A
Criação e a Criatura
Por
Alessandra Leles Rocha
Foi com certo alívio que li a
matéria “Inteligência artificial: Elon
Musk, Harari e mais mil especialistas pedem suspensão de pesquisas” 1. Pois, esse foi um claro sinal de
que nem tudo está perdido, nesse mundo, e que a humanidade ainda dispõe de
alguma lucidez e bom senso. Afinal, a questão ética é intrínseca a dinâmica social
em todos os tempos da história.
Se por um lado existe toda uma
engenhosidade cognitiva e intelectual, a qual foram dotados os seres humanos, por
outro é fundamental encontrar limites que contenham eventuais arroubos de
inconsequência e vaidade, os quais comumente afetam a seara científica. Aliás,
a própria Revolução Industrial, na segunda metade do século XVIII, reverbera as
suas imprevidências e imprudências em pleno século XXI, tendo em vista a
quantidade de situações que ultrapassaram os limites da ética, sem que houvesse
quaisquer atitudes a respeito.
Algo que alimentou tantas
discussões importantes que, de algum modo, acabaram influenciando, ainda que
indiretamente, a literatura. Uma das mais importantes obras nesse contexto foi Frankenstein: ou o Moderno Prometeu, de
Mary Shelley, que através de uma genialidade literária conseguiu absorver as
tensões sociais da época e traduzi-las com tamanha excelência, que antecipou
aquilo que se tornariam os conceitos de Bioética e Biopoder, por exemplo 2.
Não é à
toa, que por várias vezes, na minha construção textual, eu não pude deixar de
trazer ao leitor uma citação que parece ser a síntese dessa reflexão
atualíssima, ou seja, “Mente calma, a
salvo de paixões perturbadoras, é a condição do ser humano em seu estado
normal. Não pode a busca do saber ser levada à conta de exceção a essa regra.
Se o estudo, por qualquer forma, tende a debilitar nossas afeições, nosso gosto
pelos prazeres simples, trata-se então de uma atividade ilícita, que não se
ajusta ao espírito humano. Se essa norma fosse sempre observada, se todo homem
estabelecesse um limite entre seus misteres e sua vida afetiva, a Grécia não
teria sido escravizada, César teria poupado sua pátria, a América teria sido
colonizada sem maiores conflitos, e os impérios dos astecas e dos incas não
teriam sido aniquilados” (MARY SHELLEY, 1817).
Quem diria, o conhecimento
entorpece! Para muito ele se torna sim, uma droga poderosíssima e de efeito
devastador, porque subtrai a sensatez, o discernimento, o controle e os limites
éticos e morais. Sobretudo, quando ele arrasta na sua esteira uma gama
gigantesca de poder social e capital, como é o caso da Inteligência Artificial,
o mais novo xodó das Tecnologias da Informação e da Comunicação (TICs). Um
conhecimento que atravessa sem pedir licença os caminhos humanos, colocando
sumariamente milhões de vidas no ranking da desimportância e da inutilidade.
Pois é, se uma Bioética surgiu lá
na década de 70 para construir um conjunto de regras e preceitos de ordem
valorativa e moral em torno das diferentes formas de vida, agora é chegada a
vez de se pensar, séria e profundamente, sobre uma Tecnoética. A dinâmica social
restrita só ao conhecimento pelo conhecimento não basta! É preciso algo que
norteie as discussões a respeito da sobrevivência e da existência humana, sob
os mais diferentes aspectos e conteúdos, em um mundo altamente tecnologizado.
Queiram ou não admitir, a
humanidade está repetindo um padrão. Depois de séculos e séculos de descaso e
negligência com inúmeras mazelas sociais, ela passou a fazer o mesmo em relação
as tecnologias. A tal ponto que, diante desse cenário high tech, o conhecimento tecnocientífico produzido nos últimos
anos tende a transformar a realidade contemporânea em um caos sem precedentes.
Sim, porque não há nas mãos de ninguém nenhum plano A, B ou C para resolver os
desafios impostos. Talvez, por essa razão é que Stephen Hawking tenha manifestado,
ainda em 2014, “Acredito que o
desenvolvimento pleno da inteligência artificial poderia significar o fim da
raça humana” (entrevista à BBC).
De repente, estamos à beira de
provar da mesma percepção presente em Frankenstein:
ou o Moderno Prometeu, ou seja, “[...]o
gosto amargo da decepção. Sonhos que me haviam embalado por tanto tempo eram,
repentinamente, transformados numa realidade infernal” (MARY SHELLEY, 1817). Diante
da recente carta aberta assinada por renomadas figuras do espectro das TICs e
detentoras de fortunas bilionárias emergidas desse campo do conhecimento, só
posso crer que a situação deve ser ainda mais aterrorizante e complexa do que
sonha nossa vã filosofia.
Porque, considerando outros cenários apocalípticos globais, como o caso das mudanças extremas do clima, por exemplo, em que a mobilização em torno de soluções enfrenta resistências mil, é mesmo de se espantar que nesse caso as atitudes tenham ocorrido rapidamente, no sentido de desromantizar o contexto das inovações tecnológicas. Cá estamos, então, de volta ao eterno dilema entre a Criação e a Criatura. Só o tempo dirá quem vai sobreviver!
1 https://www.estadao.com.br/link/elon-musk-especialistas-executivos-carta-aberta-pausa-inteligencia-artificial-npre/
2 FRANKENSTEIN: OR THE MODERN PROMETHEUS: uma reflexão sobre o tempo, a sociedade e as relações humanas. Disponível em file:///C:/Users/Usu%C3%A1rio/Downloads/10123-Texto%20do%20artigo-38762-1-10-20200616%20(2).pdf