Ser
para aprender ou aprender para ser?
Por
Alessandra Leles Rocha
Ainda sob a reverberação do recente
episódio de violência escolar, em São Paulo 1,
nada mais oportuno do que olhar para a Educação brasileira dentro de novas
perspectivas. Sim, porque ao contrário do que uma imensa maioria entende como desafios
educacionais no país, há diversos vieses do assunto que passam à margem da
percepção popular, na maioria do tempo.
Assim, o primeiro ponto nevrálgico
que esbarra a questão é o fato de uma recorrente dissociação do protagonismo
humano. Fala-se muito da insuficiência e ineficiência curricular. Da precariedade
das infraestruturas que abrigam escolas e instituições de ensino. Da baixa remuneração
e valorização dos profissionais da área. Da ausência quantitativa e qualitativa
da merenda. ... Mas, e o ser humano nessa história toda?
Bastaria uma passada de olhos
pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação nacional (LDBEN) 2, de 1996, para desconstruir tal engano. Segundo
manifesta o art. 1º da mesma, “A educação
abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência
humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos
sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais”. Portanto,
sem gente, de carne e osso, não existe educação!
E na medida em que a sociedade e
o poder público desconsideram a diversidade e a pluralidade humana e as condições
de existência no país, se deixa de enfrentar o desafio de uma Educação historicamente
atravessada por todo tipo de desigualdade. O que tem levado milhares de escolas
e instituições de ensino não só a refirmar esse abismo cruel; mas, também,
reproduzir os padrões das mazelas que estão além de seus muros.
Por isso, chega a ser curioso o
fato de que a Educação brasileira se preocupe tanto em perseguir a
tecnologização no campo do ensino-aprendizagem, já presente nos países com
Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) elevado, embora saiba, muito bem, que não
conseguiu superar ainda questões fundamentais do seu processo constitutivo.
Lamento, mas o fato de a LDBEN ter
sido atualizada, pela lei n. º 14533, de 11 de janeiro de 2023, para trazer ao
ensino regular o ensino de habilidades tecnológicas para formar os nativos
digitais, isso não representa em si um passo adiante, quando desconhecemos a realidade
dos alunos e profissionais da Educação.
A efervescência contemporânea produzida
por avalanches de novidades que mascaram, na maioria das vezes e do tempo, a
brutalidade do cotidiano, na sua face mais desfavorecida e abandonada, deveria
ser o cerne da discussão educacional. Justamente por termos coletivos humanos
cada vez mais impactados e afetados por uma insalubridade mental, a qual se
dispersa subliminarmente pelos espaços reais e virtuais, é que se torna imprescindível
transformar a Educação do século XXI. Trata-se de formalizar uma estrutura sustentada
pela multidisciplinaridade profissional, ou seja, capaz de trazer coletivamente
os seus esforços para o alcance de um êxito comum.
A ideia de encaminhar para uma orientação
psicossocial fora da escola, por exemplo, já provou que não funciona. Seja pela
dificuldade de agendamento. Seja pelo desconhecimento do profissional quanto ao
cenário cotidiano real da instituição. Seja pela impossibilidade da participação
familiar no processo. Seja pelo custo, quando não há serviço disponível na rede
pública. ... E somente com os quadros
atuais de servidores – professores, diretores, merendeiras, pessoal de serviços
gerais – a dinâmica da Educação brasileira não flui mais, dentro da realidade de
novos parâmetros e perfis contemporâneos, em razão de desafiadoras demandas que
se impuseram na sociedade.
Os muros da escola não são uma
fronteira, uma linha divisória, e nem tampouco, protegem contra as contínuas
provocações do mundo; sobretudo, as violências. Se as autoridades querem de
fato superar a repetência, a evasão escolar, a indisciplina, a agressividade, o
desinteresse, ... terão que começar a constituir equipes de psicólogos,
assistentes sociais e terapeutas ocupacionais, com formação psicopedagógica, para
atuarem diretamente dentro dos espaços educacionais. Sim, acompanhando o dia a
dia daquela realidade, a fim de conhecerem, em profundidade, os pontos críticos
que precisam de mais ou menos atenção. Eles (as) têm que ser parte integrante e
integrada do sistema de ensino do século XXI.
Afinal de contas, um indivíduo só
é capaz de aprender e de ensinar quando está na plenitude do seu equilíbrio e
bem-estar interior. A Educação é atravessada sim, pela saúde mental. Já passou
da hora de entender que “Saúde é o estado
de completo bem-estar físico, mental e social e não somente a ausência de
doença” (Organização Mundial de Saúde – OMS). Segundo o médico e professor
brasileiro, Jayme Landmann, “O Estado
preocupa-se com a saúde do indivíduo em função de sua utilização como
instrumento de trabalho e não em função de suas esperanças, de seus anseios, de
seus temores ou de seus sofrimentos”; mas, acaba levando essa concepção deturpada
para todas as demais áreas fundamentais da vida, incluindo a Educação.
A sociedade brasileira está
condicionada a pensar um modelo de Educação que ensina, o que uns e outros
consideram relevante, que mede o aprendizado estritamente pelo padrão de notas
estabelecido, e especialmente, que promove uma atmosfera de concorrência e
competitividade entre os alunos, desde as mais tenras idades. Por isso, ela não
consegue ver e perceber a urgente necessidade de uma equipe multidisciplinar,
para acompanhar as demandas evolutivas da conjuntura atual. E na medida em que
ela refuta enxergar os fatos que estão bem diante do seu nariz, ela se expõe aos
riscos e ameaças que representam os desdobramentos da sua inação voluntariamente
negligente.
Quando se estabelece, portanto,
uma práxis afirmadora de que “É por isso
que se mandam as crianças à escola: não tanto para que aprendam alguma coisa,
mas para que se habituem a estar calmas e sentadas e a cumprir escrupulosamente
o que se lhes ordena, de modo que depois não pensem mesmo que têm de pôr em
prática as suas ideias” (Immanuel Kant), se descobre o ponto exato onde a
Educação se perdeu na contemporaneidade.
Ora, em um tempo no qual tudo é efêmero,
fugaz, intenso, tanto da perspectiva positiva quanto negativa, é fundamental um
espaço de ensinar e de aprender que acolha a inquietação humana, sob suas mais
diferentes formas e conteúdos, não um ambiente que a faça sentir aprisionada,
oprimida, contida.
Afinal, como diria Rubem Alves, “Para isso existem as escolas: não para
ensinar as respostas, mas para ensinar as perguntas. As respostas nos permitem
andar sobre a terra firme. Mas somente as perguntas nos permitem entrar pelo
mar desconhecido”. Por isso, “Os
educadores, antes de serem especialistas em ferramentas do saber, deveriam ser
especialistas em amor: intérpretes de sonhos” 3.
O que não significa que isso vale somente para os professores, dentro de
uma sala de aula. Vale para mim, para você, para todos os que estiverem imersos
na realidade dos espaços de Educação no país.
1 https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2023/03/28/mp-pede-internacao-provisoria-e-urgente-avaliacao-psiquiatrica-de-autor-de-ataque-a-escola-em-sp.ghtml
3 ALVES, R. A arte de ensinar. São Paulo: ARS Poética Editora, 1994.