quarta-feira, 29 de março de 2023

A Criação e a Criatura


A Criação e a Criatura

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Foi com certo alívio que li a matéria “Inteligência artificial: Elon Musk, Harari e mais mil especialistas pedem suspensão de pesquisas” 1. Pois, esse foi um claro sinal de que nem tudo está perdido, nesse mundo, e que a humanidade ainda dispõe de alguma lucidez e bom senso. Afinal, a questão ética é intrínseca a dinâmica social em todos os tempos da história.

Se por um lado existe toda uma engenhosidade cognitiva e intelectual, a qual foram dotados os seres humanos, por outro é fundamental encontrar limites que contenham eventuais arroubos de inconsequência e vaidade, os quais comumente afetam a seara científica. Aliás, a própria Revolução Industrial, na segunda metade do século XVIII, reverbera as suas imprevidências e imprudências em pleno século XXI, tendo em vista a quantidade de situações que ultrapassaram os limites da ética, sem que houvesse quaisquer atitudes a respeito.

Algo que alimentou tantas discussões importantes que, de algum modo, acabaram influenciando, ainda que indiretamente, a literatura. Uma das mais importantes obras nesse contexto foi Frankenstein: ou o Moderno Prometeu, de Mary Shelley, que através de uma genialidade literária conseguiu absorver as tensões sociais da época e traduzi-las com tamanha excelência, que antecipou aquilo que se tornariam os conceitos de Bioética e Biopoder, por exemplo 2.

Não é à toa, que por várias vezes, na minha construção textual, eu não pude deixar de trazer ao leitor uma citação que parece ser a síntese dessa reflexão atualíssima, ou seja, “Mente calma, a salvo de paixões perturbadoras, é a condição do ser humano em seu estado normal. Não pode a busca do saber ser levada à conta de exceção a essa regra. Se o estudo, por qualquer forma, tende a debilitar nossas afeições, nosso gosto pelos prazeres simples, trata-se então de uma atividade ilícita, que não se ajusta ao espírito humano. Se essa norma fosse sempre observada, se todo homem estabelecesse um limite entre seus misteres e sua vida afetiva, a Grécia não teria sido escravizada, César teria poupado sua pátria, a América teria sido colonizada sem maiores conflitos, e os impérios dos astecas e dos incas não teriam sido aniquilados” (MARY SHELLEY, 1817).

Quem diria, o conhecimento entorpece! Para muito ele se torna sim, uma droga poderosíssima e de efeito devastador, porque subtrai a sensatez, o discernimento, o controle e os limites éticos e morais. Sobretudo, quando ele arrasta na sua esteira uma gama gigantesca de poder social e capital, como é o caso da Inteligência Artificial, o mais novo xodó das Tecnologias da Informação e da Comunicação (TICs). Um conhecimento que atravessa sem pedir licença os caminhos humanos, colocando sumariamente milhões de vidas no ranking da desimportância e da inutilidade.

Pois é, se uma Bioética surgiu lá na década de 70 para construir um conjunto de regras e preceitos de ordem valorativa e moral em torno das diferentes formas de vida, agora é chegada a vez de se pensar, séria e profundamente, sobre uma Tecnoética. A dinâmica social restrita só ao conhecimento pelo conhecimento não basta! É preciso algo que norteie as discussões a respeito da sobrevivência e da existência humana, sob os mais diferentes aspectos e conteúdos, em um mundo altamente tecnologizado.

Queiram ou não admitir, a humanidade está repetindo um padrão. Depois de séculos e séculos de descaso e negligência com inúmeras mazelas sociais, ela passou a fazer o mesmo em relação as tecnologias. A tal ponto que, diante desse cenário high tech, o conhecimento tecnocientífico produzido nos últimos anos tende a transformar a realidade contemporânea em um caos sem precedentes. Sim, porque não há nas mãos de ninguém nenhum plano A, B ou C para resolver os desafios impostos. Talvez, por essa razão é que Stephen Hawking tenha manifestado, ainda em 2014, “Acredito que o desenvolvimento pleno da inteligência artificial poderia significar o fim da raça humana” (entrevista à BBC).

De repente, estamos à beira de provar da mesma percepção presente em Frankenstein: ou o Moderno Prometeu, ou seja, “[...]o gosto amargo da decepção. Sonhos que me haviam embalado por tanto tempo eram, repentinamente, transformados numa realidade infernal” (MARY SHELLEY, 1817). Diante da recente carta aberta assinada por renomadas figuras do espectro das TICs e detentoras de fortunas bilionárias emergidas desse campo do conhecimento, só posso crer que a situação deve ser ainda mais aterrorizante e complexa do que sonha nossa vã filosofia.

Porque, considerando outros cenários apocalípticos globais, como o caso das mudanças extremas do clima, por exemplo, em que a mobilização em torno de soluções enfrenta resistências mil, é mesmo de se espantar que nesse caso as atitudes tenham ocorrido rapidamente, no sentido de desromantizar o contexto das inovações tecnológicas. Cá estamos, então, de volta ao eterno dilema entre a Criação e a Criatura. Só o tempo dirá quem vai sobreviver!