Linhas,
entrelinhas e o porquê
Por
Alessandra Leles Rocha
Talvez, agora, fique claro que a tensão
promovida pelas mídias sociais não se resume ao espectro político-partidário. Não,
ela vai muito além. Ela rompe as bolhas de isolamento individualista para
nutrir-se da força e da combatividade coletiva, dentro dos mais diferentes
campos sociais. Daí a necessidade de não ser negligente, de não menosprezar o
papel dos instrumentos tecnológicos contemporâneos. Afinal, segundo Jean
Paul-Sartre, “Não somos aquilo que
fizeram de nós, mas o que fazemos com o que fizeram de nós”.
As Tecnologias da Informação e da
Comunicação (TICs) trouxeram repentinamente tantas possibilidades de
legitimação discursiva e comportamental, que não houve tempo suficiente para
que a humanidade se preparasse para os desdobramentos e consequências desse
processo. De certo modo, fomos pegos de calças curtas em pleno olho do furacão.
Sim, porque não há mais
constrangimento, pudor, desconfiança, diante do nível de exposição, inclusive, ideológica,
pelos frequentadores das mídias sociais. O próprio limite que separava a web da deep web se esgarçou, e aquilo que se pretende manifestar de bom ou
de ruim aparece em qualquer lugar, a qualquer hora, por qualquer um. Como se
essas pessoas tivessem encontrado nesses espaços um verdadeiro oásis de
acolhimento, de pertencimento, de segurança, para se revelarem por inteiro.
Veja, a que ponto a humanidade
chegou, por exemplo, em termos de violência. As velhas arenas romanas estão,
agora, disponíveis em cada tela, na medida em que coletivos sociais acompanham,
em tempo real, as ações de bárbaros sanguinários dispostos a se exibir. O que
não se restringe, necessariamente, ao contexto prático da fúria; mas, também,
da arquitetura subjetiva do pensamento tóxico, odioso, brutal, que precisa se
disseminar para retroalimentar os humores contemporâneos, segundo as crenças,
os valores e as convicções de uns e outros, por aí.
Por isso, enquanto não se
admitir, de uma vez por todas, que o mundo mudou, que o ser humano está sob o
comando de uma nova ordem sociocultural, será inútil se valer das velhas práxis
para solucionar os novos desafios e mazelas. Como bem definiu o sociólogo
Zygmunt Bauman, a raça humana está diante da modernidade líquida, onde a
presença de sinais confusos, a velocidade de transformação e a
imprevisibilidade proporcionam ao individualismo, a fluidez e a efemeridade das
relações.
Nesse sentido, o papel da
comunidade é um disfarce para a almejada identidade, ou seja, esta se torna um
bem de consumo que apesar de procurado não será encontrado, será testado e
nunca será definitivo. Isso significa que apesar da crença do pertencimento a uma
comunidade, enquanto ideia de um grupo que representa certa identidade, os indivíduos
não percebem que isso representa uma perda da possibilidade de escolha, na
verdade, isso é apenas uma ilusão.
Ora, o que é uma escolha senão
uma busca pela segurança num mundo de incertezas? Acontece que o Estado atual
foi perdendo gradualmente a sua característica frente à máquina de modernização
da globalização que retirou os privilégios do espaço e os deslocou para a
velocidade, ou seja, a guerra entre realidade e tecnologia.
Portanto, ele deixou de ser
aquele que dita às regras e passou a mendigar as benesses do capital em seus
territórios. Isso estabelece uma ordem de nação por uma ordem supranacional,
que leva à perda do monopólio da violência pelo Estado e sua distribuição às
comunidades. Aliás, isso me faz recordar as palavras de José Saramago, quando
disse “Não são os políticos os que
governam o mundo. Os lugares de poder, além de serem supranacionais,
multinacionais, são invisíveis” (Jornal Expresso, 1993).
Em linhas gerais, esse movimento
foi descrito por Bauman como “comunidades
explosivas”, ou seja, aquelas que precisam de violência para nascer e para
continuar vivendo; a fim de fazer de cada membro da comunidade um cúmplice do
que, em caso de derrota, seria certamente declarado crime contra a humanidade
e, portanto, objeto de punição. A grande questão é que essas comunidades não
exigem mais o território, podem se mover e atingir públicos diferentes em
locais diferentes. De certa forma, elas contêm a solidão dos indivíduos
participantes por alguns momentos, já que funcionam mais como evento do que
como rotina. Bauman, inclusive, as denominou como “cloakroom communities”.
Na realidade recente brasileira
isso se tornou bastante visível, a partir da apropriação de cores e símbolos nacionais,
por membros e simpatizantes da direita nacional. Nesse cenário, a “cloakroom community” se apresentou,
então, pela expressão de que a população “se
veste para a ocasião, obedecendo a um código distinto do que seguem
diariamente” (BAUMAN, 2001, p.228). Assim, “Alegria e tristeza, risos e silêncios, ondas de aplauso, gritos de
aprovação e exclamações de surpresa são sincronizados – como se cuidadosamente
planejados e dirigidos” (BAUMAN, 2001, p.228) 1.
Como dizia uma canção dos anos 80, “[...] Quem quer manter à ordem? / Quem quer criar desordem? [...]” 2. Dissecando camada por camada desse fenômeno fica, então, perceptível a clara intenção de impedir o ressurgimento de comunidades duradouras, fundamentas por crenças, valores e princípios altruístas, empáticos, fraternos, capazes verdadeiramente de fomentar o equilíbrio, a ordem e a paz social. O que se espera com essa nova ordem sociocultural é que ela consiga o máximo êxito em espalhar e desmembrar os interesses de seus membros, ou seja, minar uma formação fixa. Traduzindo em miúdos, as “cloakroom communities” são parte da desordem social, não uma forma de resolvê-la.
1 BAUMAN, Z. Modernidade Líquida. Tradução de Plínio
Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. (Título original “Liquid modernity”).
2 Desordem (Charles Gavin / Sérgio Britto / Marcelo Fromer) – 1987 - https://www.letras.mus.br/titas/48964/