso existem as escolas: não para ensinar as respostas, mas para ensinar as perguntas. As respostas nos permitem andar sobre a terra firme. Mas somente as perguntas nos permitem entrar pelo mar desconhecido”. Por isso, “Os educadores, antes de serem especialistas em ferramentas do saber, deveriam ser especialistas em amor: intérpretes de sonhos” 3. O que não significa que isso vale somente para os professores, dentro de uma sala de aula. Vale para mim, para você, para todos os que estiverem imersos na realidade dos espaços de Educação no país.

segunda-feira, 27 de março de 2023

Quando a liberdade dói..


Quando a liberdade dói...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Não, não foi só mais um episódio de violência em ambiente escolar 1, no Brasil. Como não é nos EUA 2 ou em qualquer outro lugar. Como não é uma questão de acesso ou não à arma de fogo/arma branca. O que se tem bem diante dos olhos ultrapassa a linha do visível materializado pela violência, para mergulhar nas profundezas de uma discussão difícil e indigesta, em uma sociedade que nutre um encantamento desmedido pelas Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs).

Enquanto o país se digladia discursivamente sobre uma legislação mais incisiva a respeito das Fake News, a alienação promovida e disseminada pelos instrumentos criados pelas TICs confunde a consciência coletiva quanto ao fato de que vigora, através do Código Penal brasileiro (Decreto-Lei n.º 2848, de 7 de dezembro de 1940) 3, a punição quanto à incitação ao crime (art. 286) 4 e à apologia de crime ou criminoso (art. 287) 5.

Portanto, o país já dispõe no seu arcabouço jurídico de instrumentos importantes para atuar sobre esse fenômeno contemporâneo tão socialmente destrutivo.  De modo que a fragilização percebida advém maciçamente do desconhecimento e da baixa fiscalização dos conteúdos, pelas autoridades competentes, ou seja, tudo aquilo que transita freneticamente pelos espaços da web e da deep web acaba passando despercebido, voluntária ou involuntariamente, por quem deveria estar atento.

Considerando que o público alvo das TICs, no que diz respeito à produção, à disseminação e ao consumo dos conteúdos e produtos oriundos delas, é justamente a geração Z, aquela que por definição sociológica contempla pessoas nascidas entre 1995 e 2010, e a posterior a ela, ainda sem denominação específica, é de extrema importância conhecer a tecitura dialógica e ideológica que forma a construção identitária e de valores, crenças e convicções desses indivíduos.

Afinal, são milhares de seres humanos que orbitam contemporaneamente o mundo virtual e não o contrário. Enquanto a sociedade se preocupa com inúmeras drogas ilícitas e lícitas no curso da dinâmica cotidiana, sob diferentes frentes de problematização, não se observa quaisquer sinais de discussão ou reflexão sobre o efeito deletério da alienação tecnológica no campo da saúde mental, no mundo contemporâneo.

Não se trata só da quantidade de horas à frente das telas; mas, da qualidade do que é oferecido por elas. Portanto, chega de romantizar a tecnologia! Infelizmente, ela se tornou sim, um catalisador potente para a exacerbação das mais diferentes expressões da violência humana. Uma verdadeira arena de duelos extremos, em que não escapam, até mesmo, renomados veículos de comunicação e informação, quando se colocam à disposição de fomentar essas violências, ainda que de maneira sutil e quase velada.

A formação de grupos em redes sociais é uma das manifestações mais claras desse efeito manada imposto pelas ideologias alienantes. Basta que alguém exerça o papel de multiplicador de uma ideia, para que esta seja acolhida e propagada sem contestação em face do próprio ajustamento ideológico preexistente, que deu origem aquele grupo.  O que o efeito manada propõe é a legitimação de uma verdade a partir do silenciamento crítico. Não há discordância. Não há contestação.  

Então, quando um (a) aluno (a) invade uma instituição de ensino, por exemplo, e atenta contra à vida de colegas, professores e funcionários, por mais pretextos plausíveis sejam por ele (a) apresentados, isso é só espuma. O que leva alguém a uma violência nesse nível é algum indício de legitimação social, que geralmente provém do universo virtual, com seus grupos, suas redes de bate-papo. É nesse espaço que o (a) autor (a), através de intensa interação, delineia o passo a passo para transformar uma intenção em ação.  No fundo, é como se o lobo solitário precisasse da aprovação e do suporte da alcateia para se mostrar capaz de fazer.

Em alguns casos, esses comportamentos são utilizados como uma senha de ingresso para pertencer àquele núcleo social. Um tipo de batismo criminoso, para demonstrar a extensão de até onde se pode chegar para ser considerado apto a estar naquele contexto social. O que prova a importância de se conhecer mais profundamente essa complexa teia tecnológica, em termos do que é produzido no seu universo dialógico.

Não é de hoje que a história da humanidade é repleta de registros a respeito da influência da comunicação tendenciosamente desvirtuada de valores éticos e morais; mas, a realidade contemporânea é muito mais avassaladora porque não precisa de espaços concretos, apenas o tempo infinito. Isso sem contar o fato de que dispensa muitas vezes de recursos humanos para efetuar suas ações pela tecnologia em si.

Segundo Yuval Noah Harari, “Quando derrubamos os muros da nossa prisão e corremos para a liberdade, estamos na verdade correndo para o pátio de uma prisão maior”. O mundo contemporâneo mercantiliza, a todo instante, a ideia de que somos livres para decidir, para escolher, para fazer e acontecer. Em tese, porque na prática viver implica em limites; portanto, livres só até a página dois, ok?

No entanto, o mundo virtual ainda permanece um espaço social que permite essa crença de liberdade infinita, porque seus limites parecem sim, demasiadamente flexíveis e mutantes. O que nos leva a esquecer de que “Segurança sem liberdade é escravidão e liberdade sem segurança é um completo caos, incapacidade de fazer nada, planejar nada, nem mesmo sonhar com isso. Então você precisa dos dois” (Zygmunt Bauman).

Daí a necessidade urgente de se conhecer em profundidade o que circula nos ambientes tecnológicos contemporâneos. Só assim, é que se pode traçar estratégias eficazes e contundentes no campo da segurança virtual, da educação cidadã e da saúde, especialmente, a saúde mental. Sem ir ao cerne do problema, que é o cenário tecnológico, as autoridades não resolverão nada. Afinal, o problema não é só a arma na mão do indivíduo; mas, também, esse tipo de arma subjetiva e imaterial que vem deflagrando a violência no consciente e inconsciente social sob o pretexto da liberdade.   



4 Art. 286 – Incitar, publicamente, a prática de crime: Pena – detenção, de três a seis meses, ou multa.

Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem incita, publicamente, animosidade entre as Forças Armadas, ou delas contra os poderes constitucionais, as instituições civis ou a sociedade.

5 Art. 287 – Fazer, publicamente, apologia de fato criminoso ou de autor de crime: Pena – detenção, de três a seis meses, ou multa. 

domingo, 26 de março de 2023

Ciclos


Ciclos

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Quem disse que a efemeridade contemporânea é assunto pacificado, hein? Por trás da história de se dar bem com o frenético movimento da vida, com todas as suas idas e vindas, há sim, uma imensa dificuldade de digerir o fim dos ciclos. Nada que tenha a ver necessariamente com a marcação do tempo; mas, com a impossibilidade de o ser humano ter domínio sobre escolhas e decisões alheias. Afinal, cada um sabe de si e Deus sabe de todos!

De repente, é como se sentíssemos que alguém arbitrou sobre nossas vidas sem pedir licença, considerando que aquele dado contexto, ou fato, já fazia parte da nossa própria história, há tempos. Mais uma vez, olhando só para o próprio umbigo do nosso individualismo crônico, esquecemos de respeitar as perspectivas, as expectativas, as demandas do outro, por conta de um pseudodesrespeito que pulsa em nós, sem muito sentido de ser. Ora, nem todo fim de ciclo precisa ou depende da nossa anuência. O mundo não gira na nossa órbita!  

Mas, talvez, o que explique parte dessa frustração indignada esteja mesmo no fato de não podermos sorver até a última gota daquilo que nos é tão caro, tão especial. Guardar na mente, na alma, no corpo, os derradeiros impulsos de alegria, de bem-estar, de contentamento, de euforia, ainda que entre sorrisos e lágrimas que não se pode controlar. Todo aquele conjunto de emoções e de sentimentos que só o mais profundo espaço do inconsciente é capaz de manter intacto pelas dimensões da eternidade.

Desse modo, um fim de ciclo sem a possibilidade da nossa participação não deixa de ser um tipo de luto que não se vivencia por completo. A certeza de que não haverá outra vez é sim, dolorida. Acontece que as conjunturas do cotidiano, sob diferentes circunstâncias, nem sempre nos possibilitam as despedidas. São os compromissos inegociáveis. São as distâncias que a geografia impõe. São os imprevistos de última hora. É a grana curta para satisfazer os desejos e vontades. É a hesitação que bate sem pedir licença. Enfim...

Por sorte, a própria contemporaneidade nos valeu a solução. Para certos ciclos que se encerram podemos contar com as Tecnologias da Informação e da Comunicação (TICs) para mitigar esse desalento. Podemos sim, nos tornar parte integrante e integrada desse final que acena no horizonte. Salve, salve, a internet e todas as suas plataformas digitais! Que por um breve instante nos permitem viajar pelo tempo e pelo espaço para estar onde queremos, experenciando de maneira muito especial um registro de nossa própria existência.

Notícia boa? Lamento; mas, só em parte. Porque nem todos os ciclos chegam pensados sob diferentes perspectivas, o que leva essa possibilidade a não figurar no rol das decisões de planejamento. Aí, voltamos à estaca zero! Ensimesmados na melancolia carente de um adeus efetivamente materializado, que não vai poder acontecer. Não se esqueça de que somos energia. Mesmo à distância, no mundo virtual e tecnológico, essa energia se propaga e estabelece seu intercâmbio natural. Pontos de luz que se retroalimentam pelos maiores e melhores sentimentos e emoções.

Por isso, em tempos nos quais se fala tanto sobre empatia, igualdade, fraternidade, respeito, comunhão, trazer para o encerramento de um ciclo o papel democrático e abrangente estabelecido por uma acessibilidade humana que rompe barreiras materiais e subjetivas importantes, seria fechar com verdadeira chave de ouro. Seria hastear a bandeira mais bonita da última lição, depois de tantas memoráveis. Sem se importar sobre quem, como, onde e quando. Todos juntos emanados pela mesma energia, mesma vibração, mesmo encantamento. E assim, em uníssono, dizer: “A vida me ensinou a dizer adeus às pessoas que amo, sem tirá-las do meu coração” (Charles Spencer Chaplin Jr.). 

sábado, 25 de março de 2023

Medido, pesado e julgado insuficiente???


Medido, pesado e julgado insuficiente???

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Quando você pensa que a contemporaneidade já chegou no seu limite de deselegâncias, de desrespeitos, de violências e de desumanidades, eis que você é surpreendido dentro das nuances mais corriqueiras do cotidiano.

Há tempos que venho trazendo reflexões a respeito da precarização do trabalho, seja em forma ou em conteúdo; mas, ainda não tinha abordado nuances mais sutis desse processo, como por exemplo, dispensas e demissões.

Daqui e dali se ouve histórias de pessoas, famosas e comuns, que já experimentaram o dissabor de se descobrirem preteridos no mercado de trabalho, por redes sociais ou mensagens de aplicativos ou e-mail.

A questão não é somente o modo em si da demissão, que nos leva a entender esse mecanismo frio, calculista e desumanizado de tratar as relações sociais de trabalho. Acontece que por trás desse modus operandi se estabelecem vazios dialógicos que jamais serão respondidos.

Na medida em que o ser humano é visto e entendido como objeto mercantilizado, por conta do seu conhecimento, habilidades, competências, talentos, o mundo contemporâneo o desconstruiu e destituiu da sua dignidade humana, o que implica necessariamente na perda do direito ao respeito, à deferência, à cortesia.  

De repente, o ser humano é só mais um na fila do pão! Suas crenças, valores, convicções, emoções e sentimentos, nada disso importa no mercado de trabalho. O curioso é que, independente das circunstâncias de contratação, faz parte da praxe trabalhista a escolha do candidato mediante a apresentação de um currículo, o qual representa o início do processo seletivo.

Entretanto, na hora de dar-lhe um feedback quanto à contratação ou demissão, as palavras do contratante desaparecem como em um passe de mágica. Sem saber o que dizer, ou como justificar uma escolha, acaba não sendo incomum se deparar com um discurso assim, “na etapa de atividade prática, as habilidades e competências requeridas pelo cargo não apresentaram total aderência às habilidades apresentadas pelo fulano de tal, neste momento”.

Tão vaga a tentativa de justificar ao candidato que ele foi preterido na seleção, não é mesmo? Mas o pior não é isso. O pior é que retira dele (a) a possibilidade de saber efetivamente em que pontos ele (a) ficou aquém das possibilidades e deveria melhorar para a participação em um outro momento, em uma outra seleção.

Acontece que nem tudo pode ser dito, no caso do trabalho, porque certas justificativas configuram elemento potencial de judicialização. Etarismo, racismo, misoginia, homo e transfobia, gordofobia, são só alguns dos inúmeros critérios de seleção trabalhista que recorrentemente aparecem no Brasil do século XXI; mas, desaparecem nas entrelinhas de estratégias de entrevista de recrutamento, as quais não costumam deixar rastros dessa materialidade ofensiva e criminosa. Como se tentassem deixar o dito pelo não dito.

Recentemente, o anúncio de uma vaga de emprego para uma feira agropecuária, no interior de SP, gerou polêmica e indignação ao estabelecer que os candidatos homens e mulheres tivessem perfil de academia, corpo malhado 1.  Ainda que a empresa contratante e os organizadores tenham manifestado repúdio a qualquer tipo de discriminação e conduta de seleção por tal critério, foram unânimes em dizer se tratar de uma exigência do cliente. Mas, pouco importa de quem foi a ideia abjeta, o que importa é que ela foi colocada em prática.

E ao cair como uma bomba, nos veículos de comunicação e informação, trouxe à luz de um viés pouco explorado, quando o assunto é a relação desemprego e falta de mão de obra qualificada. Será que as análises dos institutos de pesquisa especializados no assunto dão conta, realmente, de mergulhar nas entrelinhas dessa subjetividade indigesta, que tanto favorece a distorções repugnantes nas relações trabalhistas? Será que o Ministério do Trabalho e Previdência e a Justiça do Trabalho já se atentaram para essa realidade absurda no país?

Afinal, ao que tudo indica, esse movimento sutil e vergonhoso que acontece na esteira das discussões sobre precarização trabalhista, pode estar privando o ingresso formal de milhares de cidadãs e cidadãos altamente talentosos e qualificados, com vasta habilidade e competência nas suas áreas de atuação, em nome de critérios nada ortodoxos. Um país que fala de desenvolvimento e progresso não pode se dar ao luxo de tratar sua força de trabalho de maneira tão constrangedora e desumana.  

Desse modo, quando ouvir falar sobre precarização trabalhista preste atenção. Bem mais do que tratar da flexibilização das relações de trabalho para elevar a margem de lucro dos empregadores, ela começa a agir sorrateira e vergonhosamente na desqualificação dos pretensos candidatos.

A precarização do trabalho, portanto, criou uma ponte importante para a desumanização, a qual faz todos perderem dia a dia seus valores éticos e morais, a sua sensibilidade e a sua empatia, por conta de sua franca alienação nas estranhas cápsulas de individualismo contemporâneo.

quinta-feira, 23 de março de 2023

Quem se preocupa com o Brasil?


Quem se preocupa com o Brasil?

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Se alguém tinha dúvidas a respeito, os últimos quatro anos de governo sob a batuta da direita e seus matizes veio para esclarecer definitivamente o assunto. O Brasil do século XXI é tão controlado e manipulado pelas oligarquias aristocráticas, quanto no século XIX. A fúria com que avançam para não perderem suas regalias e privilégios é mesmo assustadora!

Mas, a reflexão não para por aí, no óbvio. Se o curso da história caminha dessa maneira, então, quem se preocupa com o Brasil? Sim, porque ensimesmados nos seus próprios interesses, sendo eles o topo da pirâmide social e detentores, desde sempre, dos poderes e dos controles, corre-se um risco imenso.

Essa é, portanto, a pergunta que não quer calar; sobretudo, depois que o “Comitê de Política Monetária decidiu nesta quarta-feira (22) manter a Selic em 13,75% ao ano” 1 e sinalizou que pode, inclusive, aumentá-la mais adiante. Afinal, de que adianta estranheza ou indignação no campo popular, se a grande massa da população nada pode fazer nesse sentido. Aliás, nem sequer grandes economistas e pesquisadores renomados da área.

Haja vista as considerações do norte-americano Joseph Stiglitz, vencedor do Prêmio Nobel de Economia, em 2001, que participou do seminário “Estratégias de Desenvolvimento Sustentável para o século XXI”, na sede do BNDES, no Rio de Janeiro, “o  Brasil vem sobrevivendo a uma ‘pena de morte’ ao se referir à alta taxa de juros no país, que classificou como ‘chocante’” 2.

Colocando as cartas na mesa, o que se tem bem diante dos olhos, então, não é uma mera divergência entre correntes de pensadores no assunto; mas, uma queda de braços ideologicamente política. O atual Presidente do Banco Central brasileiro figura como um legítimo representante dos interesses da oligarquia banqueira, cuja filosofia é simpatizante à direita e seus matizes mais ou menos radicais.

Tanto que não surpreende o fato de a escalada da taxa de juros no país ter se dado a partir de 2021, com seu ápice em 2022, em pleno ano eleitoral. Afinal, considerando que boa parte dessa oligarquia contribuiu para uma eventual reeleição do ex-governo, a ideia de criar uma tensão no mercado é algo bastante factível.

Primeiro, porque caso houvesse um cenário desfavorável, isso estimularia um temor de piora entre os diversos segmentos econômicos no país, no caso de uma eventual mudança nos rumos da política econômica, em razão de um novo governo. Segundo, porque no caso de derrota do governo que estava vigente, sendo o Presidente do Banco Central brasileiro um simpatizante e aliado, além de munido de autonomia por força de lei, ele teria mecanismos em mãos para manter os interesses dessa oligarquia em detrimento do próprio país. De modo que estaria satisfazendo, também, aos interesses políticos da direita e seus matizes, no sentido de obstaculizar a governabilidade da chapa eleita.

Vejam, como tudo cai por terra no discurso do COPOM, quando se olha que mesmo com juros estratosféricos, com base no recorte temporal citado, o monstro da inflação não esmoreceu e nem sumiu. A desaceleração econômica continua arrastando suas correntes e o estímulo para o consumo é cada vez mais tímido, inclusive, pelo fato da redução da remuneração no país. Sim, nos últimos anos houve não só o desemprego clássico; mas, também, uma avalanche de precarização trabalhista que impactou a renda do trabalhador significativamente.

O que, em linhas gerais, lê-se que o plano traçado não funcionou. Ao manter resistentemente uma taxa de juros elevadíssima para conter uma inflação que permanece a desconsiderar por completo a estratégia, o cenário não sinaliza melhoras. Enquanto isso, o país não deslancha no seu realinhamento aos propósitos de desenvolvimento e progresso tão esperados e necessários.

De modo que a economia, no Brasil, nunca foi tão enviesada para atender aos interesses de uma ínfima minoria, como agora. Para essa classe de pessoas não importa o país. Seus bens e riquezas estão muito bem guardados em offshores (paraísos fiscais), longe daqui. Se não há desenvolvimento, se não há progresso, se não há consumo, se não há emprego, ... isso não retira o sono desses indivíduos, porque seus olhos e interesses estão focados na roda da fortuna e não, em que como ela é produzida.

Para eles, tanto fez como tanto faz, se o governo em curso se comprometeu com uma série de políticas públicas pautadas nos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) 3 da Organização das Nações Unidas (ONU), as quais o país é signatário. O que longe de quaisquer acasos ou coincidências, já é sabido que um “Estudo apresentado na Câmara dos Deputados indica retrocesso em mais da metade das metas” 4.

Ora, o que lhes causa calafrios, talvez, seja a instabilidade e o imponderável que pairam no cenário internacional, como a recente crise em bancos dos EUA e da Suíça, cuja a reverberação pode eventualmente repercutir sobre os seus próprios interesses. Portanto, seus olhos estão voltados para fora e não para dentro, como deveria ser. Razão pela qual, eles estão jogando pesado, tentando subjugar o governo aos seus humores e vontades. Na verdade, a queda de braços estabelecida, não diz respeito a esse ou aquele indivíduo; mas, qual ideologia político-partidária irá se sagrar vencedora.  

terça-feira, 21 de março de 2023

A felicidade do e no mundo


A felicidade do e no mundo

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Dizia Tom Jobim, “[...]É impossível ser feliz sozinho [...]” 1. Verdade. Por mais particular que seja a percepção da felicidade, não há como negar a influência coletiva nesse processo. O que explica porque a Organização das Nações Unidas (ONU), a partir de 2012, instituiu o dia 20 de março, como um marco de reflexão e consciência sobre a importância de um mundo sem tensões, sem conflitos, dentro de padrões de convivência e coexistência equilibrados. O que significa partir da análise crítica sobre todas as formas de desigualdade que atravessam o cotidiano dos seres humanos.

Pois é, a felicidade não diz respeito apenas a um largo sorriso no rosto e uma euforia positiva estampados ininterruptamente. Ela é, na verdade, uma questão de governo que perpassa pela educação e cultura, pela saúde, pelo trabalho, pelo lazer, pela segurança, pela previdência social, pela proteção materno-infantil, pela assistência aos desamparados. Em síntese, a felicidade é a tradução da dignidade humana, na medida em que ela só existe quando todas as necessidades vitais do indivíduo estão garantidas.

O que explica o porquê de no ”Ranking anual da ONU que define os países mais felizes do mundo – o Brasil desabar de 38º para 49º colocado” 2. Infelizmente, há uma visível subversão na lógica social. Seres humanos têm sido cada vez menos protagonistas, cada vez menos prioridade, no mundo. Ressalvadas exceções, é claro 3.  E para tornar acessível essa análise, são considerados alguns indicadores, dentre eles estão o PIB per capita, expectativa de vida saudável, apoio social, generosidade, liberdade e percepção de corrupção.

Uma aferição nada revolucionária, como muitos possam pensar. Apenas se decidiu apropriar da ideia colocada em prática no Butão, país localizado no Himalaia, desde a década de 70, quando ao invés de medir apenas a sua riqueza material por meio do PIB, ele decidiu estabelecer um novo indicador, ou seja, a Felicidade Interna Bruta (FIB) de seus cidadãos.

De modo que, enquanto o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), por exemplo, avalia o bem-estar da população de um país sob a perspectiva da renda, da escolarização e da expectativa de vida, o FIB auxilia na avaliação do grau de desenvolvimento, ou seja, o bem-estar psicológico, a saúde, o uso do tempo, a vitalidade comunitária, a educação, a cultura, o Meio Ambiente, a governança e o padrão de vida das pessoas. O que significa estabelecer uma ruptura com o velho paradigma de que riqueza material é sinônimo de felicidade; pois, o FIB não mede apenas os aspectos quantitativos; mas, os qualitativos da população.

Por isso, a felicidade não se compra. Ela é um processo, nunca está acabada. Exige esforço, sacrifício, desapego, consciência, sentimento e reflexão, consumindo energia e tempo. Parafraseando Eduardo Galeano, a felicidade está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a felicidade? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar.

Desse modo, acabar com a pobreza, reduzir as desigualdades e proteger o planeta, como defende os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) 4 das Nações Unidas, é fundamental para tornar possível esse ideário de felicidade. Não há como ser feliz sem superar os desafios que operam à luz do ponderável e do imponderável no mundo; pois, como escreveu Érico Veríssimo, “Felicidade é a certeza de que nossa vida não está se passando inutilmente”.