quarta-feira, 29 de março de 2023

Linhas, entrelinhas e o porquê


Linhas, entrelinhas e o porquê

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Talvez, agora, fique claro que a tensão promovida pelas mídias sociais não se resume ao espectro político-partidário. Não, ela vai muito além. Ela rompe as bolhas de isolamento individualista para nutrir-se da força e da combatividade coletiva, dentro dos mais diferentes campos sociais. Daí a necessidade de não ser negligente, de não menosprezar o papel dos instrumentos tecnológicos contemporâneos. Afinal, segundo Jean Paul-Sartre, “Não somos aquilo que fizeram de nós, mas o que fazemos com o que fizeram de nós”.

As Tecnologias da Informação e da Comunicação (TICs) trouxeram repentinamente tantas possibilidades de legitimação discursiva e comportamental, que não houve tempo suficiente para que a humanidade se preparasse para os desdobramentos e consequências desse processo. De certo modo, fomos pegos de calças curtas em pleno olho do furacão.

Sim, porque não há mais constrangimento, pudor, desconfiança, diante do nível de exposição, inclusive, ideológica, pelos frequentadores das mídias sociais. O próprio limite que separava a web da deep web se esgarçou, e aquilo que se pretende manifestar de bom ou de ruim aparece em qualquer lugar, a qualquer hora, por qualquer um. Como se essas pessoas tivessem encontrado nesses espaços um verdadeiro oásis de acolhimento, de pertencimento, de segurança, para se revelarem por inteiro.

Veja, a que ponto a humanidade chegou, por exemplo, em termos de violência. As velhas arenas romanas estão, agora, disponíveis em cada tela, na medida em que coletivos sociais acompanham, em tempo real, as ações de bárbaros sanguinários dispostos a se exibir. O que não se restringe, necessariamente, ao contexto prático da fúria; mas, também, da arquitetura subjetiva do pensamento tóxico, odioso, brutal, que precisa se disseminar para retroalimentar os humores contemporâneos, segundo as crenças, os valores e as convicções de uns e outros, por aí.

Por isso, enquanto não se admitir, de uma vez por todas, que o mundo mudou, que o ser humano está sob o comando de uma nova ordem sociocultural, será inútil se valer das velhas práxis para solucionar os novos desafios e mazelas. Como bem definiu o sociólogo Zygmunt Bauman, a raça humana está diante da modernidade líquida, onde a presença de sinais confusos, a velocidade de transformação e a imprevisibilidade proporcionam ao individualismo, a fluidez e a efemeridade das relações.

Nesse sentido, o papel da comunidade é um disfarce para a almejada identidade, ou seja, esta se torna um bem de consumo que apesar de procurado não será encontrado, será testado e nunca será definitivo. Isso significa que apesar da crença do pertencimento a uma comunidade, enquanto ideia de um grupo que representa certa identidade, os indivíduos não percebem que isso representa uma perda da possibilidade de escolha, na verdade, isso é apenas uma ilusão.

Ora, o que é uma escolha senão uma busca pela segurança num mundo de incertezas? Acontece que o Estado atual foi perdendo gradualmente a sua característica frente à máquina de modernização da globalização que retirou os privilégios do espaço e os deslocou para a velocidade, ou seja, a guerra entre realidade e tecnologia.

Portanto, ele deixou de ser aquele que dita às regras e passou a mendigar as benesses do capital em seus territórios. Isso estabelece uma ordem de nação por uma ordem supranacional, que leva à perda do monopólio da violência pelo Estado e sua distribuição às comunidades. Aliás, isso me faz recordar as palavras de José Saramago, quando disse “Não são os políticos os que governam o mundo. Os lugares de poder, além de serem supranacionais, multinacionais, são invisíveis” (Jornal Expresso, 1993).

Em linhas gerais, esse movimento foi descrito por Bauman como “comunidades explosivas”, ou seja, aquelas que precisam de violência para nascer e para continuar vivendo; a fim de fazer de cada membro da comunidade um cúmplice do que, em caso de derrota, seria certamente declarado crime contra a humanidade e, portanto, objeto de punição. A grande questão é que essas comunidades não exigem mais o território, podem se mover e atingir públicos diferentes em locais diferentes. De certa forma, elas contêm a solidão dos indivíduos participantes por alguns momentos, já que funcionam mais como evento do que como rotina. Bauman, inclusive, as denominou como “cloakroom communities”.

Na realidade recente brasileira isso se tornou bastante visível, a partir da apropriação de cores e símbolos nacionais, por membros e simpatizantes da direita nacional. Nesse cenário, a “cloakroom community” se apresentou, então, pela expressão de que a população “se veste para a ocasião, obedecendo a um código distinto do que seguem diariamente” (BAUMAN, 2001, p.228). Assim, “Alegria e tristeza, risos e silêncios, ondas de aplauso, gritos de aprovação e exclamações de surpresa são sincronizados – como se cuidadosamente planejados e dirigidos” (BAUMAN, 2001, p.228) 1.

Como dizia uma canção dos anos 80, “[...] Quem quer manter à ordem? / Quem quer criar desordem? [...]” 2. Dissecando camada por camada desse fenômeno fica, então, perceptível a clara intenção de impedir o ressurgimento de comunidades duradouras, fundamentas por crenças, valores e princípios altruístas, empáticos, fraternos, capazes verdadeiramente de fomentar o equilíbrio, a ordem e a paz social. O que se espera com essa nova ordem sociocultural é que ela consiga o máximo êxito em espalhar e desmembrar os interesses de seus membros, ou seja, minar uma formação fixa. Traduzindo em miúdos, as “cloakroom communities” são parte da desordem social, não uma forma de resolvê-la. 



1 BAUMAN, Z. Modernidade Líquida. Tradução de Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. (Título original “Liquid modernity”).

2 Desordem (Charles Gavin / Sérgio Britto / Marcelo Fromer) – 1987 - https://www.letras.mus.br/titas/48964/ 

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