terça-feira, 28 de março de 2023

Ser para aprender ou aprender para ser?


Ser para aprender ou aprender para ser?

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Ainda sob a reverberação do recente episódio de violência escolar, em São Paulo 1, nada mais oportuno do que olhar para a Educação brasileira dentro de novas perspectivas. Sim, porque ao contrário do que uma imensa maioria entende como desafios educacionais no país, há diversos vieses do assunto que passam à margem da percepção popular, na maioria do tempo.   

Assim, o primeiro ponto nevrálgico que esbarra a questão é o fato de uma recorrente dissociação do protagonismo humano. Fala-se muito da insuficiência e ineficiência curricular. Da precariedade das infraestruturas que abrigam escolas e instituições de ensino. Da baixa remuneração e valorização dos profissionais da área. Da ausência quantitativa e qualitativa da merenda. ... Mas, e o ser humano nessa história toda?

Bastaria uma passada de olhos pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação nacional (LDBEN) 2, de  1996, para desconstruir tal engano. Segundo manifesta o art. 1º da mesma, “A educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais”. Portanto, sem gente, de carne e osso, não existe educação!

E na medida em que a sociedade e o poder público desconsideram a diversidade e a pluralidade humana e as condições de existência no país, se deixa de enfrentar o desafio de uma Educação historicamente atravessada por todo tipo de desigualdade. O que tem levado milhares de escolas e instituições de ensino não só a refirmar esse abismo cruel; mas, também, reproduzir os padrões das mazelas que estão além de seus muros.

Por isso, chega a ser curioso o fato de que a Educação brasileira se preocupe tanto em perseguir a tecnologização no campo do ensino-aprendizagem, já presente nos países com Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) elevado, embora saiba, muito bem, que não conseguiu superar ainda questões fundamentais do seu processo constitutivo.

Lamento, mas o fato de a LDBEN ter sido atualizada, pela lei n. º 14533, de 11 de janeiro de 2023, para trazer ao ensino regular o ensino de habilidades tecnológicas para formar os nativos digitais, isso não representa em si um passo adiante, quando desconhecemos a realidade dos alunos e profissionais da Educação.

A efervescência contemporânea produzida por avalanches de novidades que mascaram, na maioria das vezes e do tempo, a brutalidade do cotidiano, na sua face mais desfavorecida e abandonada, deveria ser o cerne da discussão educacional. Justamente por termos coletivos humanos cada vez mais impactados e afetados por uma insalubridade mental, a qual se dispersa subliminarmente pelos espaços reais e virtuais, é que se torna imprescindível transformar a Educação do século XXI. Trata-se de formalizar uma estrutura sustentada pela multidisciplinaridade profissional, ou seja, capaz de trazer coletivamente os seus esforços para o alcance de um êxito comum.

A ideia de encaminhar para uma orientação psicossocial fora da escola, por exemplo, já provou que não funciona. Seja pela dificuldade de agendamento. Seja pelo desconhecimento do profissional quanto ao cenário cotidiano real da instituição. Seja pela impossibilidade da participação familiar no processo. Seja pelo custo, quando não há serviço disponível na rede pública. ...  E somente com os quadros atuais de servidores – professores, diretores, merendeiras, pessoal de serviços gerais – a dinâmica da Educação brasileira não flui mais, dentro da realidade de novos parâmetros e perfis contemporâneos, em razão de desafiadoras demandas que se impuseram na sociedade.

Os muros da escola não são uma fronteira, uma linha divisória, e nem tampouco, protegem contra as contínuas provocações do mundo; sobretudo, as violências. Se as autoridades querem de fato superar a repetência, a evasão escolar, a indisciplina, a agressividade, o desinteresse, ... terão que começar a constituir equipes de psicólogos, assistentes sociais e terapeutas ocupacionais, com formação psicopedagógica, para atuarem diretamente dentro dos espaços educacionais. Sim, acompanhando o dia a dia daquela realidade, a fim de conhecerem, em profundidade, os pontos críticos que precisam de mais ou menos atenção. Eles (as) têm que ser parte integrante e integrada do sistema de ensino do século XXI.

Afinal de contas, um indivíduo só é capaz de aprender e de ensinar quando está na plenitude do seu equilíbrio e bem-estar interior. A Educação é atravessada sim, pela saúde mental. Já passou da hora de entender que “Saúde é o estado de completo bem-estar físico, mental e social e não somente a ausência de doença” (Organização Mundial de Saúde – OMS). Segundo o médico e professor brasileiro, Jayme Landmann, “O Estado preocupa-se com a saúde do indivíduo em função de sua utilização como instrumento de trabalho e não em função de suas esperanças, de seus anseios, de seus temores ou de seus sofrimentos”; mas, acaba levando essa concepção deturpada para todas as demais áreas fundamentais da vida, incluindo a Educação.  

A sociedade brasileira está condicionada a pensar um modelo de Educação que ensina, o que uns e outros consideram relevante, que mede o aprendizado estritamente pelo padrão de notas estabelecido, e especialmente, que promove uma atmosfera de concorrência e competitividade entre os alunos, desde as mais tenras idades. Por isso, ela não consegue ver e perceber a urgente necessidade de uma equipe multidisciplinar, para acompanhar as demandas evolutivas da conjuntura atual. E na medida em que ela refuta enxergar os fatos que estão bem diante do seu nariz, ela se expõe aos riscos e ameaças que representam os desdobramentos da sua inação voluntariamente negligente.

Quando se estabelece, portanto, uma práxis afirmadora de que “É por isso que se mandam as crianças à escola: não tanto para que aprendam alguma coisa, mas para que se habituem a estar calmas e sentadas e a cumprir escrupulosamente o que se lhes ordena, de modo que depois não pensem mesmo que têm de pôr em prática as suas ideias” (Immanuel Kant), se descobre o ponto exato onde a Educação se perdeu na contemporaneidade.

Ora, em um tempo no qual tudo é efêmero, fugaz, intenso, tanto da perspectiva positiva quanto negativa, é fundamental um espaço de ensinar e de aprender que acolha a inquietação humana, sob suas mais diferentes formas e conteúdos, não um ambiente que a faça sentir aprisionada, oprimida, contida.

Afinal, como diria Rubem Alves, “Para isso existem as escolas: não para ensinar as respostas, mas para ensinar as perguntas. As respostas nos permitem andar sobre a terra firme. Mas somente as perguntas nos permitem entrar pelo mar desconhecido”. Por isso, “Os educadores, antes de serem especialistas em ferramentas do saber, deveriam ser especialistas em amor: intérpretes de sonhos” 3. O que não significa que isso vale somente para os professores, dentro de uma sala de aula. Vale para mim, para você, para todos os que estiverem imersos na realidade dos espaços de Educação no país.